quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Há situações em que até mesmo os monges tibetanos tascam um: “פאַקינג גענעם”


Por Dag Vulpi

Há momentos em nossas vidas que é imprescindível manter a fleuma,  mesmo quando tudo pareça estar conspirando para que as coisas caminhem para o lado inverso daquele que pretendíamos seguir, tornando nossa jornada ainda mais árdua, porém, ainda assim devemos manter o autocontrole, e conter a fúria do monstro que vive adormecido dentro de cada um de nós.    

Manter o autocontrole diante de determinadas circunstancia é de tal forma escabroso, que não seria proditório deduzir que mesmo o mais puritano dos monges tibetanos na plenitude de seu retiro espiritual sucumbiria, e não suportando o peso do revés imposto pelo destino, vociferaria na imensidão silenciosa e gélida do Himalaia a translúcida e harmoniosa frase: “פאַקינג גענעם”, que traduzida para o português seria mais ou menos um “p.q.p”. E por certo ouviria como resposta um não menos sonoro eco vindo da montanha dizendo: וועט נעמען עס אַרויף די טאָכעס!”, que não poderei traduzir aqui, mas adianto que tem  tudo haver com o famoso "vai para aquele lugar".

Pois bem, foi num desses momentos adversos e fora de controle que o extrovertido e sempre de bem com a vida “Beija-flor” foi pego pelo destino.


Beija-flor é o apelido de um conhecido cidadão morador do bairro da Glória, sujeito de boa índole e de muitas amizades. Trabalha na prefeitura da cidade de Vila Velha no Espírito Santo a mais de 30 anos. Beija-flor conseguiu essa longevidade profissional graças aos seus bons serviços prestados, raridade em cargos públicos desse Brasil varonil, não a longevidade na função, mas sim a prestação de bons serviços para a comunidade.

O fato de trabalhar durante tantos anos na prefeitura rendeu-lhe alguns “privilégios”, comuns a todos que tiveram a sorte de conseguir entrar para os quadros do setor publico. E desses benefícios coerentemente o protagonista deste conto nunca abriu mão.

Depois de 30 anos trabalhando no mesmo setor daquela prefeitura Beija-flor já havia presenciado uma grande rotatividade nos cargos públicos, nesse tempo passaram por ali no mínimo uns seis ou sete prefeitos, mais de quatorze secretários, e funcionários do segundo escalão certamente foram mais de mil, e o velho Beija-flor foi resistindo a todas as variáveis ideológicas que cada político trazia e levava junto com seus mandatos.

Como benefício por seu longo período prestando serviços naquele mesmo setor Beija-flor tornara-se mesmo sem ser, um tipo de chefe daquele departamento. Portanto, era ele quem determinava seus horários de entrada e saída e até mesmo suas férias era ele que determinava quando seriam gozadas, resumindo ele era o chefe dele mesmo, e talvez isso também justifique os seus 30 anos de serviço.

De acordo com as regras, a maioria dos chefes que ocuparam funções naquela, e nas demais secretarias das prefeituras espalhadas por esse Brasil de meu Deus, conquistaram aquele espaço por terem sido apadrinhados pelos prefeitos, graças aos pagamentos de compromissos políticos celebrados durante as campanhas eleitorais, ou seja, o velho toma lá-da-cá, me ajuda agora que depois de eleito não esquecerei de ti. Comprometimento com o conhecimento técnico que o secretário terá com a pasta que ele irá assumir não é preocupação de nenhum prefeito, e vamos que vamos, pois já dei minha pincelada, e a proposta deste artigo não é somente esse.

Voltemos ao boa bisca, boêmio e possuidor de alguns vícios que é nosso protagonista. Vícios, aliás, quase todos nós temos. E um dos vícios do Beija-flor deriva do seu próprio apelido, que é o de sentir prazer de possuir pássaros canoros em cativeiro. Ele não abria mão de ter em seu seleto plantel pássaros de qualidade, e em suas sempre belas e detalhadas gaiolas era certo observar a presença de um bom curió paracambi repetidor, Uns dois a três coleirinhas tui-tui e uns dois trinca-ferro bom-dia-seu-chico.

Para ele criar estes pássaros em gaiola não era um vicio, mas uma grande paixão, por vezes aqueles pequenos e emplumados seres traziam-lhe grandes alegrias, ganhando troféus por serem bem sucedidos nos torneios de canto que eram organizados nos clubes da cidade, normalmente esses eventos aconteciam aos sábados, onde se reuniam, ainda hoje esta pratica existe (ela é regulamentada pelo IBAMA) um grande número de apaixonados pelo mesmo prazer e colocavam suas gaiolas penduradas em pedestais uma próximas às outras, sendo o vencedor o pássaro que desse o maior número de canto num determinado período de tempo.

Porém, como nem tudo na vida é somente sorriso, e até o mais famoso é falso, que o diga Gioconda, a vida também lhe reservou momentos de desilusões.

Fato não permitido por passarinheiro que se preze que é o caso do Beija-flor são os questionamentos quanto à qualidade de seus pássaros e a legitimidade do troféu ganho em torneios organizados e por decisão unanime dos juízes, ainda que a organização do evento tenha sido custeada por nosso protagonista, assim como, o pagamento dos honorários dos “juízes” do torneio tenha saído do seu bolso.

Pobre do infeliz que ousasse tecer críticas depreciativas aos canoros do Beija-flor. Seus pupilos eram perfeitos aos seus olhos, e quem não concordasse era de imediato rechaçado, e por ele tachado como sendo uma pessoa de opinião inconsequente e leiga no assunto. Seus pássaros sempre eram os melhores da região e ponto final. Porém, como o inevitável de Almeida cedo ou tarde acaba aparecendo, so seria uma questão de tempo.


Era um belo sábado ensolarado de verão, e o torneio terminara há pouco, os pássaros já haviam sido devidamente recolhidos e os passarinheiros degustavam uma deliciosa cerveja gelada enquanto contavam cada um a seu jeito as proezas de seus pupilos empenados. Todos naquela mesa sorriam, mas o mais feliz era nosso protagonista, afinal seu coleira ficou em primeiro lugar geral na contagem de cantos e seu trinca-ferro havia ficado em segundo na sua categoria, perdera por um canto de diferença para o trinca ferro de um amigo.

Na roda de amigos a harmonia reinava absoluta, até que um tal de mineiro aproximou-se da mesa, e segurando numa das mãos uma lata de refrigerante e na outra um canudo que sem sucesso tentava introduzir no interior da lata, aproximou-se ainda mais e, olhando diretamente para os olhos do Beija-flor falou: “isso foi roubo, tem gente aqui que paga para os pássaros ganharem” e deu uma pausa, nesse momento Beija-flor ficou cego, levantou-se num golpe só e ficou frente a frente com o tal mineiro e falou bem alto: “se você for homem repita o que você falou seu comedor de queijos duma figa”, quase explodindo de raiva. E o tal mineiro deu um passo a traz e repetiu: “isso foi um roubo, eu estava lá e vi, o seu trinca ferro deveria ficar em primeiro lugar, o senhor foi roubado, o juiz deixou de contar dois cantos que o seu pássaro deu”. Naquele exato momento Beija-flor ficou sem chão, sentou-se, respirou fundo e falou: “Mineiro não faça mais isso, eu quase tive um troço, você sabe que eu sou cardíaco”! E as gargalhadas tomaram conta do ambiente.

Podemos dizer sem medo de cometer erros que os momentos mais felizes vividos pelo Beija-flor foram quase todos atribuídos aos triunfos de seus pássaros, em especial ao seu coleirinha “Pepê”.

Se nos sábados o ponto de encontro dos passarinheiros era no clube, no domingo era na praça do bairro. Ali se reunia toda a galera do bairro e imediações, porém não havia juízes, muito menos regras, aqueles que chegavam mais cedo escolhiam os melhores locais para pendurar suas gaiolas. Evitava-se pendura-las muito próximas à rua, pois alguns pássaros assustavam-se com o movimento dos transeuntes, onde muitos daqueles levavam seus cachorros para passear e isso provocava pânico em alguns pássaros, deixando-os praticamente mudos durante quase todo o tempo.   

Para este encontro de pássaros na praça diferentemente do termo torneio que era dado no clube, ali o evento era conhecido por “racha”, mas o objetivo era o mesmo, ou seja, ver qual pássaro era o que mais cantava. Mas ali, por não haver regras claras tudo era diferente e dificilmente o pássaro do nosso protagonista saiam-se bem, fato que o obrigava a quase sempre se retirar antes do fim do racha. Como a praça era próxima à sua casa ele atravessava a rua e parava no bar do Nilton para tomar uma cerveja e reclamar da desorganização que se tornara o tradicional racha de tanto anos. 

O que perturbava de fato o nosso protagonista era a presença de um velho desafeto nos rachas dominicais. Depois que ele e o Carlinhos Preá discutiram motivados pela paixão de seus pássaros, o racha nunca mais foi o mesmo para ele. Seu Carlos, ou “Carlinhos Preá” como é conhecido é vizinho de longa data, mora na mesma rua e sua paixão por pássaros também é grande. Porém, por mais que os dois tivessem gostos parecidos, ainda assim seus pontos de vista sempre foram divergentes, em qualquer situação ou assunto.

Aquela rixa era antiga, atribuída a fatos ocorridos quando ainda muito jovens, e que o passar dos anos não contribuiu para o consenso. Difícil era saber quem estava com a razão, se é que alguém a tivesse.

Papo comum e recorrente era a afirmativa de ambos em se dizerem proprietários dos melhores e mais belos pássaros da região, nunca se entenderam quanto a isso, aliás, não se entendiam em quase nada. Mas vamos à diante.

O bom e velho Beija-flor acordou às quatro da manhã naquela segunda feira, aliás, acordar cedo era costume antigo, acordava fazia o café e ia tratar das suas preciosidades, ao todo eram dez pássaros (todos devidamente registrados no IBAMA conforme determina a Lei).  Essa tarefa diária consumia-lhe uma hora, para higienizar as gaiolas e trocar a água e comida.

Como de costume ele levantou, ligou o rádio que estava sempre sintonizado na AM, onde tocava o seu programa matinal predileto, música ali só caipira e da boa, e o locutor também era o seu preferido, pois caprichava no linguajar interiorano.

Ele encheu a chaleira com água da torneira e quando a colocou sobre o fogão para aquecer a água do café, ouviu um ruído que vinha do seu quintal, imediatamente ele abriu a janela e espiou para fora, mesmo estando escuro deu para perceber que no seu ali havia um desconhecido, e que o tal carregava às costas uma botija de gás.

E mesmo antes que ele questionasse a presença do intruso em sua propriedade, o sujeito se antecipou indagando-o se havia por parte do Beija-flor algum interesse em comprar a botija de gás, dizendo que aquela estaria cheia, e que precisaria vendê-la para comprar remédio para o filho pequeno. Beija-flor pensou por alguns segundos e respondeu que não tinha interesse “vai que seja fruto de algum roubo” pensou ele, e em seguida pediu para o cidadão se retirar de seu quintal, e assim foi feito, o cidadão desculpou-se pelo incomodo e retirou-se levando a botija. Beija-flor certificou-se de que o cidadão realmente havia se retirado, e voltou aos seus afazeres.

Ao tentar acender o fogo, teve a primeira decepção do dia, o fogo não acendeu, tentou duas, três vezes e nada, era inevitável, o gás havia acabado. Chateado com a situação lamentou-se pela oportunidade perdida “eu poderia ter comprado a botija daquele infeliz, teria ajudado um filho de Deus, e agora não ficaria sem café até o comércio abrir” pensou ele. Mas fazer o que, não havia outro jeito, naquele momento o que poderia ser feito além de esperar o comércio abrir, seria adiantar o processo da troca de botijas, soltando a válvula que fica presa à botija, e foi isso que ele foi fazer.

Acendeu a lâmpada da área externa, e se dirigiu para o local onde estava instalada a botija, porém, ao chegar lá só avistou a mangueira, percebendo que a botija não se encontrava mais lá, alguém já havia “adiantado” o seu serviço.

Beija-flor não se conteve, sambou o boné no chão e praguejou tudo o que não devia contra o seu indesejável visitante matutino. Lembram-se do monge tibetano que foi mencionado no inicio deste texto? E aí será que mesmo ele não soltaria um belo de um: “פאַקינג גענעם” numa situação desta?

Mas dizem que azar pouco é bobagem, e apesar do nosso protagonista ser um sujeito calejado pelo tempo, ter muitos anos de praia e ter passado 30 dos seus anos no meio daquela galera da prefeitura, onde o mais bobo dá nó em pingo d’água ele cometeu a imprudência de comentar o fato ocorrido naquela infeliz madrugada logo para o Suíno. Suíno era o apelido do dono da quitanda, e falar para o suíno era o mesmo que pagar carro de som para divulgar falecimento de padre pelo bairro afora.

Antes das nove da manhã o bairro todo já estava sabendo do ocorrido, e o pior, com exageros, afinal a galera não perderia uma oportunidade daquelas.

Beija-flor pela primeira vez sentiu o dissabor de se encontrar na situação de ser o “bola da vez”, passou a ser o alvo do achincalhamento coletivo. Ninguém o poupava, primeiro foi uma enorme fila de crianças seguindo seu rumo para o colégio, mesmo as crianças das ruas vizinhas naquele dia resolveram passar por ali, algumas mães fingiram intervir pedindo para a criançada tentar se conter, ainda que muitas daquelas senhoras não conseguissem esconder o que realmente sentiam, seus olhares debochados traduziam seus verdadeiros desejos. Depois vieram as beatas em procissão, nunca foram tantas a seguir juntas para a igreja no mesmo horário, e ao perceberam a presença do infeliz colocaram seus lenços em suas bocas escondendo suas dentaduras amarelas e gastas, demonstrando o quanto até aquelas octogenárias podem ser cruéis.  

Desta vez foi inevitável, Beija-flor que durante toda sua vida fora um gozador nato, tornara-se o motivo da chacota de todo o bairro e das Redondezas. Foi quando ele entendeu o significado daquele maldito quadro que um antigo prefeito havia pendurado na sala onde trabalhou por todo aquele tempo, Muitas vezes ele comentou com outros amigos: “O Vasquinho (vasquinho foi um antigo prefeito de Vila Velha) deve estar ficando gaga, ele pendurou um quadro na minha sala com os seguintes dizeres; SER PEDRA É FÁCIL, DIFICIL É SER VIDRAÇA”! Pois é Beija-flor é isso aí, o Vasquinho estava certo! Ou não?

Não houve outra saida, Beija-flor fez por merecer sua autonomia e se autoconcedeu umas férias forçadas. Foi passar uns tempos bem longe, na casa de um irmão que morava no interior. Não havia escolha, ou saia para um retiro e aguardar a poeira baixar ou fazer uma bobagem.

Beija-flor ficou chateado durante um bom tempo, mas felizmente tudo acabou bem, porém ele perdeu o status de o esperto da área, e vez ou outra aparece um infeliz que lembra esse ocorrido.


Desta vez a lembrança foi desse que agora assina esta postagem.

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