Por Dag Vulpi
Há
dias em que manter a serenidade é um exercício de sobrevivência.
Quando tudo conspira contra e a paciência ameaça pedir demissão, é
aí que se revela o verdadeiro caráter do sujeito.
E foi num
desses dias, lá pelos idos da década de 1990, que
o extrovertido, falante e sempre de bem com a vida Beija-Flor,
morador do bairro da Glória, em Vila Velha (ES), se
viu em apuros — e sem café.
Beija-Flor
era figura conhecida na Glória. Homem de boa índole, funcionário
da prefeitura há mais de trinta anos, desses que já tinham visto
prefeitos, secretários e chefes passarem como as marés da Prainha
da Glória
Ele ficou. E sua longevidade no serviço público lhe
rendeu certas regalias — as costumeiras do tempo em que o relógio
de ponto ainda era de papel e amizade valia mais que protocolo.
Boêmio,
bom de conversa, amigo de todos e dono de pequenos vícios —
inofensivos e, de certa forma, humanos. Seu maior prazer era criar
pássaros: curiós, coleirinhas e trinca-ferros que,
segundo ele, cantavam mais bonito que o próprio vento.
Nas
rodas de disputa — os famosos “rachas” de sábado
— seus pássaros eram imbatíveis. Ou, pelo menos, era assim que
ele garantia.
E ai de quem ousasse discordar.
Seu
xodó maior atendia por Pepê, um coleirinha valente
que, nas manhãs de sol, era motivo de orgulho e briga.
Na mesma
rua morava Carlinho Pereá, criador de pássaros e
rival de longa data. Os dois se bicavam desde os tempos de juventude
— e como em toda boa rivalidade de bairro, ninguém sabia mais quem
começou.
Mas o caso de hoje não é sobre o Pepê nem sobre os rachas. É sobre o dia em que Beija-Flor acordou cedo demais e confiou de menos.
Era
madrugada. O relógio marcava quatro da manhã quando ele levantou,
como sempre, pra preparar o café. Ligou o rádio AM — daqueles com
chiado e voz de locutor de interior — e foi direto à cozinha.
De
repente, ouviu um barulho no quintal. Espiou pela janela e avistou um
sujeito carregando uma botija de gás. O homem,
percebendo o flagrante, se apressou em dizer:
— Ô cumpadi,
não quer comprar essa botija, não? Tá cheia. Tô vendendo pra
comprar remédio pro meu menino.
Beija-Flor
desconfiou. “Vai que é roubada”, pensou. E recusou:
—
Melhor não, parceiro. Pode seguir teu caminho.
O homem
agradeceu, pediu desculpas e sumiu na escuridão.
Beija-Flor
voltou satisfeito à cozinha, sentindo-se prudente. Colocou a
chaleira, riscou o fósforo — e nada.
O gás havia acabado.
Olhou o
relógio e lamentou a ironia:
— Se eu soubesse, tinha comprado
a botija daquele infeliz...
Resignado,
foi soltar a válvula da botija vazia, mas, ao acender a luz da área,
só viu a mangueira solta.
A botija já tinha
sido levada.
Beija-Flor
jogou o boné no chão e xingou o destino em alto e bom som.
Mas
pior que o prejuízo foi o vexame. Bastou comentar o caso com o dono
da quitanda — o Suíno — para que, antes das
nove da manhã, o bairro inteiro já soubesse do “roubo do gás do
Beija-Flor”.
E, como se sabe, fofoca naquela época corria
mais rápido que ligação a cobrar.
Virou
motivo de riso, o gozador virou gozado, e o rei das piadas foi
coroado bobo da vez.
Sem saída, Beija-Flor tirou férias — as
primeiras da vida — e se mandou pro interior, pra casa do irmão,
esperando o tempo apagar o constrangimento.
O tempo passou. O caso virou história de esquina, lembrança de bar e, hoje, memória de um tempo em que os risos eram mais leves e os vexames, mais humanos.
Ouvi
essa história pessoalmente, contada num fim de tarde entre
risadas, café coado e cheiro de serragem, durante uma conversa entre
o próprio Beija-Flor e o meu falecido sogro, seu Bino
— também amante dos pássaros e exímio fabricante de gaiolas
caseiras.
Homem de fala mansa, riso fácil e alma simples, seu
Bino, aliás, terá em breve suas próprias histórias recordadas
neste mesmo espaço.
E eu, que testemunhei aquele diálogo, deixo aqui o registro do dia em que Beija-Flor perdeu o gás — e parte da pose.
Reflexão
As
histórias que ouvimos dos antigos têm um perfume que o tempo não
apaga.
São pequenas memórias que, contadas ao pé da conversa,
mantêm viva a essência dos dias simples — quando bastava um rádio
chiando na cozinha e uma boa risada no quintal pra vida parecer mais
leve.
 

 
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Dag Vulpi