Por Dag Vulpi
O crime do próprio avô
(ou: O caso do tio do irmão do filho do pai do outro)
Na pacata região de Caldeirão, interior de Santa Teresa — onde até o vento cochicha as fofocas antes que cheguem ao bar —, uma família conseguiu o impossível: confundir até o cartório. O pai viúvo casou-se com a filha da viúva. O filho do viúvo casou-se com a própria viúva — e o resto, como se diz, foi um nó de parentesco que nem Santo Antônio desatava.
Tudo corria bem até que um deles apareceu morto — e um bilhete deixado pela vítima prometia mais confusão que o próprio casamento da turma.
Diz a sabedoria popular que certas histórias não precisam nascer, apenas renascem de tempos em tempos em novas bocas.
Esta que se conta aqui é uma interpretação literária de um causo antigo, conhecido em várias versões pelo interior do Brasil — e que, no Espírito Santo, ganhou sotaque serrano e endereço certo: Tabócas, em Santa Teresa.
Tudo começou com dois viúvos e dois corações solitários.
O pai, homem vivido, achou consolo na mocidade da filha da viúva. Já o filho, impressionado com a experiência da viúva, casou-se com ela.
E assim, de repente:
-
o pai virou genro do filho;
-
o filho virou sogro do pai;
-
a moça tornou-se madrasta do marido da mãe;
-
a mãe virou nora da própria filha.
Deu-se então que nasceram filhos dos dois casais — e, com eles, a genealogia entrou oficialmente em colapso.
O menino do casal mais velho era, simultaneamente, irmão e tio do menino do casal mais novo.
E como o filho havia se casado com a mãe da esposa do pai, acabou sendo também avô do próprio irmão — ou, como resumiu o padre da paróquia:
“Nessa família, é mais fácil achar o Espírito Santo do que entender o parentesco.”
Até que, numa manhã de domingo, o riso se calou.
Um dos membros da família foi encontrado desfeito de vida no quintal dos fundos, ao lado de um bilhete escrito com tremor e tinta borrada:
“Quem me matou foi o tio do meu irmão.”
A frase caiu como um trovão na vila. Porque ali, todo mundo era tio de alguém e irmão de quase todo mundo.
Chamaram então o doutor Ambrósio Carlini, advogado do distrito — homem de fala enrolada, chapéu gasto e faro apurado para intrigas de herança e galinha sumida.
Ao chegar, examinou o bilhete, coçou o queixo e perguntou:
— E quem é o tio do irmão do defunto?
O silêncio foi geral.
Depois de duas horas de conversa, três cadernos de anotações e vários cafezinhos, o doutor concluiu que o “tio do irmão” podia ser, ao mesmo tempo:
-
o pai,
-
o avô,
-
o genro,
-
o sogro,
-
ou ele próprio, dependendo de quem estivesse contando.
E foi então que Ambrósio decretou:
“Esse caso só se resolve com árvore genealógica, compasso e bênção de padre. Porque aqui o morto é vítima, suspeito e parente dele mesmo.”
Desde aquele dia, o caso ficou conhecido como “O crime do próprio avô”, e até hoje, quando alguém de Caldeirão se casa com parente distante, o povo comenta:
“Cuidado, que depois dá morte e bilhete!”
Reflexão:
No interior, onde o tempo anda devagar e as famílias se multiplicam por afinidade e conveniência, os laços de sangue às vezes viram nós de novela.
E se a lógica não explica, o riso explica por ela.
Afinal, como dizia o velho doutor Ambrósio:
“Família é coisa séria, mas quando o avô é o próprio neto, o melhor é rir pra não enlouquecer.”

