Por
Márcio Conti* no site da DAHW Brasil
A história
da doença no Brasil e na América inicia-se com a chegada do europeu no
continente. A mesma existia na Europa, com relatos de primeiros diagnósticos em
3.000 A.C, possivelmente chegando a Europa de forma maciça por volta de 300
A.C., possivelmente introduzida por soldados das tropas de Alexandre, o Grande,
contaminados pela moléstia, quando retornaram da Índia e tendo uma evolução
histórica de preconceito e estigma em todas as culturas e países em que
apareceu.
No novo continente cria-se uma situação de catástrofe na população nativa,
potencializada pelo o tráfico de escravos da África, com índices de incidência
e prevalência extremamente elevados, contudo não temos conhecimento de
registros oficiais de números perto dos verdadeiros, porém relatos
historiográficos nos fazem pensar em uma condição de saúde pública grave em
todo o continente. Várias explicações são colocadas, sendo talvez, a mais
fidedigna, decorrente da inexistência de contato anterior destas pessoas com a
Micobactéria causadora da doença, fato que facilitaria o contágio e
desenvolvimento de formas mais graves de apresentação da Hanseníase.
Este momento obscuro de números sobre a doença no país e América do Sul,
precede a grande transformação que ocorre na ciência médica no século XIX com a
descoberta dos microrganismos e em 1874, o norueguês Dr. Gerhard Henrik Armauer
HANSEN, que a estudou e isolou o Micobactéria leprae, torna públicos seus
estudos. A doença milenar que acreditava-se ser um castigo divino, decorrente
da “sujeira da alma e do corpo” passa a ter explicação científica comprovada
deixando o imaginário religioso ou simbólico, pelo menos no meio científico,
para ser mais uma das doenças infecto-contagiosas a serem estudadas objetivando
ter a sua cura definitiva, com certeza esta representação social da ”lepra”,
após quase 150 anos, ainda perdura.
O desafio que se mostrava aos gestores da Saúde decorria da impossibilidade de
interromper a cadeia de transmissão de doença com aspectos simbólicos social
imensos pela da ausência de antimicrobianos que fossem efetivos, mantendo a
ciência na busca de uma solução, que inicialmente foi realizada nos países
nórdicos com o diagnóstico e isolamento compulsório das pessoas infectadas. A
ideia era isolar o doente e assim “quebrar” a cadeia de transmissão,
erradicando a patologia como um problema de saúde pública. No fim do sec. XIX
esta política foi coloca em prática com resultados que satisfizeram as
autoridades da época. Foi o renascimento do Leprosário como área física, pois
até este momento, o doente vivia fora das cidades em condição de mendicância,
não por uma política pública de saúde, porém pelo imenso preconceito social.
O restante do mundo se contamina com esta ideia, não da cura, mas da profilaxia
da contaminação de novas pessoas, surgindo leprosários em todos os países
Ocidente, que tinham como objetivo alcançar os resultados que supostamente a
Noruega havia conseguido. O objetivo, novamente frizo, não é a cura do
paciente,
mas
o controle da doença na sociedade. A segregação dos “leprosos” foi inclusive
tema de discussão nas Conferências Internacionais de Lepra, realizadas nos anos
de 1897 e 1909.
O Brasil não estando de fora deste contexto, a política de profilaxia da
“lepra” foi implementada a partir do Decreto nº 16.300, de 31 de dezembro de
1923, que determinou o isolamento das pessoas com Hanseníase em sanatórios,
hospitais, asilos e colônias agrícolas, posteriormente assumindo a
representação social de Leprosários. A violência contra a pessoa doente era
“justificada” por um suposto bem social maior, que era a não contaminação de
outras. Na prática todo doente era obrigado a viver nestes locais até uma
possível alta médica, esta que não ocorria e na prática condenados a permanecerem
ali por toda a vida já que estamos observando as décadas antes do surgimento de
medicações que possibilitassem a cura.
O primeiro avanço no tratamento da Hanseníase ocorreu na década de 40, com o
desenvolvimento da Dapsona, o único fármaco até então conhecido, que deteve a
doença, porém de forma não constante e com taxas de cura ainda baixas. Ainda
haveriam décadas até que a internação compulsória fosse abandonada decorrente
do melhor entendimento da doença e melhores tratamento, fazendo com que a política
de isolamento para evitar-se a contaminação de outras pessoas fosse abandonada.
A década de 80 e 90 mostram mudanças, sempre com o Ministério da Saúde focado
na cura clínica da doença, fato natural e compreensível após séculos de
tentativas de cura, porém caso o M. leprae acometesse somente a pele, a
hanseníase não teria a importância que tem em saúde pública. Em decorrência do
acometimento do sistema nervoso periférico (terminações nervosas livres e
troncos nervosos) surgem a perda de sensibilidade, as atrofias, paresias e
paralisias musculares que, se não diagnosticadas e tratadas adequadamente,
podem evoluir para incapacidades físicas permanentes e este fato que realmente
torna a doença incapacitante. Devo lembrar que, neste momento que existem ações
para prevenir ou mesmo reabilitar a pessoa que já tem comprometimento, e tal
fato torna a Prevenção e Reabilitação fundamental no tratamento global, caso
não a implementemos de forma efetiva, estaremos repetindo a ideia de tratar
para não contaminar, esquecer a pessoa e suas sequelas e dores.
Não seria justo historicamente e pessoalmente esquecer o Instituto Lauro de
Souza Lima e toda sua Equipe de Médicos, Fisioterapeutas, terapeutas
Ocupacionais, Enfermeiros, Sapateiros e etc. que a partir da década de 70 passa
a ocupar sua atenção com a reabilitação com lideranças históricas como os
Doutores Diltor Opromolla e Frank Duerkersen e o Hospital Alfredo da Matta em
Manaus.
Apesar destes esforços, e com a introdução da cura da doença com a
Poliquiomioterapia (PQT) na década de 90, com o tratamento ambulatorial,
gratuito e nacional, o Governo brasileiro manteve sua atenção somente na cura
clinica do doente. Recentemente observa-se a formação de profissionais com
atenção no diagnóstico precoce das incapacidades objetivando sua prevenção,
porém a reabilitação das sequelas instaladas foram deixadas em uma terra de
ninguém. Pelo número elevado de casos que o pais ainda apresenta, sendo que em
alguns locais não sabemos corretamente o número de casos existentes, ou seja, estamos
ainda lutando para diagnosticar e levar tratamento os que necessitam,
principalmente o meio médico possui pouco ou nenhum interesse na reabilitação,
talvez pela falta de formação acadêmica e os pouquíssimos médicos treinados
para atuarem nesta área especifica, ou o somatório dos dois fatores.
Chegamos ao séc XXI ainda lutando pela cura, pelo diagnóstico e pela quebra da
corrente de transmissão da Hanseníase, sem perceber que estamos negligenciando
milhares de ex-portadores da doença com incapacidades que os tornam socialmente
incapazes de exercerem seu papel pleno na sociedade como pessoas produtivas,
emocionalmente estáveis, com núcleos familiares constituídos, fato que mantém,
agrava o preconceito e estigma social.
Já é momento, ou passamos este, de iniciar um grande programa de diagnóstico de
incapacidades e reabilitação, tratando o paciente de forma plena, integrada e
completa, com a consequente reinserção social, já que até o momento pouco
fizemos neste sentido.
A cura clinica já existe, agora vamos avançar e tratar questões mais complexas
e abrangentes que são as dores destes cidadãos.
*
Márcio Conti (Médico Cirurgião)