Por Leonardo Sarmento* no JusBrasil
Há poucos
dias, tu me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia
estuprar você porque você não merece”. Jair Bolsonaro.
A imunidade
material prevista no art. 53, caput, da Constituição
não é absoluta, pois somente se verifica nos casos em que a conduta possa ter
alguma relação com o exercício do mandato parlamentar.
A garantia
constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. 53, caput)
– que representa um instrumento vital destinado a viabilizar o exercício
independente do mandato representativo – somente protege o membro do Congresso
Nacional, qualquer que seja o âmbito espacial (locus) em que este exerça a
liberdade de opinião (ainda que fora do recinto da própria Casa legislativa),
nas hipóteses específicas em que as suas manifestações guardem conexão com o
desempenho da função legislativa (prática in officio) ou tenham sido proferidas
em razão dela (prática propter officium), eis que a superveniente promulgação
da EC 35/2001 não
ampliou, em sede penal, a abrangência tutelar da cláusula da inviolabilidade. A
prerrogativa indisponível da imunidade material – que constitui garantia
inerente ao desempenho da função parlamentar (não traduzindo, por isso mesmo,
qualquer privilégio de ordem pessoal) – não se estende a palavras, nem a
manifestações do congressista, que se revelem estranhas ao exercício, por ele,
do mandato legislativo. A cláusula constitucional da inviolabilidade (CF, art.
53, caput), para legitimamente proteger o parlamentar, supõe a existência do
necessário nexo de implicação recíproca entre as declarações moralmente
ofensivas, de um lado, e a prática inerente ao ofício congressional, de outro.
Malgrado a
inviolabilidade alcance hoje 'quaisquer opiniões, palavras e votos' do
congressista, ainda quando proferidas fora do exercício formal do mandato, não
cobre as ofensas que, ademais, pelo conteúdo e o contexto em que perpetradas,
sejam de todo alheias à condição de deputado ou senador do agente.
Parcela do STF
tem acentuado que a prerrogativa constitucional da imunidade parlamentar em
sentido material protege o congressista em todas as suas manifestações que
guardem relação com o exercício do mandato, ainda que produzidas fora do
recinto da própria Casa Legislativa (RTJ 131/1039 – RTJ 135/509 – RT 648/318),
ou, com maior razão, quando exteriorizadas no Âmbito do Congresso Nacional (RTJ
133/90).
Em sentido
contrário, Carlos Ayres Britto já entendeu relatando processo que a palavra
'inviolabilidade' significa intocabilidade, intangibilidade do parlamentar
quanto ao cometimento de crime ou contravenção. Tal inviolabilidade é de
natureza material e decorre da função parlamentar, porque em jogo a
representatividade do povo. O art. 53 da CF, com a
redação da Emenda 35, não
reeditou a ressalva quanto aos crimes contra a honra, prevista no art. 32 da
EC 1, de 1969.
Assim, é de se distinguir as situações em que as supostas ofensas são
proferidas dentro e fora do Parlamento. Somente nessas últimas ofensas
irrogadas fora do Parlamento é de se perquirir da chamada conexão com o
exercício do mandato ou com a condição parlamentar. Para os pronunciamentos
feitos no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das
ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da
inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o
parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa. No caso
Bonsonaro, o discurso se deu no plenário da Câmara dos Deputados.
Lamentavelmente,
ao menos na composição de 2014 do STF, vem prevalecendo o entendimento da
maioria que confere a maior amplitude possível à imunidade material
parlamentar, como se pode depreender do voto que segue proferido pelo Min. Luiz
Fux, no AgR RE n. 576.074-RJ, j. 26.04.2011, Primeira Turma, DJe n. 98 de
25.05.2011, em apertado resumo:
Com efeito, o
âmbito de abrangência da cláusula constitucional de imunidade parlamentar
material, prevista no art. 53 da Constituição,
tem sido construído por esta Corte à luz de dois parâmetros de aplicação.
Quando em causa atos praticados no recinto do Parlamento, a referida imunidade
assume contornos absolutos, de modo que a manifestação assim proferida não é
capaz de dar lugar a qualquer tipo de responsabilidade civil ou penal, cabendo
à própria Casa Legislativa promover a apuração, interna corporis, de eventual
ato incompatível com o decoro parlamentar. De outro lado, quando manifestada a
opinião em local distinto, o reconhecimento da imunidade se submete a uma
condicionante, qual seja: a presença de um nexo de causalidade entre o ato e o
exercício da função parlamentar [...].
Com a devida
máxima vênia, o STF revelou certa contradição, porque, em seu início, ficou
registrado que “tal inviolabilidade é de natureza material e decorre da função
parlamentar, porque em jogo a representatividade do povo”. Ora, se a imunidade
material decorre da função parlamentar, como, em seguida, desvinculá-la do
exercício dessa função, pelo simples fato de as palavras, opiniões e votos
serem proferidos no interior da Casa Legislativa, tornando-a, apenas por isso,
de caráter absoluto? Onde o amparo constitucional para se chegar a tanto? Para
tanto, é preciso observar, de início, ser intuitivo que a Constituição
Federal, ao definir o rol de prerrogativas em favor dos parlamentares, o fez
não em razão de um suposto prêmio especial às pessoas que pudessem alcançar
esses cargos de destacada posição estatal, mas para assegurar a plenitude e
total independência de seus titulares no exercício das funções inerentes aos
referidos cargos. Marco Aurélio, entrementes, foi preciso em sua exposição no
sentido que sustentamos:
O objetivo
maior do preceito [art. 53 da Constituição Federal] é viabilizar a atuação
equidistante, independente, sem peias, no exercício do mandato [...]. De modo
algum, tem-se preceito a viabilizar atuação que se faça, de início, estranha ao
exercício do mandato, vindo o Deputado ou Senador a adentrar, sem consequências
jurídicas, o campo da ofensa pessoal, talvez mesmo diante de descompasso na
convivência própria à vida gregária. A não se entender assim, estarão eles
acima do bem e do mal, blindados, a mais não poder, como se o mandato fosse um
escudo polivalente, um escudo intransponível. Cumpre ao Supremo, caso a caso,
perquirir a existência de algum elo entre o que se espera no desempenho do
mandato parlamentar e o que veiculado, principalmente quando isso aconteça fora
da casa legislativa, em entrevista dada à imprensa. Esperemos que com sua nova
composição a discussão retorne ao plenário do Supremo Tribunal Federal e se confira
um entendimento consentâneo com o que a Constituição
da República, de fato, almejou tutelar, que é o livre exercício do mandato.
Ofensas pessoais sem pertinência temática com o exercício do mandato não podem
restar agasalhadas pela imunidade material por absoluto desvio de sua
finalidade constitucional.
Por que não,
tamanho descalabro proferido pelo deputado Bolsonaro, famoso por seus desvios
de opiniões, possa ser reapreciada a questão pelo Supremo Tribunal Federal em
sua nova composição, e assim tenhamos um desfecho constitucional que não vise
blindar o poder, mas sim o exercício pertinente do poder.
Certo
infirmamos que, configurada está incontestavelmente a quebra de decoro
parlamentar. O conceito de decoro é fluido, indeterminado. A Constituição
Federal, contudo, já nos oferece um indicativo a pautar o ato de
interpretação. Quando trata das imunidades, a Carta Política
se refere às "imunidades DE Deputados ou Senadores" (art. 53, § 8º).
Ou seja, as imunidades são prerrogativas exercidas e titularizadas pelos
parlamentares enquanto tal. Já quando cuida do decoro, a Constituição
menciona "decoro parlamentar" (art. 55, II), e não decoro do parlamentar.
Tudo a sinalizar que o verdadeiro titular deste comportamento decoroso, que o
real destinatário da norma constitucional, não é o deputado ou o senador per si,
mas, isto sim, a própria INSTITUIÇÃO DO PARLAMENTO. É ele, Parlamento,
Congresso Nacional, quem tem o direito a que se preserve, através do
comportamento digno de seus membros, sua imagem, sua reputação e sua dignidade.
Saímos do exercício do mandato parlamentar (objeto de proteção pelas
imunidades) e chegamos à honra objetiva do Parlamento, que deve ser protegida
de comportamentos reprováveis por parte de seus membros. São nestes termos que
o nobre deputado Jair Bolsonaro procedeu com quebra do decoro parlamentar
quando em plenário assentou que um de seus pares não mereceria ser estuprada,
deixando implícito que outras mulheres fazem jus ao estupro. Uma vergonha para
o Congresso Nacional contar em seu corpo com um membro deste talante,
respeitando posições em contrário que só estão a reforçar a beleza da
democracia e do direito.
Nesta linha de
raciocínio, podemos conceituar decoro parlamentar, nas palavras de Miguel
Reale, como sendo a "falta de decência no comportamento pessoal, capaz de
desmerecer a Casa dos representantes(incontinência de conduta, embriaguez,
etc.) e falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a
críticas infundadas, injustas e irremediáveis, de forma inconveniente..."
Assim sustentamos pela possibilidade de cassação do mandato político do
parlamentar em comento por quebra do decoro parlamentar.
Adendo: Este
artigo foi finalizado no dia 10/12/14, no dia seguinte, conforme possibilidade
aventada por este trabalho, quatro partidos já entraram com pedido de cassação
do deputado Jair Bolsonaro no Conselho de Ética da Câmara.
Professor
constitucionalista
Professor
constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, colunista do jornal Brasil
247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito
Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e
Processo de Trabalho pela FGV.
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