Por Dag Vulpi
O terror maior
para a meninada daqueles dias eram principalmente os personagens dali mesmo,
residentes naquele, ou em bairros avizinhados. E aquela era uma época propícia
para a proliferação daqueles inusitados personagens, afinal estávamos em plenos
anos 70, onde, apesar da ditadura a chance de sucesso nas cidades ainda eram maiores
que as do interior, causando assim um grande êxodo, e dos recantos brasileiros
mais longínquos partiam todos os tipos de pessoas, cada uma com suas
peculiaridades culturais, porém tendo em comum a esperança de dias melhores nas
cidades que as acolheriam.
Minha família estava
entre aquelas que tomaram a decisão de tentar mudar o rumo de sua história, e
com quase dois anos vivendo aquela nova realidade eu já me sentia um veterano e bastante ambientado.
Nasci, e até
então havia morado numa grande fazenda de cultivo de café localizada no interior do Espirito Santo, porém, apesar dela ser de propriedade do meu avô paterno não era garantia de um
futuro animador para nossa família, pois meus pais eram meeiros da fazenda, e
todo o pouco que colhiam era dividido em partes equivalentes com o proprietário
das terras, no caso meu avô. Mas este é um assunto que tratarei dos detalhes em
postagem futura, por hora tratarei de alguns personagens que viviam no Soteco[1]
dos anos 70.
O bairro já
estava apinhado de pessoas “diferentes”, diferentes aos nossos olhares, que éramos
as crianças que ali dividiam suas expectativas de um futuro melhor, ainda assim,
a cada caminhão que chegava trazendo uma nova mudança, trazia também a garantia
de mais um para a nossa já extensa lista de personagens. Sentávamos todos do outro lado da rua e ficávamos observando cada um que descia daquelas carrocerias e boleias de caminhão. Não tardava para escolhermos o pseudônimo para o mais novo personagem da rua. Bastava que ele tivesse a infelicidade de, aos nossos olhos, ficar fora dos parâmetros da normalidade. E para isso não seria preciso muito coisa, um penteado, um sorriso, um sotaque, uma frase ou até mesmo um pisar em falso já seria suficiente para cair em desgraça.
Felizmente,
para nós, naquela época ainda não existia o tal do politicamente correto, no
caso bullyng, e tudo era visto como brincadeira de crianças, e assim, na falta
de opções encontrávamos os motivos para nos divertir.
O bairro já
contava com personalidades como: Patronzinho, Maria Sujinha, D’jango, Gabiroba, Maria Taroira,
Galerão, Índio, Paulinho Caveirinha etc... Cada um com sua peculiaridade, e
diga-se de passagem, uns com mais peculiaridades que os outros.
Estes
personagens eram motivo de diversão para alguns, aí eu estou incluso, e medo
para outros, algumas crianças ao vê-los mesmo de longe já eram acometidos por ataques
de desespero. Havia inclusive aquelas que nem saíam de casa, motivados pelo pavor
que sentiam por algumas daquelas personalidades como o sr. D’jango por exemplo.
D’jango era um
senhor alto, forte, caladão e sério, sempre com seu habitual chapéu preto e de
grandes abas. Ele passava os dias perambulando pelas ruas do bairro. O sujeito não
conversava com ninguém, e a molecada não dava-lhe tréguas, ele passou a de fato odiar a criançada daquele
bairro. Tornando-se assim um “perigo” para os mais pequeninos e os menos
avisados.
Por algum
motivo desconhecido em determinada ocasião o D’jango passou a frequentar as
imediações do colégio Candido Marinho, que era na época o único do bairro, e consequentemente
o local obrigatório de concentração de toda a criançada.
Ele sempre
aparecia exatamente nos horários das entradas, recreio e saídas. Parece que
havia percebido que ao invés de fugir, a melhor tática era a de enfrentar a
molecada, e esse seu novo comportamento causou preocupação, não somente para os
pais, mas também para Dona Glórinha[2], diretora do colégio.
Nós, os
veteranos, já com os nossos oito a dez anos de idade já não tínhamos mais medo
do tal, e fazíamos questão de sermos os bandidos daquele faroeste psicológico. Por precaução andávamos sempre em grupos e com
nossas “armas” de madeira no cinto de nossos shorts, sempre preparados para
sacar e disparar o mais rápido possível, assim que o avistássemos.
Era uma
loucura, aquela turma de guris “atirando” com o som da boca, e correndo o mais
rápido que suas pernas permitiam, e aquele gigante todo desengonçado espumando
de raiva e correndo atrás. Mas ele nunca conseguia ser páreo para a velocidade
daqueles pestinhas.
Até que um
belo dia um daqueles moleques viu-se obrigado a sair sozinho naquelas ruas
dominadas pelo abominável D’Jango. O moleque ainda tentou argumentar com sua
mãe de que iria até a mercearia mais tarde, pois naquele momento não seria
possível, mas a mãe do menino não quis saber de conversa, e não houve outra
saída, e assim ele foi, olhou para um lado, para o outro e a rua estava
deserta. Gritou o nome do amigo que morava em frente e o silêncio foi a única resposta
que ouviu. Não havia outra saída, teria que enfrentar o perigo sozinho. Sequer
pegou a “arma”, pois sabia que ela só complicaria ainda mais a situação. Saiu nas
pontas dos pés e esgueirando-se pelas cercas das casas vizinhas, a mercearia
Sipolatti[3] nunca fora tão distante, mas felizmente chegou são e salvo, entrou,
comprou o que sua mãe havia ordenado, e assim que o Tio Severino[4] anotou a
despesa na caderneta ele saiu, e conforme a tática que funcionou na vinda ele
foi de mansinho pelas beiradas das cercas, porém, desta vez a sorte havia
ficado na mercearia, e mau chegou na
primeira esquina deparou-se com o mais abominável dos seus pesadelos, isso mesmo, D’Jango
o espreitara na ida, e bastou a espera de sua volta para sacramentar de vez o
duelo há muito aguardado. Ainda lembro-me do calor daquele líquido que escorreu
por minhas pernas abaixo, isso mesmo, o infeliz do moleque era eu, olhei para
aqueles olhos vermelhos e sedentos por sangue pela primeira vez, senti que
minha hora havia chegado muito antes do imaginado, mas para minha surpresa ele
me poupou a vida, insinuou um sorriso amarelo e falho e moveu-se para o lado,
deixando o caminho livre para mim. Fiquei petrificado, queria desculpar-me,
porem a voz não saiu, peguei a reta com toda a velocidade e energia dos meus
dez anos, e aquela foi a volta da mercearia mais rápida da minha vida.
Aquele foi o
meu ultimo duelo com o D’jango, e de fato, assim como nos faroestes do cinema D’jango
foi o artista dessa história.
[1]Bairro do município
de Vila Velha – ES
[2]Diretora do
Colégio de 1º Grau Desembargador Candido Marinho entre os anos 70 e 90.
[3]Uma das
primeiras mercearias do bairro Soteco, diferentemente de outras, ela continua
em pleno funcionamento até hoje.
[4]Patriarca
da família Sipollatti, irmão da minha avó paterna, e um dos fundadores do
bairro Soteco.
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Abração
Dag Vulpi