O
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015 teve 278 participantes que puderam usar os nomes sociais para fazeras provas. Nesta semana, com o resultado do Sistema de Seleção Unificada
(Sisu), algumas dessas pessoas - travestis, mulheres e homens
transsexuais - puderam celebrar a aprovação e as novas perspectivas de vida com
a entrada na universidade.
O
espaço acadêmico ainda é pouco ocupado por trans e travestis e a
representatividade na universidade é, para Ana Flor Fernandes Rodrigues, de 19
anos, fundamental. A jovem, que é moradora de Várzea, bairro do Recife onde
fica a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), fez o Enem pela segunda vez e
teve a felicidade de ver seu nome entre os aprovados no curso de pedagogia.
Para Ana Flor, esta é uma oportunidade de ampliar a visão que a sociedade tem
da comunidade trans: "A pedagogia agora vai fazer com que eu consiga falar
sobre mim", explica.
''A
partir do momento que eu começar a estudar [pedagogia], ela fará com que eu
seja dona das minhas próprias narrativas, e não mais um objeto de estudo",
disse Ana Flor.
A
opinião é compartilhada por Amanda Palha, aprovada em primeiro lugar para
o curso de Serviço Social, também na UFPE. "O olhar de fora tem
dificuldade de captar algumas nuances da nossa realidade. Sendo sujeitos dessa
produção teórica, a relação entre a teoria e a realidade tende a ser mais
fácil. Não é uma garantia, mas tende a ser mais fácil", explica a travesti
de 28 anos.
Narrativas próprias
Amanda
Palha passou a ter interesse pela universidade depois de começar a trabalhar,
em São Paulo, em um projeto de assistência à população de rua. Para ela, o
curso de Serviço Social oferece um amplo campo de pesquisa, além de se
relacionar com a sua área de estudo e militância. "Não acho que a academia
seja o único espaço em que a teoria é feita, mas é onde isso acontece, então eu
quero fazer mestrado, doutorado, trabalhar com pesquisa. Mesmo com as
limitações que a assistência social tem, ela é uma ferramenta de redução de
danos importante, principalmente para a nossa população, e eu vejo o quanto
assistentes sociais mal preparados são danosos para os nossos processos.
Garantir que a gente tenha pessoas bem preparadas também é importante",
explica.
A
jovem Ana Flor também tem a perspectiva de desenvolver pesquisas que falem de
sua própria realidade. Ela acredita que, com o tempo, a inserção da população
de trans e travesti no espaço acadêmico possa mudar as relações na sociedade
como um todo, reduzindo o preconceito. "Quando vejo mais
pessoas trans e travestis entrando na universidade, consigo ver que elas vão
usar o diálogo para destruir essa opressão estrutural. Futuramente será
possível um diálogo mais saudável com as pessoas", espera.
O
Enem foi a porta de entrada de Amanda e Ana Flor na universidade. Para Amanda,
ter uma estrutura familiar sólida e contar com apoio no trabalho foram fatores
determinantes para conseguir estudar e se preparar. "Foi possível para mim
porque a relação com a minha família era positiva, porque consegui concluir o
ensino médio, tive uma rede de amigos que me deram suporte, tive a chance de
trabalhar na área e descobrir que gostaria de estudar serviço social. Eu tive
acesso a uma educação popular de qualidade que poucas pessoas têm",
explica.
"O
fato de ser primeiro lugar no curso tem que ser incentivo não só para as
meninas [trans] acharem que elas podem, mas para todas as pessoas que têm
interesse em ver a inserção acontecendo se movimentarem para isso. Criar
condições sociais para que isso aconteça faz muito mais sentido do que a gente
achar que é só uma questão de estudar muito, porque não é", afirma Amanda.
Ana
Flor espera que sua aprovação seja um empurrão para que as pessoas do seu
bairro possam se sentir capazes de estudar na universidade que está a dez
minutos de suas casas: "Eu me sinto muito realizada, porque quando eu
olhava para a UFPE, eu sempre via algo muito distante de mim. Acredito que, da
minha rua, eu seja a primeira pessoa que conseguiu passar. Isso mostra que por
mais que a UFPE esteja no bairro onde eu moro, as pessoas do bairro onde eu
moro não estão na UFPE. Para além de travesti, negra, periférica, eu falo
também do bairro onde eu moro", critica.
Nome Social
Apesar
de não ter solicitado o uso de nome social para a prova, Amanda Palha chamada
dessa forma durante a realização do exame. Ela afirma que o respeito é fundamental
para que as pessoas trans e travestis consigam ficar mais tranquilas. "A
hora de fazer a prova é muito tensa, e não é só pelo nome social. A gente é
exceção, então as pessoas olham, fazem comentários, dão risadinhas,
apontam", lamenta.
Ana
Flor usou seu nome social no dia do Exame e afirma que se sentiu mais
confortável por fazer a prova em uma sala que tinha apenas mulheres. Para ela,
no entanto, o nome do RG deveria ser retirado da lista de candidatos da
sala: ambos os nomes, oficial e social, aparecem na lista que todos os
participantes da sala assinam. "O MEC pode tentar melhorar essa lista ou
criar um mecanismo para que essas meninas não sejam expostas dessa forma,
visando o bem estar, tanto físico quanto mental. Assim as pessoas vão se sentir
melhor e, consequentemente, se sair bem na prova", acredita.
Redação
Ana
Flor se emocionou ao ver que o tema da redação era a persistência da violência
contra a mulher na sociedade brasileira e ficou satisfeita ao poder falar, no
texto, sobre a realidade que enfrenta no dia a dia. Com o desempenho em
sua dissertação, a jovem conseguiu 880 pontos.
''Não
fiquei tão feliz [com o tema da redação] porque infelizmente é um tema muito
pesado, mas ao mesmo tempo eu pude falar sobre mim e sobre as minhas irmãs, as
minhas iguais. Foi a primeira vez que eu poderia escrever no Enem algo em que
eu podia narrar, de certa forma, a minha vida e a vida de minhas amigas, tendo
como plano de intervenção algo narrado por nós, para nós e construído por nós
também", diz Ana Flor.
Na
UFPE, Amanda e Ana Flor farão companhia a Maria Clara Araújo, mulher trans que
também foi aprovada pelo Enem e cursa pedagogia desde o segundo semestre de
2015. "O fato de a gente estar próximas pode facilitar a construção de
coisas juntas. Construir teoria para a nossa população, não só para entender
quem a gente é, mas para dar subsídios para a nossa luta, assim como a luta
de todas as pessoas oprimidas", acredita Amanda.
Ela
é cautelosa ao falar que ainda há muito caminho a percorrer. "O que faz a
diferença não é a gente simplesmente ocupar esse espaço acadêmico, mas o que a
gente faz com a ocupação desse espaço. O que a gente vai fazer é o que vai
permitir falar de vitória daqui a alguns anos", prevê.