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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O Dia em que Beija-Flor Perdeu o Gás

 


Por Dag Vulpi

Há dias em que manter a serenidade é um exercício de sobrevivência. Quando tudo conspira contra e a paciência ameaça pedir demissão, é aí que se revela o verdadeiro caráter do sujeito.
E foi num desses dias, lá pelos idos da década de 1990, que o extrovertido, falante e sempre de bem com a vida Beija-Flor, morador do bairro da Glória, em Vila Velha (ES), se viu em apuros — e sem café.

Beija-Flor era figura conhecida na Glória. Homem de boa índole, funcionário da prefeitura há mais de trinta anos, desses que já tinham visto prefeitos, secretários e chefes passarem como as marés da Prainha da Glória
Ele ficou. E sua longevidade no serviço público lhe rendeu certas regalias — as costumeiras do tempo em que o relógio de ponto ainda era de papel e amizade valia mais que protocolo.

Boêmio, bom de conversa, amigo de todos e dono de pequenos vícios — inofensivos e, de certa forma, humanos. Seu maior prazer era criar pássaros: curiós, coleirinhas e trinca-ferros que, segundo ele, cantavam mais bonito que o próprio vento.
Nas rodas de disputa — os famosos “rachas” de sábado — seus pássaros eram imbatíveis. Ou, pelo menos, era assim que ele garantia.
E ai de quem ousasse discordar.

Seu xodó maior atendia por Pepê, um coleirinha valente que, nas manhãs de sol, era motivo de orgulho e briga.
Na mesma rua morava Carlinho Pereá, criador de pássaros e rival de longa data. Os dois se bicavam desde os tempos de juventude — e como em toda boa rivalidade de bairro, ninguém sabia mais quem começou.

Mas o caso de hoje não é sobre o Pepê nem sobre os rachas. É sobre o dia em que Beija-Flor acordou cedo demais e confiou de menos.

Era madrugada. O relógio marcava quatro da manhã quando ele levantou, como sempre, pra preparar o café. Ligou o rádio AM — daqueles com chiado e voz de locutor de interior — e foi direto à cozinha.
De repente, ouviu um barulho no quintal. Espiou pela janela e avistou um sujeito carregando uma botija de gás. O homem, percebendo o flagrante, se apressou em dizer:
— Ô cumpadi, não quer comprar essa botija, não? Tá cheia. Tô vendendo pra comprar remédio pro meu menino.

Beija-Flor desconfiou. “Vai que é roubada”, pensou. E recusou:
— Melhor não, parceiro. Pode seguir teu caminho.

O homem agradeceu, pediu desculpas e sumiu na escuridão.
Beija-Flor voltou satisfeito à cozinha, sentindo-se prudente. Colocou a chaleira, riscou o fósforo — e nada.
O gás havia acabado.

Olhou o relógio e lamentou a ironia:
— Se eu soubesse, tinha comprado a botija daquele infeliz...

Resignado, foi soltar a válvula da botija vazia, mas, ao acender a luz da área, só viu a mangueira solta.
A botija já tinha sido levada.

Beija-Flor jogou o boné no chão e xingou o destino em alto e bom som.
Mas pior que o prejuízo foi o vexame. Bastou comentar o caso com o dono da quitanda — o Suíno — para que, antes das nove da manhã, o bairro inteiro já soubesse do “roubo do gás do Beija-Flor”.
E, como se sabe, fofoca naquela época corria mais rápido que ligação a cobrar.

Virou motivo de riso, o gozador virou gozado, e o rei das piadas foi coroado bobo da vez.
Sem saída, Beija-Flor tirou férias — as primeiras da vida — e se mandou pro interior, pra casa do irmão, esperando o tempo apagar o constrangimento.

O tempo passou. O caso virou história de esquina, lembrança de bar e, hoje, memória de um tempo em que os risos eram mais leves e os vexames, mais humanos.

Ouvi essa história pessoalmente, contada num fim de tarde entre risadas, café coado e cheiro de serragem, durante uma conversa entre o próprio Beija-Flor e o meu falecido sogro, seu Bino — também amante dos pássaros e exímio fabricante de gaiolas caseiras.
Homem de fala mansa, riso fácil e alma simples, seu Bino, aliás, terá em breve suas próprias histórias recordadas neste mesmo espaço.

E eu, que testemunhei aquele diálogo, deixo aqui o registro do dia em que Beija-Flor perdeu o gás — e parte da pose.


Reflexão

As histórias que ouvimos dos antigos têm um perfume que o tempo não apaga.
São pequenas memórias que, contadas ao pé da conversa, mantêm viva a essência dos dias simples — quando bastava um rádio chiando na cozinha e uma boa risada no quintal pra vida parecer mais leve.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Azevedo x Dallagnol. A Ferrari dourada e a corriola de asnos


Por Armando Coelho Neto 31/07/2017

Não defendo pena de morte nem sociedade armada. Fui favorável à Bolsa Família, médicos cubanos para desassistidos, defendo direitos humanos, a inclusão social de pobres, negros, índios, homossexuais, sentenciados - seja por cota ou bolsa. Acolhi o perdão de dívidas ao Haiti, acho que o Brasil é um coração de mãe que pode abrigar refugiados. Creio que polícia não pode intervir em problemas de saúde pública e, finalmente, sem encerrar meu rol de aleivosias, digo que no meu carro não tem adesivo “Bandido bom é bandido morto”.

Portanto, se existe uma onda de ódio não parte dos políticos, partidos ou ideias que defendo. O ódio está no seio daqueles que, em nome de Deus ou do diabo, aclamam a sociedade primata, fazem apologia a torturadores e me perseguem por minhas ideias.

De qualquer forma, já não sei se estou imune a esse ódio catalisado por Aécios, Bolsonaros, Marinhos e Malafaias da vida. Não me é clara a ideia de que o que penso ou escrevo traz a marca da serenidade. E me dei conta disso quando uma leitora disse ver ódio quando falei da sepultura do Temer, do exílio de Aécio e da prisão de Sérgio Moro. Embora não com o sentido que ela deu, já não posso me declarar isento e isso ficou mais real depois que Sérgio Moro, após quebrar empresas nacionais, declarou guerra aos pobres do Brasil com base em sua discutível idiossincrasia. Para ele, Lula é ladrão, mas como não conseguiu provar, em sua arrogante sentença consta que Lula ocultou, “ainda que de forma singela”, o produto do crime.

Moro parece não distinguir metáfora, bravata ou assertiva. Protestou contra a Folha de S. Paulo por haver dado espaço a um articulista que o criticou. Tratou como ameaça as opiniões de pessoas, constrangeu blogueiro. Quis arrancar de Lula o que ele tentou dizer com essa ou aquela frase em discursos políticos. É como se num julgamento político de um político, o discurso político não fosse defesa. É como se não conseguisse distinguir um arroubo de uma ameaça real, um aplauso fascista de uma vaia democrática. Em suma, é como se não existisse distinção entre um diploma de Doutor Honoris Causa de uma universidade conceituada e um troféu mequetrefe entregue por sonegadores remidos ou não da família Marinho. E o mais grave: como se não houvesse diferença entre aplicar o Direito e fazer Justiça.

Há algo errado comigo, pois não consigo me alinhar aos que aplaudem os barnabés que em tese estariam contra a corrupção. Isso equivaleria a estar defendendo a corrupção. E, corrupção hoje é PT. Assim o quis Moros, Marinhos, Malafaias. Mas, quanto mais chafurdam o submundo da corrupção menos PT aparece e mais se revela a sociedade que eles próprios defendem. É como se Aécio, Temer, Odebrecht, Joesleys, Batistas, Cunhas e a agora também a família Charter fossem filiadas ao Partido dos Trabalhadores ou fossem de esquerda. E aí, eu que não sou PT nem aceito rótulos, sou obrigado a escolher um lado e como sempre votei com o estômago do povo e vivi mais de três décadas dentro da Polícia Federal, não posso sucumbir à farsa ou a hipocrisia imposta pela dita grande mídia.

Escrevo em estado de calamidade púbica (Clarice Lispector) e por isso me perco buscando configurar o perfil dessa gente “do bem”, defensora dos homens de bem ou de bens (a segunda parte não me está clara), quando, além das contradições do Sérgio Moro, de repente me deparei com a arenga entre o golpista Reinaldo Azevedo e o procurador da República Daltan Dallagnol. Através do Azevedo, fiquei sabendo que o “Dr. PowerPoint”, que hoje desenvolve teorias para condenar o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, é fruto de uma teoria. Ele não tem a história normal de seus pares mesmo sendo concursado. Daltan Dallagnol virou procurador com base na teoria do “Fato Consumado”.

O pensamento dominante no STF é ou era, que a Teoria o “Fato Consumado” só seria aplicada em “situações excepcionalíssimas, nas quais a inércia da administração ou a morosidade do Judiciário deram ensejo a que situações precárias se consolidassem pelo decurso do tempo" (ministro Castro Meira no RMS 34.189). Outros supremos julgados dizem que a teoria visa “preservar não só interesses jurídicos, mas interesses sociais já consolidados, não se aplicando, contudo, em hipóteses contrárias à lei, principalmente quando amparadas em provimento judicial de natureza precária" (Eliana Calmon, REsp 1.189.485). Distorções dessa teoria correspondem ao prevalecimento do interesse pessoal em detrimento do coletivo, diz a melhor doutrina.

Como dito acima, tenho me perdido na configuração do perfil dessa gente que está “moralizando” o país. Com base em fontes supostamente confiáveis, Azevedo disse que Dallagnol não preenchia os requisitos legais para assumir o cargo. A lei exigia três anos de experiência, mas ele recém-formado prestou concurso e entrou na Justiça, tendo como advogado o próprio pai. De posse de uma liminar, recurso daqui e dali... Pronto: fato consumado! Não houve “In dubio pro societate”.

Segundo a imprensa, o tal procurador, que criminalizaria as palestras de Lula, estaria vendendo parte do que faz por meio de palestras, nas quais a cereja do bolo é a Farsa Jato, que ele trata por outro nome. Se for verdade, é como se ganhasse duas vezes pelo trabalho, sem contar o valor agregado pela mais valia da notoriedade. Nada mal para quem não precisa explicar os imóveis supostamente adquiridos com recursos lícitos, mesmo que construídos com recursos do Minha Casa Minha Vida, que obviamente não foi criado para atingir o público com o padrão de vida de Dallagnol.

Sem ódio, confesso que diante das sucessivas aberrações jurídicas e políticas que permeiam a vida nacional, temo que o STF declare o golpe como fato consumado. E aí não me surpreenderia que uma corriola de asnos desse de presente a Moro e Dallagnol a Ferrari dourada que falsamente atribuem ser do filho do ex-presidente Lula.

terça-feira, 9 de maio de 2017

O acontecimento e o nome do filho


Por Antônio Luiz Carlini em 09/05/2017

Foi comum entre os descendentes de imigrantes italianos, obedecendo à tradição, ao denominarem seus filhos homenagearem os pais, avós, tios e, como a prole, quase sempre numerosa, observarem dias Santos, para a escolha dos nomes dos seus novos rebentos. O que obviamente aumentava o numero de homens com nomes José, Antônio, João, Luiz, etc...

Entretanto houve os que gostavam de exagerar, como todas as sete filhas iniciarem por Maria, no caso meninas e, todos os meninos por José, este o mais comum, porém ainda uns poucos exagerados colocando nomes de países ou distritos Europeus. Até que depois de 1947, a influência Norte Americana, deu surgimento aos Nelson, Edson, Hudson, etc..

Um de nossos consortes, conterrâneo e concidadão, leu artigo em revista, discorrendo sobre o assunto e percebeu que seu filho estava com o nome de uma variação do verbo ARMAR, lá na conjugação do gerúndio, pois, seu filho, por influencia de avós, estava registrado como Armando e não tinha nenhum talento aparente para ser armador. Conclui que errara, mas nada podia fazer para mudar, mas podia, no caso de aparecer outro, o que era improvável, corrigir a falha e dar ao utópico, um nome onde seriam obedecidas as regras dos indígenas, mesmo que americanos do norte ou do sul, mas um nome de acordo com o que acontecesse naquele período do nascimento. 

Aconteceu, o Armando teve um irmãozinho, o “famoso rapa de tacho”. Maria (....,,,,......) já com dezessete, primogênita daquela prole, antenada com tudo o que o Rádio dizia e apresentava em 1964, escreveu uma lista com sugestões de nomes para o pai registrar o bebê, assim designada:
- Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Jerry Adriani, Agnaldo Rayol, Wanderley Cardoso, Ronie Von, Agnaldo Timótio, Caetano Veloso, Nelson Ned, Lenon, MacCarteney, Gilberto Gil e aquele em que mais insistiu, o belo e adorável, para ela, Paulo Sérgio. 

Aquele pai abominou a ideia da filha adolescente, mas consultou a mãe, que disse: - Para mim o que escolherem está bem, pois, papai não quer o nome dele, então qualquer um serve!

A adolescente: - Viu pai? Viu pai? O Senhor não sabe escolher e mamãe concorda comigo! Paulo Sérgio e pronto! Ao que ele sacudiu a cabeça negativamente, como se quisesse derrubar os flocos de uma caspa ainda grudados nos cabelos e disse:
- Como ele nasceu em 17 de janeiro, dia de Santo Anton, mas não gosto deste nome e, estou querendo dar nome ao filho, agradecendo esta maravilha que está a nossa ROÇA de MILHO, cuja qualidade é a primeira vez que vejo, quero contrariar Caim, homenagear Abel e dar ao meu filho um nome que pelo resto da minha vida eu nunca esqueça que já tive uma roça tão viçosa com espigar tão bonitas com este milho de leite, digno de uma PAPA por dia, o que também não posso homenagear, por que PAPA é sagrado e CURAL é interpretado como lugar de prender vacas. ÓH! Duvida cruel! Mas os seus “veados cabeludos” lá de São Paulo, nem pensar! O “poppo” vai ter nome diferente, porém, nome que me lembre de milho verde! 

A menininha de oito anos, que pensavam ser para sempre a caçula, mas que deixara de ser, resolveu dar palpite e se meteu na conversa:
- Pai, já sei!!! PAMONHA! Isso! Não pode ser Papa nem CURAL e tem que lembrar de milho verde, PAMONHA é o mais indicado! 


Aquele homem gostou da sugestão, mas contrariado pela esposa e os filhos maiores de dez, homenageou a natureza, segundo ele, registrando e batizando a criança com o nome ADÂO, a quem a vizinhança chamava de Adão da Pamonha, para desespero do mesmo com o Bulling, seja na vida social ou na escola, até que mudaram para longe do Município de Santa Teresa. 

terça-feira, 13 de maio de 2014

O que foi dito bêbado foi pensado sóbrio


Por Graça Taguti
Ah, quantos de nós temos coragem de traduzir em palavras as explosões de afeto, fúria ou ódio, claramente estampadas em nossos olhos. Quantos de nós se escondem atrás dos véus da conveniência, ardilosas maquiagens, máscaras de bem-se-relacionar no cotidiano, guardando tudo o que nos ameaça ou fragiliza no quarto escuro de emoções cansadas, amassadas e contraditórias.

Francamente. Quase não há espaço para o amor e a ternura se acomodarem junto ao medo, a insegurança e a frieza, pois o quarto é diminuto — do tamanho de uma solitária prisional. Nele se empilham sentimentos opostos, paradoxos da alma.

A dor e a ternura se acotovelam, exaustas. Durante os dias inteiros de nossa existência, esses, dentre tantos outros sentimentos aglomerados no escuro e sujo cubículo, se empurram, pisoteiam, à cata de algumas moléculas de oxigênio que tragam um pouco de paz e conforto aos nossos conturbados corações.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Pelotão de ataque contra a taroíra


Por Dag Vulpi

Contei na crônica anterior a minha saga de ter disputado o último duelo com D’Jango (confira aqui), e nela recordei como era farta a quantidade de personagens atípicos e instigantes naquele recém-criado bairro da cidade de Vila Velha, nos idos dos anos 70. Prosseguindo na tentativa de “desenterrar” alguns daqueles personagens, hoje recupero mais um — e a bola da vez é a nada social Maria Taruira.

Taruira era uma senhora esquisitona e solitária; morava sozinha num pequeno barraco escondido no meio do matagal do morro do bairro Soteco. Magra ao extremo, sempre descabelada e suja, vestia-se e alimentava-se com o pouco que, vez ou outra, era deixado à sua porta por alguma alma que se sensibilizava com a situação da infeliz. Não era grata — longe disso — gratidão era uma das muitas palavras que não faziam parte do seu restrito e particular dicionário. As senhoras que levavam roupas e alimentos precisavam ser discretas: deixar as sacolas nas imediações do barraco e não permanecer muito tempo por ali, pois corriam o risco de receber, como paga, uma lata de urina bem no meio da fuça. Isso mesmo — a infeliz guardava seus excrementos dentro de uma lata, e aquela era sua arma de defesa, mesmo quando defender-se não se fazia necessário.

Antissocial além do extremo, ela detestava quando alguém se aproximava do seu bangalô. O desavisado que passasse ali por perto era, de imediato, rechaçado: primeiro ela sambava o conteúdo da bendita lata e, logo na sequência, o infeliz ouviria um grande e seleto repertório de palavrões e todo o azar de praguices. Seu improviso para descompor o semelhante era certeiro como nenhum outro. Não foram raras as vezes em que senhoras preocupadas com a tal retornaram chorosas pelo destrato que receberam da desinfeliz.

Deixa estar que parte da rabugice da infeliz era injustificada — já outra, nem tanto — pois ela sofria com a molecada das redondezas. A maioria dos meninos tinha pavor da velhota; porém, quando reunidos, era ela quem cortava um dobrado com a molecada.

Ainda recordo-me dos preparativos que fazíamos na tarde que antecedia o dia em que tirávamos para azucriná-la. Cada um deveria levar o estilingue e um embornal cheio de pelotas que recolhíamos próximos aos trilhos da estrada férrea de São Torquato, por onde passavam os vagões com minério vindos de MG com destino ao porto de Tubarão, da recentemente inaugurada Vale do Rio Doce. O Terminal de Tubarão iniciou suas operações em 1962, pela então Companhia Vale do Rio Doce, através de um projeto pioneiro idealizado por Eliezer Batista.

Normalmente, aos sábados, o local da reunião era na minha casa, que ficava estrategicamente no pé do morro que seria o alvo de nosso ataque. Havia dias em que somávamos mais de quinze moleques, e dali subíamos com a desculpa de que iríamos caçar passarinho. Naquela época ainda não tínhamos consciência do politicamente correto, e matar rolinha com estilingue era um comportamento normal da gurizada. Pois bem, subíamos o morro e ficávamos escondidos nas moitas, de forma a ter um bom ângulo para o ataque. Não tínhamos como alvo a pobre da Taruira, mas sim seu barraco, que era de madeira, porém tinha o teto e uma das laterais revestidos por zinco — e esse detalhe transformava o impacto de uma simples bolinha de minério num barulho ensurdecedor. Imaginemos então dezenas dessas pelotas chocando-se contra o zinco ao mesmo tempo!

E era tudo muito bem planejado: disparávamos uma saraivada de pelotas direto no telhado e na lateral de zinco, e nos escondíamos todos ao mesmo tempo; recarregávamos nossos estilingues e sapecávamos outra rajada de pelotas. A esta altura, a pobre infeliz já estava quase louca: saía de dentro do barraco com os olhos esbugalhados e com sua costumeira cabeleira desarrumada, xingando a tudo e a todos. E nós saíamos em disparada morro abaixo, felizes da vida e com um gostoso sentimento de realização pessoal e coletiva — afinal, era naquele momento que tínhamos a impressão de estar devolvendo, com juros, todo o pânico que ela nos causava quando nos surpreendia solitários nas ruas do bairro. E a carreira morro abaixo só teria fim quando cada um de nós estivesse na segurança de sua casa.

Hoje, essas recordações chegam acompanhadas de certo arrependimento — mas, na época, era muito prazeroso. Lembro que, mais tarde, nos reuníamos para comentar quão gratificante havia sido aquela aventura e como cada um de nós havia sido corajoso por ter enfrentado a terrível Taruira.

Anos mais tarde, a infeliz foi hospitalizada; fora acometida por uma grave tuberculose, e nunca mais se ouviu notícias dela.  

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Há situações em que até mesmo os monges tibetanos tascam um: “פאַקינג גענעם”


Por Dag Vulpi

Há momentos em nossas vidas que é imprescindível manter a fleuma,  mesmo quando tudo pareça estar conspirando para que as coisas caminhem para o lado inverso daquele que pretendíamos seguir, tornando nossa jornada ainda mais árdua, porém, ainda assim devemos manter o autocontrole, e conter a fúria do monstro que vive adormecido dentro de cada um de nós.    

Manter o autocontrole diante de determinadas circunstancia é de tal forma escabroso, que não seria proditório deduzir que mesmo o mais puritano dos monges tibetanos na plenitude de seu retiro espiritual sucumbiria, e não suportando o peso do revés imposto pelo destino, vociferaria na imensidão silenciosa e gélida do Himalaia a translúcida e harmoniosa frase: “פאַקינג גענעם”, que traduzida para o português seria mais ou menos um “p.q.p”. E por certo ouviria como resposta um não menos sonoro eco vindo da montanha dizendo: וועט נעמען עס אַרויף די טאָכעס!”, que não poderei traduzir aqui, mas adianto que tem  tudo haver com o famoso "vai para aquele lugar".

Pois bem, foi num desses momentos adversos e fora de controle que o extrovertido e sempre de bem com a vida “Beija-flor” foi pego pelo destino.


Beija-flor é o apelido de um conhecido cidadão morador do bairro da Glória, sujeito de boa índole e de muitas amizades. Trabalha na prefeitura da cidade de Vila Velha no Espírito Santo a mais de 30 anos. Beija-flor conseguiu essa longevidade profissional graças aos seus bons serviços prestados, raridade em cargos públicos desse Brasil varonil, não a longevidade na função, mas sim a prestação de bons serviços para a comunidade.

O fato de trabalhar durante tantos anos na prefeitura rendeu-lhe alguns “privilégios”, comuns a todos que tiveram a sorte de conseguir entrar para os quadros do setor publico. E desses benefícios coerentemente o protagonista deste conto nunca abriu mão.

Depois de 30 anos trabalhando no mesmo setor daquela prefeitura Beija-flor já havia presenciado uma grande rotatividade nos cargos públicos, nesse tempo passaram por ali no mínimo uns seis ou sete prefeitos, mais de quatorze secretários, e funcionários do segundo escalão certamente foram mais de mil, e o velho Beija-flor foi resistindo a todas as variáveis ideológicas que cada político trazia e levava junto com seus mandatos.

Como benefício por seu longo período prestando serviços naquele mesmo setor Beija-flor tornara-se mesmo sem ser, um tipo de chefe daquele departamento. Portanto, era ele quem determinava seus horários de entrada e saída e até mesmo suas férias era ele que determinava quando seriam gozadas, resumindo ele era o chefe dele mesmo, e talvez isso também justifique os seus 30 anos de serviço.

De acordo com as regras, a maioria dos chefes que ocuparam funções naquela, e nas demais secretarias das prefeituras espalhadas por esse Brasil de meu Deus, conquistaram aquele espaço por terem sido apadrinhados pelos prefeitos, graças aos pagamentos de compromissos políticos celebrados durante as campanhas eleitorais, ou seja, o velho toma lá-da-cá, me ajuda agora que depois de eleito não esquecerei de ti. Comprometimento com o conhecimento técnico que o secretário terá com a pasta que ele irá assumir não é preocupação de nenhum prefeito, e vamos que vamos, pois já dei minha pincelada, e a proposta deste artigo não é somente esse.

Voltemos ao boa bisca, boêmio e possuidor de alguns vícios que é nosso protagonista. Vícios, aliás, quase todos nós temos. E um dos vícios do Beija-flor deriva do seu próprio apelido, que é o de sentir prazer de possuir pássaros canoros em cativeiro. Ele não abria mão de ter em seu seleto plantel pássaros de qualidade, e em suas sempre belas e detalhadas gaiolas era certo observar a presença de um bom curió paracambi repetidor, Uns dois a três coleirinhas tui-tui e uns dois trinca-ferro bom-dia-seu-chico.

Para ele criar estes pássaros em gaiola não era um vicio, mas uma grande paixão, por vezes aqueles pequenos e emplumados seres traziam-lhe grandes alegrias, ganhando troféus por serem bem sucedidos nos torneios de canto que eram organizados nos clubes da cidade, normalmente esses eventos aconteciam aos sábados, onde se reuniam, ainda hoje esta pratica existe (ela é regulamentada pelo IBAMA) um grande número de apaixonados pelo mesmo prazer e colocavam suas gaiolas penduradas em pedestais uma próximas às outras, sendo o vencedor o pássaro que desse o maior número de canto num determinado período de tempo.

Porém, como nem tudo na vida é somente sorriso, e até o mais famoso é falso, que o diga Gioconda, a vida também lhe reservou momentos de desilusões.

Fato não permitido por passarinheiro que se preze que é o caso do Beija-flor são os questionamentos quanto à qualidade de seus pássaros e a legitimidade do troféu ganho em torneios organizados e por decisão unanime dos juízes, ainda que a organização do evento tenha sido custeada por nosso protagonista, assim como, o pagamento dos honorários dos “juízes” do torneio tenha saído do seu bolso.

Pobre do infeliz que ousasse tecer críticas depreciativas aos canoros do Beija-flor. Seus pupilos eram perfeitos aos seus olhos, e quem não concordasse era de imediato rechaçado, e por ele tachado como sendo uma pessoa de opinião inconsequente e leiga no assunto. Seus pássaros sempre eram os melhores da região e ponto final. Porém, como o inevitável de Almeida cedo ou tarde acaba aparecendo, so seria uma questão de tempo.


Era um belo sábado ensolarado de verão, e o torneio terminara há pouco, os pássaros já haviam sido devidamente recolhidos e os passarinheiros degustavam uma deliciosa cerveja gelada enquanto contavam cada um a seu jeito as proezas de seus pupilos empenados. Todos naquela mesa sorriam, mas o mais feliz era nosso protagonista, afinal seu coleira ficou em primeiro lugar geral na contagem de cantos e seu trinca-ferro havia ficado em segundo na sua categoria, perdera por um canto de diferença para o trinca ferro de um amigo.

Na roda de amigos a harmonia reinava absoluta, até que um tal de mineiro aproximou-se da mesa, e segurando numa das mãos uma lata de refrigerante e na outra um canudo que sem sucesso tentava introduzir no interior da lata, aproximou-se ainda mais e, olhando diretamente para os olhos do Beija-flor falou: “isso foi roubo, tem gente aqui que paga para os pássaros ganharem” e deu uma pausa, nesse momento Beija-flor ficou cego, levantou-se num golpe só e ficou frente a frente com o tal mineiro e falou bem alto: “se você for homem repita o que você falou seu comedor de queijos duma figa”, quase explodindo de raiva. E o tal mineiro deu um passo a traz e repetiu: “isso foi um roubo, eu estava lá e vi, o seu trinca ferro deveria ficar em primeiro lugar, o senhor foi roubado, o juiz deixou de contar dois cantos que o seu pássaro deu”. Naquele exato momento Beija-flor ficou sem chão, sentou-se, respirou fundo e falou: “Mineiro não faça mais isso, eu quase tive um troço, você sabe que eu sou cardíaco”! E as gargalhadas tomaram conta do ambiente.

Podemos dizer sem medo de cometer erros que os momentos mais felizes vividos pelo Beija-flor foram quase todos atribuídos aos triunfos de seus pássaros, em especial ao seu coleirinha “Pepê”.

Se nos sábados o ponto de encontro dos passarinheiros era no clube, no domingo era na praça do bairro. Ali se reunia toda a galera do bairro e imediações, porém não havia juízes, muito menos regras, aqueles que chegavam mais cedo escolhiam os melhores locais para pendurar suas gaiolas. Evitava-se pendura-las muito próximas à rua, pois alguns pássaros assustavam-se com o movimento dos transeuntes, onde muitos daqueles levavam seus cachorros para passear e isso provocava pânico em alguns pássaros, deixando-os praticamente mudos durante quase todo o tempo.   

Para este encontro de pássaros na praça diferentemente do termo torneio que era dado no clube, ali o evento era conhecido por “racha”, mas o objetivo era o mesmo, ou seja, ver qual pássaro era o que mais cantava. Mas ali, por não haver regras claras tudo era diferente e dificilmente o pássaro do nosso protagonista saiam-se bem, fato que o obrigava a quase sempre se retirar antes do fim do racha. Como a praça era próxima à sua casa ele atravessava a rua e parava no bar do Nilton para tomar uma cerveja e reclamar da desorganização que se tornara o tradicional racha de tanto anos. 

O que perturbava de fato o nosso protagonista era a presença de um velho desafeto nos rachas dominicais. Depois que ele e o Carlinhos Preá discutiram motivados pela paixão de seus pássaros, o racha nunca mais foi o mesmo para ele. Seu Carlos, ou “Carlinhos Preá” como é conhecido é vizinho de longa data, mora na mesma rua e sua paixão por pássaros também é grande. Porém, por mais que os dois tivessem gostos parecidos, ainda assim seus pontos de vista sempre foram divergentes, em qualquer situação ou assunto.

Aquela rixa era antiga, atribuída a fatos ocorridos quando ainda muito jovens, e que o passar dos anos não contribuiu para o consenso. Difícil era saber quem estava com a razão, se é que alguém a tivesse.

Papo comum e recorrente era a afirmativa de ambos em se dizerem proprietários dos melhores e mais belos pássaros da região, nunca se entenderam quanto a isso, aliás, não se entendiam em quase nada. Mas vamos à diante.

O bom e velho Beija-flor acordou às quatro da manhã naquela segunda feira, aliás, acordar cedo era costume antigo, acordava fazia o café e ia tratar das suas preciosidades, ao todo eram dez pássaros (todos devidamente registrados no IBAMA conforme determina a Lei).  Essa tarefa diária consumia-lhe uma hora, para higienizar as gaiolas e trocar a água e comida.

Como de costume ele levantou, ligou o rádio que estava sempre sintonizado na AM, onde tocava o seu programa matinal predileto, música ali só caipira e da boa, e o locutor também era o seu preferido, pois caprichava no linguajar interiorano.

Ele encheu a chaleira com água da torneira e quando a colocou sobre o fogão para aquecer a água do café, ouviu um ruído que vinha do seu quintal, imediatamente ele abriu a janela e espiou para fora, mesmo estando escuro deu para perceber que no seu ali havia um desconhecido, e que o tal carregava às costas uma botija de gás.

E mesmo antes que ele questionasse a presença do intruso em sua propriedade, o sujeito se antecipou indagando-o se havia por parte do Beija-flor algum interesse em comprar a botija de gás, dizendo que aquela estaria cheia, e que precisaria vendê-la para comprar remédio para o filho pequeno. Beija-flor pensou por alguns segundos e respondeu que não tinha interesse “vai que seja fruto de algum roubo” pensou ele, e em seguida pediu para o cidadão se retirar de seu quintal, e assim foi feito, o cidadão desculpou-se pelo incomodo e retirou-se levando a botija. Beija-flor certificou-se de que o cidadão realmente havia se retirado, e voltou aos seus afazeres.

Ao tentar acender o fogo, teve a primeira decepção do dia, o fogo não acendeu, tentou duas, três vezes e nada, era inevitável, o gás havia acabado. Chateado com a situação lamentou-se pela oportunidade perdida “eu poderia ter comprado a botija daquele infeliz, teria ajudado um filho de Deus, e agora não ficaria sem café até o comércio abrir” pensou ele. Mas fazer o que, não havia outro jeito, naquele momento o que poderia ser feito além de esperar o comércio abrir, seria adiantar o processo da troca de botijas, soltando a válvula que fica presa à botija, e foi isso que ele foi fazer.

Acendeu a lâmpada da área externa, e se dirigiu para o local onde estava instalada a botija, porém, ao chegar lá só avistou a mangueira, percebendo que a botija não se encontrava mais lá, alguém já havia “adiantado” o seu serviço.

Beija-flor não se conteve, sambou o boné no chão e praguejou tudo o que não devia contra o seu indesejável visitante matutino. Lembram-se do monge tibetano que foi mencionado no inicio deste texto? E aí será que mesmo ele não soltaria um belo de um: “פאַקינג גענעם” numa situação desta?

Mas dizem que azar pouco é bobagem, e apesar do nosso protagonista ser um sujeito calejado pelo tempo, ter muitos anos de praia e ter passado 30 dos seus anos no meio daquela galera da prefeitura, onde o mais bobo dá nó em pingo d’água ele cometeu a imprudência de comentar o fato ocorrido naquela infeliz madrugada logo para o Suíno. Suíno era o apelido do dono da quitanda, e falar para o suíno era o mesmo que pagar carro de som para divulgar falecimento de padre pelo bairro afora.

Antes das nove da manhã o bairro todo já estava sabendo do ocorrido, e o pior, com exageros, afinal a galera não perderia uma oportunidade daquelas.

Beija-flor pela primeira vez sentiu o dissabor de se encontrar na situação de ser o “bola da vez”, passou a ser o alvo do achincalhamento coletivo. Ninguém o poupava, primeiro foi uma enorme fila de crianças seguindo seu rumo para o colégio, mesmo as crianças das ruas vizinhas naquele dia resolveram passar por ali, algumas mães fingiram intervir pedindo para a criançada tentar se conter, ainda que muitas daquelas senhoras não conseguissem esconder o que realmente sentiam, seus olhares debochados traduziam seus verdadeiros desejos. Depois vieram as beatas em procissão, nunca foram tantas a seguir juntas para a igreja no mesmo horário, e ao perceberam a presença do infeliz colocaram seus lenços em suas bocas escondendo suas dentaduras amarelas e gastas, demonstrando o quanto até aquelas octogenárias podem ser cruéis.  

Desta vez foi inevitável, Beija-flor que durante toda sua vida fora um gozador nato, tornara-se o motivo da chacota de todo o bairro e das Redondezas. Foi quando ele entendeu o significado daquele maldito quadro que um antigo prefeito havia pendurado na sala onde trabalhou por todo aquele tempo, Muitas vezes ele comentou com outros amigos: “O Vasquinho (vasquinho foi um antigo prefeito de Vila Velha) deve estar ficando gaga, ele pendurou um quadro na minha sala com os seguintes dizeres; SER PEDRA É FÁCIL, DIFICIL É SER VIDRAÇA”! Pois é Beija-flor é isso aí, o Vasquinho estava certo! Ou não?

Não houve outra saida, Beija-flor fez por merecer sua autonomia e se autoconcedeu umas férias forçadas. Foi passar uns tempos bem longe, na casa de um irmão que morava no interior. Não havia escolha, ou saia para um retiro e aguardar a poeira baixar ou fazer uma bobagem.

Beija-flor ficou chateado durante um bom tempo, mas felizmente tudo acabou bem, porém ele perdeu o status de o esperto da área, e vez ou outra aparece um infeliz que lembra esse ocorrido.


Desta vez a lembrança foi desse que agora assina esta postagem.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Meu último duelo com D’jango


Por Dag Vulpi

O terror maior para a meninada daqueles dias era principalmente os personagens dali mesmo, residentes naquele, ou em bairros avizinhados. E aquela era uma época propícia para a proliferação daqueles inusitados personagens, afinal estávamos em plenos anos 70, onde, apesar da ditadura, a chance de sucesso nas cidades ainda era maior que a do interior, causando assim um grande êxodo, e dos recantos brasileiros mais longínquos partiam todos os tipos de pessoas, cada uma com suas peculiaridades culturais, porém tendo em comum a esperança de dias melhores nas cidades que as acolheriam.

Minha família estava entre aquelas que tomaram a decisão de tentar mudar o rumo de sua história, e com quase dois anos vivendo aquela nova realidade eu já me sentia um veterano e bastante ambientado.

Nasci, e até então havia morado numa grande fazenda de cultivo de café localizada no interior do Espírito Santo, porém, apesar de ela ser de propriedade do meu avô paterno, não era garantia de um futuro animador para nossa família, pois meus pais eram meeiros da fazenda, e todo o pouco que colhiam era dividido em partes equivalentes com o proprietário das terras, no caso meu avô. Mas este é um assunto que tratarei em detalhes em postagem futura, por hora tratarei de alguns personagens que viviam no Soteco[1] dos anos 70.

O bairro já estava apinhado de pessoas “diferentes”, diferentes aos nossos olhares, nós que éramos as crianças que ali dividiam suas expectativas de um futuro melhor. Ainda assim, a cada caminhão que chegava trazendo uma nova mudança, trazia também a garantia de mais um para a nossa já extensa lista de personagens.

Sentávamos todos do outro lado da rua e ficávamos observando cada um que descia daquelas carrocerias e boleias de caminhão. Não tardava para escolhermos o pseudônimo para o mais novo personagem da rua. Bastava que ele tivesse a infelicidade de, aos nossos olhos, ficar fora dos parâmetros da normalidade. E para isso não seria preciso muita coisa, um penteado, um sorriso, um sotaque, uma frase ou até mesmo um pisar em falso já seria suficiente para cair em desgraça.

Felizmente, para nós, naquela época ainda não existia o tal do politicamente correto, o que hoje seria chamado de bullying, e tudo era visto como brincadeira de crianças, e assim, na falta de opções encontrávamos os motivos para nos divertir.

O bairro já contava com personalidades como: Patronzinho, Maria Sujinha, D’jango, Gabiroba, Maria Taroira, Galerão, Índio, Paulinho Caveirinha etc. Cada um com sua peculiaridade, e diga-se de passagem, uns com mais peculiaridades que os outros.

Estes personagens eram motivo de diversão para alguns, aí eu estou incluso, e medo para outros, algumas crianças ao vê-los mesmo de longe já eram acometidas por ataques de desespero. Havia inclusive aquelas que nem saíam de casa, motivados pelo pavor que sentiam por algumas daquelas personalidades como o sr. D’jango por exemplo.

D’jango era um senhor alto, forte, caladão e sério, sempre com seu habitual chapéu preto e de grandes abas. Ele passava os dias perambulando pelas ruas do bairro. O sujeito não conversava com ninguém, e a molecada não lhe dava tréguas, ele passou a de fato odiar a criançada daquele bairro. Tornando-se assim um “perigo” para os mais pequeninos e os menos avisados.

Por algum motivo desconhecido em determinada ocasião o D’jango passou a frequentar as imediações do colégio Candido Marinho, que era na época o único do bairro, e consequentemente o local obrigatório de concentração de toda a criançada.

Ele sempre aparecia exatamente nos horários das entradas, recreio e saídas. Parece que havia percebido que, ao invés de fugir, a melhor tática era enfrentar a molecada, e esse seu novo comportamento causou preocupação, não somente para os pais, mas também para Dona Glórinha[2], diretora do colégio.

Nós, os veteranos, já com os nossos oito a dez anos de idade já não tínhamos mais medo do tal, e fazíamos questão de sermos os bandidos daquele faroeste psicológico. Por precaução andávamos sempre em grupos e com nossas “armas” de madeira no cinto de nossos shorts, sempre preparados para sacar e disparar o mais rápido possível, assim que o avistássemos.

Era uma loucura, aquela turma de guris “atirando” com o som da boca, e correndo o mais rápido que suas pernas permitiam, e aquele gigante todo desengonçado espumando de raiva e correndo atrás. Mas ele nunca conseguia ser páreo para a velocidade daqueles pestinhas.

Até que um belo dia um daqueles moleques viu-se obrigado a sair sozinho naquelas ruas dominadas pelo abominável D’Jango. O moleque ainda tentou argumentar com sua mãe de que iria até a mercearia mais tarde, pois naquele momento não seria possível, mas a mãe do menino não quis saber de conversa, e não houve outra saída, e assim ele foi, olhou para um lado, para o outro e a rua estava deserta. Gritou o nome do amigo que morava em frente e o silêncio foi a única resposta que ouviu. Não havia outra saída, teria que enfrentar o perigo sozinho. Sequer pegou a “arma”, pois sabia que ela só complicaria ainda mais a situação. Saiu nas pontas dos pés e esgueirando-se pelas cercas das casas vizinhas, a mercearia Sipolatti[3] nunca fora tão distante, mas felizmente chegou são e salvo, entrou, comprou o que sua mãe havia ordenado, e assim que o Tio Severino[4] anotou a despesa na caderneta ele saiu, e conforme a tática que funcionou na vinda ele foi de mansinho pelas beiradas das cercas, porém, desta vez a sorte havia ficado na mercearia, e mal chegou na primeira esquina deparou-se com o mais abominável dos seus pesadelos, isso mesmo, D’Jango o espreitara na ida, e bastou a espera de sua volta para sacramentar de vez o duelo há muito aguardado. Ainda lembro-me do calor daquele líquido que escorreu por minhas pernas abaixo, isso mesmo, o infeliz do moleque era eu, olhei para aqueles olhos vermelhos e sedentos por sangue pela primeira vez, senti que minha hora havia chegado muito antes do imaginado, mas para minha surpresa ele me poupou a vida, insinuou um sorriso amarelo e falho e se moveu para o lado, deixando o caminho livre para mim. Fiquei petrificado, queria desculpar-me, porem a voz não saiu, peguei a reta com toda a velocidade e energia dos meus dez anos, e aquela foi a volta da mercearia mais rápida da minha vida.

Aquele foi o meu último duelo com o D’jango, e de fato, assim como nos faroestes do cinema D’jango foi o artista dessa história.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Futebol, política e drogas parece ser uma combinação perfeita na terra do queijo.

Por Raquel Santana - Publicado originalmente no grupo Consciência Política (Facebook)


Alienação! Eu só pediria licença para lembrar que os alienados são precisamente os que têm uma ideia fixa." (Mario Quintana)

Ideia fixa dos brasileiros? Futebol!
Apenas isso para explicar e tentar entender esse fenômeno social especificamente em Belo Horizonte. Méritos à parte do time campeão do brasileirão 2013, o Cruzeiro com todos seus jogadores e equipe campeã merecedores do título.

O certo é comprovar as duras penas, o quanto essa ideia fixa pode causar uma alienação tão prejudicial no seu meio social. "Coincidentemente" um ex-presidente do Cruzeiro e atual Senador da República, tem seu nome e da sua família envolvido em um caso de tráfico de drogas dos maiores que se tem notícias nesse país; no sentido das "importantes e influentes" pessoas envolvidas nesse caso.

Por mais que se responsabilize apenas o piloto do helicóptero, é impossível negar o envolvimento do filho do Senador, o Deputado Estadual por Minas Gerais Gustavo Perrela. Onde esse piloto era seu principal assessor, utilizando o helicóptero apenas sob ordens e consentimento do Deputado.

Mas o Cruzeiro é campeão!! Quem quer saber disso? Muita torcida! Muita alegria (justa) de todos!

A direção do Cruzeiro na comemoração do título resolveu distribuir bebidas e patrocinar show para sua fiel torcida após o término do jogo, com a consagração do time campeão! STOP! Briga e vandalismo durante a comemoração do título, entre os próprios torcedores do Cruzeiro, que fazem parte de torcidas organizadas e rivais, que torcem pelo mesmo time! ?

Pancadaria geral! Delegacias superlotadas durante madrugada e amanhecer do novo dia!

Apresentador do "Globo Esporte" faz aquela cara de indignado pelo comportamento da torcida e fingindo espanto diante dessa realidade COMUM nos estádios e ruas desse país!

Sim! O quase MEIA TONELADA DE COCAÍNA!!! Quem é o "DONO"??? Quem vai "reclamar" por ela na PF?

Ideia fixa agora de todos? Cruzeiro campeão sul-americano! Cruzeiro campeão mundial! 2014 nos aguarde!! Os Perrelas e seus eleitores estarão "comemorando" por tanta vitória! Por tanta alienação!

Brasil, paraíso de férias para político ladrão! E traficante também...

FALA SÉRIO!  

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O crítico de bolso bacana


Postagem indicada pelo amigo Paulo Carneiro*
Por Luiz Felipe Pondé**

Um dos traços essenciais de nossa psicologia é que queremos ser aceitos. Muitos filósofos, entre eles Adam Smith (1723-1790), diziam que nossa imaginação é constantemente presa à inquietação de como somos vistos pelos outros, fato este que é parte saudável da vida moral social, mas que também facilmente degenera numa angústia de dependência afetiva destruidora da autonomia.

Uma das formas mais seguras de se sentir aceito pelo grupo é desenvolver opiniões de rebanho. No fundo, temos horror a sermos recusados pelo bando, mas, hoje em dia, esse desejo de agradar é avassalador.

As redes sociais e sua mesmice brega, espaço de repetição do irrelevante, são prova de nossa condição de rebanho como pilar da (in)segurança psicológica.

As redes sociais criaram um novo perfil, o do crítico de bolso em versão pós-moderninha. O sonho dessa moçada, que se afoga na irrelevância e no desespero do anonimato cotidiano (que assola todos nós), é ter opiniões sobre as coisas, mas acaba mesmo falando da pizza que comeu ontem ou xingando os inimigos de plantão. O sonho de muitas dessas pessoas é frequentar jantares inteligentes nos quais gente bacana emite opiniões bacanas.

A forma mais fácil de frequentar jantares inteligentes é atacar a igreja, os EUA e a polícia. Mais sofisticado, mas que também garante acesso aos jantares inteligentes das zonas oeste e sul de São Paulo, é dizer que "o modelo social está ultrapassado". Esta frase leva algumas pessoas ao orgasmo (risadas?).

"O modelo social está ultrapassado" é a típica frase de quem quer se passar por crítico (mas, na realidade, é crítico de bolso), porque é a sociedade de mercado (ou como dizia Adam Smith, "commercial society"), a mesma que os comunistas chamam de "capitalismo", que nos retirou da miséria que é o estado natural da vida (e à qual voltamos rapidinho se o Brasil virar a Venezuela de Chávez e Maduro).

Toda riqueza que sustenta esse povo de jantares inteligentes, a começar pelo "bom vinho em conta", é fruto do mesmo modelo que consideram ultrapassado.

Aqui e ali, faça uma caricatura de quem você não consegue enfrentar porque lhe falta repertório conceitual. Diga que são racistas, "sequicistas" e homófobos. Conte, fingindo segredo, que seu filho é do círculo íntimo dos "maravilhosos" meninos do MPL e que sua filha é (incrível!!) black bloc, mas nunca bateu em ninguém.

Assim você chegará à sobremesa (leve, pois em jantares inteligentes ninguém quer engordar, porque sabe que os parceiros de jantares inteligentes são pessoas muito críticas) com segurança, sem dizer nada que ponha em risco sua cidadania de gente bacana.

Mas o que marca essa gente bacana é que na verdade nunca fala, nem tem contato real, com as pessoas fora das escolas de R$ 3.000 que paga para os seus filhos críticos desde os cinco anos de idade frequentarem, ou do seu círculo profissional chique e/ou da praia chique onde tem sua casa de praia típica de praias chiques.

O problema, quando você é um cidadão de jantares inteligentes, é que você acaba mesmo alienado e acreditando nas suas próprias críticas de bolso. Mas vamos ao que interessa. Vamos falar de um dos tópicos que autorizam você a se achar bacana e a frequentar jantares inteligentes: a polícia.

Outro dia, por acaso, conversei por cerca de três horas com um policial militar aposentado do Estado de São Paulo. Muito instrutivo, uma vez que sou egresso do mundo de gente bacana, que, portanto, nada sabe acerca do mundo real.

Ele definia sua classe como aquela que vive com a "mão no lixo" que essa gente bacana nunca vê de fato --a não ser quando resolve fazer ensaios fotográficos sobre "injustiça social". Reclama de como eles são invisíveis e de como a sociedade, na sua maioria, os considera parte do lixo. Um sofrimento profundo, devido a essa invisibilidade, marcava seu rosto de solitário. A polícia é um dos setores mais maltratados da sociedade, apesar de essencial.

Essa gente bacana sai correndo do jantar inteligente para o carro, com medo, sonhando com um baseado e uma bike em Amsterdã nas férias.

*Paulo Carneiro é fundador e Editor Geral do Jornal O PORRETE

**Luiz Felipe Pondé é filósofo, escritor e ensaísta brasileiro de origem judaica. Seu livro Guia Politicamente Incorreto da Filosofia é um dos mais vendidos do Brasil segundo a lista da revista Veja.

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