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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O caso do tio do irmão do filho do pai do outro


Por Dag Vulpi

O crime do próprio avô

(ou: O caso do tio do irmão do filho do pai do outro)

Na pacata região de Caldeirão, interior de Santa Teresa — onde até o vento cochicha as fofocas antes que cheguem ao bar —, uma família conseguiu o impossível: confundir até o cartório. O pai viúvo casou-se com a filha da viúva. O filho do viúvo casou-se com a própria viúva — e o resto, como se diz, foi um nó de parentesco que nem Santo Antônio desatava.

Tudo corria bem até que um deles apareceu morto — e um bilhete deixado pela vítima prometia mais confusão que o próprio casamento da turma.


Diz a sabedoria popular que certas histórias não precisam nascer, apenas renascem de tempos em tempos em novas bocas.

Esta que se conta aqui é uma interpretação literária de um causo antigo, conhecido em várias versões pelo interior do Brasil — e que, no Espírito Santo, ganhou sotaque serrano e endereço certo: Tabócas, em Santa Teresa.


Tudo começou com dois viúvos e dois corações solitários.

O pai, homem vivido, achou consolo na mocidade da filha da viúva. Já o filho, impressionado com a experiência da viúva, casou-se com ela.

E assim, de repente:

  • o pai virou genro do filho;

  • o filho virou sogro do pai;

  • a moça tornou-se madrasta do marido da mãe;

  • a mãe virou nora da própria filha.


Deu-se então que nasceram filhos dos dois casais — e, com eles, a genealogia entrou oficialmente em colapso.

O menino do casal mais velho era, simultaneamente, irmão e tio do menino do casal mais novo.

E como o filho havia se casado com a mãe da esposa do pai, acabou sendo também avô do próprio irmão — ou, como resumiu o padre da paróquia:

“Nessa família, é mais fácil achar o Espírito Santo do que entender o parentesco.”


Até que, numa manhã de domingo, o riso se calou.

Um dos membros da família foi encontrado desfeito de vida no quintal dos fundos, ao lado de um bilhete escrito com tremor e tinta borrada:

“Quem me matou foi o tio do meu irmão.”

A frase caiu como um trovão na vila. Porque ali, todo mundo era tio de alguém e irmão de quase todo mundo.


Chamaram então o doutor Ambrósio Carlini, advogado do distrito — homem de fala enrolada, chapéu gasto e faro apurado para intrigas de herança e galinha sumida.

Ao chegar, examinou o bilhete, coçou o queixo e perguntou:
— E quem é o tio do irmão do defunto?

O silêncio foi geral.

Depois de duas horas de conversa, três cadernos de anotações e vários cafezinhos, o doutor concluiu que o “tio do irmão” podia ser, ao mesmo tempo:

  • o pai,

  • o avô,

  • o genro,

  • o sogro,

  • ou ele próprio, dependendo de quem estivesse contando.

E foi então que Ambrósio decretou:

“Esse caso só se resolve com árvore genealógica, compasso e bênção de padre. Porque aqui o morto é vítima, suspeito e parente dele mesmo.”

Desde aquele dia, o caso ficou conhecido como “O crime do próprio avô”, e até hoje, quando alguém de Caldeirão se casa com parente distante, o povo comenta:

“Cuidado, que depois dá morte e bilhete!”


Reflexão:

No interior, onde o tempo anda devagar e as famílias se multiplicam por afinidade e conveniência, os laços de sangue às vezes viram nós de novela.

E se a lógica não explica, o riso explica por ela.

Afinal, como dizia o velho doutor Ambrósio:

Família é coisa séria, mas quando o avô é o próprio neto, o melhor é rir pra não enlouquecer.”

O Dia em que Beija-Flor Perdeu o Gás

 


Por Dag Vulpi

Há dias em que manter a serenidade é um exercício de sobrevivência. Quando tudo conspira contra e a paciência ameaça pedir demissão, é aí que se revela o verdadeiro caráter do sujeito.
E foi num desses dias, lá pelos idos da década de 1990, que o extrovertido, falante e sempre de bem com a vida Beija-Flor, morador do bairro da Glória, em Vila Velha (ES), se viu em apuros — e sem café.

Beija-Flor era figura conhecida na Glória. Homem de boa índole, funcionário da prefeitura há mais de trinta anos, desses que já tinham visto prefeitos, secretários e chefes passarem como as marés da Prainha da Glória
Ele ficou. E sua longevidade no serviço público lhe rendeu certas regalias — as costumeiras do tempo em que o relógio de ponto ainda era de papel e amizade valia mais que protocolo.

Boêmio, bom de conversa, amigo de todos e dono de pequenos vícios — inofensivos e, de certa forma, humanos. Seu maior prazer era criar pássaros: curiós, coleirinhas e trinca-ferros que, segundo ele, cantavam mais bonito que o próprio vento.
Nas rodas de disputa — os famosos “rachas” de sábado — seus pássaros eram imbatíveis. Ou, pelo menos, era assim que ele garantia.
E ai de quem ousasse discordar.

Seu xodó maior atendia por Pepê, um coleirinha valente que, nas manhãs de sol, era motivo de orgulho e briga.
Na mesma rua morava Carlinho Pereá, criador de pássaros e rival de longa data. Os dois se bicavam desde os tempos de juventude — e como em toda boa rivalidade de bairro, ninguém sabia mais quem começou.

Mas o caso de hoje não é sobre o Pepê nem sobre os rachas. É sobre o dia em que Beija-Flor acordou cedo demais e confiou de menos.

Era madrugada. O relógio marcava quatro da manhã quando ele levantou, como sempre, pra preparar o café. Ligou o rádio AM — daqueles com chiado e voz de locutor de interior — e foi direto à cozinha.
De repente, ouviu um barulho no quintal. Espiou pela janela e avistou um sujeito carregando uma botija de gás. O homem, percebendo o flagrante, se apressou em dizer:
— Ô cumpadi, não quer comprar essa botija, não? Tá cheia. Tô vendendo pra comprar remédio pro meu menino.

Beija-Flor desconfiou. “Vai que é roubada”, pensou. E recusou:
— Melhor não, parceiro. Pode seguir teu caminho.

O homem agradeceu, pediu desculpas e sumiu na escuridão.
Beija-Flor voltou satisfeito à cozinha, sentindo-se prudente. Colocou a chaleira, riscou o fósforo — e nada.
O gás havia acabado.

Olhou o relógio e lamentou a ironia:
— Se eu soubesse, tinha comprado a botija daquele infeliz...

Resignado, foi soltar a válvula da botija vazia, mas, ao acender a luz da área, só viu a mangueira solta.
A botija já tinha sido levada.

Beija-Flor jogou o boné no chão e xingou o destino em alto e bom som.
Mas pior que o prejuízo foi o vexame. Bastou comentar o caso com o dono da quitanda — o Suíno — para que, antes das nove da manhã, o bairro inteiro já soubesse do “roubo do gás do Beija-Flor”.
E, como se sabe, fofoca naquela época corria mais rápido que ligação a cobrar.

Virou motivo de riso, o gozador virou gozado, e o rei das piadas foi coroado bobo da vez.
Sem saída, Beija-Flor tirou férias — as primeiras da vida — e se mandou pro interior, pra casa do irmão, esperando o tempo apagar o constrangimento.

O tempo passou. O caso virou história de esquina, lembrança de bar e, hoje, memória de um tempo em que os risos eram mais leves e os vexames, mais humanos.

Ouvi essa história pessoalmente, contada num fim de tarde entre risadas, café coado e cheiro de serragem, durante uma conversa entre o próprio Beija-Flor e o meu falecido sogro, seu Bino — também amante dos pássaros e exímio fabricante de gaiolas caseiras.
Homem de fala mansa, riso fácil e alma simples, seu Bino, aliás, terá em breve suas próprias histórias recordadas neste mesmo espaço.

E eu, que testemunhei aquele diálogo, deixo aqui o registro do dia em que Beija-Flor perdeu o gás — e parte da pose.


Reflexão

As histórias que ouvimos dos antigos têm um perfume que o tempo não apaga.
São pequenas memórias que, contadas ao pé da conversa, mantêm viva a essência dos dias simples — quando bastava um rádio chiando na cozinha e uma boa risada no quintal pra vida parecer mais leve.

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