sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O Dia em que Beija-Flor Perdeu o Gás

 


Por Dag Vulpi

Há dias em que manter a serenidade é um exercício de sobrevivência. Quando tudo conspira contra e a paciência ameaça pedir demissão, é aí que se revela o verdadeiro caráter do sujeito.
E foi num desses dias, lá pelos idos da década de 1990, que o extrovertido, falante e sempre de bem com a vida Beija-Flor, morador do bairro da Glória, em Vila Velha (ES), se viu em apuros — e sem café.

Beija-Flor era figura conhecida na Glória. Homem de boa índole, funcionário da prefeitura há mais de trinta anos, desses que já tinham visto prefeitos, secretários e chefes passarem como as marés da Prainha da Glória
Ele ficou. E sua longevidade no serviço público lhe rendeu certas regalias — as costumeiras do tempo em que o relógio de ponto ainda era de papel e amizade valia mais que protocolo.

Boêmio, bom de conversa, amigo de todos e dono de pequenos vícios — inofensivos e, de certa forma, humanos. Seu maior prazer era criar pássaros: curiós, coleirinhas e trinca-ferros que, segundo ele, cantavam mais bonito que o próprio vento.
Nas rodas de disputa — os famosos “rachas” de sábado — seus pássaros eram imbatíveis. Ou, pelo menos, era assim que ele garantia.
E ai de quem ousasse discordar.

Seu xodó maior atendia por Pepê, um coleirinha valente que, nas manhãs de sol, era motivo de orgulho e briga.
Na mesma rua morava Carlinho Pereá, criador de pássaros e rival de longa data. Os dois se bicavam desde os tempos de juventude — e como em toda boa rivalidade de bairro, ninguém sabia mais quem começou.

Mas o caso de hoje não é sobre o Pepê nem sobre os rachas. É sobre o dia em que Beija-Flor acordou cedo demais e confiou de menos.

Era madrugada. O relógio marcava quatro da manhã quando ele levantou, como sempre, pra preparar o café. Ligou o rádio AM — daqueles com chiado e voz de locutor de interior — e foi direto à cozinha.
De repente, ouviu um barulho no quintal. Espiou pela janela e avistou um sujeito carregando uma botija de gás. O homem, percebendo o flagrante, se apressou em dizer:
— Ô cumpadi, não quer comprar essa botija, não? Tá cheia. Tô vendendo pra comprar remédio pro meu menino.

Beija-Flor desconfiou. “Vai que é roubada”, pensou. E recusou:
— Melhor não, parceiro. Pode seguir teu caminho.

O homem agradeceu, pediu desculpas e sumiu na escuridão.
Beija-Flor voltou satisfeito à cozinha, sentindo-se prudente. Colocou a chaleira, riscou o fósforo — e nada.
O gás havia acabado.

Olhou o relógio e lamentou a ironia:
— Se eu soubesse, tinha comprado a botija daquele infeliz...

Resignado, foi soltar a válvula da botija vazia, mas, ao acender a luz da área, só viu a mangueira solta.
A botija já tinha sido levada.

Beija-Flor jogou o boné no chão e xingou o destino em alto e bom som.
Mas pior que o prejuízo foi o vexame. Bastou comentar o caso com o dono da quitanda — o Suíno — para que, antes das nove da manhã, o bairro inteiro já soubesse do “roubo do gás do Beija-Flor”.
E, como se sabe, fofoca naquela época corria mais rápido que ligação a cobrar.

Virou motivo de riso, o gozador virou gozado, e o rei das piadas foi coroado bobo da vez.
Sem saída, Beija-Flor tirou férias — as primeiras da vida — e se mandou pro interior, pra casa do irmão, esperando o tempo apagar o constrangimento.

O tempo passou. O caso virou história de esquina, lembrança de bar e, hoje, memória de um tempo em que os risos eram mais leves e os vexames, mais humanos.

Ouvi essa história pessoalmente, contada num fim de tarde entre risadas, café coado e cheiro de serragem, durante uma conversa entre o próprio Beija-Flor e o meu falecido sogro, seu Bino — também amante dos pássaros e exímio fabricante de gaiolas caseiras.
Homem de fala mansa, riso fácil e alma simples, seu Bino, aliás, terá em breve suas próprias histórias recordadas neste mesmo espaço.

E eu, que testemunhei aquele diálogo, deixo aqui o registro do dia em que Beija-Flor perdeu o gás — e parte da pose.


Reflexão

As histórias que ouvimos dos antigos têm um perfume que o tempo não apaga.
São pequenas memórias que, contadas ao pé da conversa, mantêm viva a essência dos dias simples — quando bastava um rádio chiando na cozinha e uma boa risada no quintal pra vida parecer mais leve.

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