Por Dag Vulpi
No mesmo dia em que nasci, nascia também o regime militar no Brasil. Uma coincidência que, com o tempo, passou a me soar como ironia do destino. Décadas depois, entre o assado e o vinho do meu aniversário, acabei sonhando uma história que parecia explicar muito mais sobre o país do que qualquer análise política: a fábula de um asno, um cabrito e as fake news que adoecem mentes e corações.
No último domingo, 31 de março, coincidiu a data do meu aniversário com a implantação do regime militar no Brasil. Isso mesmo — nasci no mesmo dia, mês e ano daquele infame sistema.
Na infância, no primário, essa data era tratada como “o dia da revolução”, e eu, sem compreender bem o contexto, sentia certo orgulho com as festividades militares na escola. Isso basta de história — agora, o que interessa.
Decidi fazer um churrasco para celebrar. Afinal, deixei de ser um simples senhor de meia-idade e passei oficialmente à categoria dos sexagenários. Entre os convidados, como quase sempre ocorre nas famílias brasileiras, havia um bolsonarista de carteirinha.
Depois de algum tempo e algumas cervejas, resolvi me sentar ao lado dele. A princípio, minha intenção não era falar de política — mas isso, hoje em dia, parece impossível.
Basta um bolsonarista saber que você é de esquerda para o assunto se impor sozinho.
“Você viu o que aquele cachaceiro fez agora?”, perguntou ele.
Fingindo não entender, respondi: “O que dizem que eu fiz desta vez?”.
“Não você”, replicou, “o cachaceiro ao qual me refiro é o Lula.”
Ah, ainda bem, pensei — seria desrespeitoso alguém falar mal de mim justamente no meu aniversário, bebendo e comendo às minhas custas… de um velho comunista.
Dei um largo sorriso, o abracei, agradeci sua presença e fui para outra mesa — cutucar minha cunhada, lulista de fé. Sim, praticamente toda família brasileira tem um de cada lado do muro.
Fim de churrasco. Todos se foram. Tomei um banho demorado, servi-me de um bom vinho que ganhara de presente e me acomodei no sofá. Pensei até em acender um charuto, mas desisti — minha esposa ficaria irritada com as cinzas no tapete. Um gole de Cabernet Sauvignon chileno de 2014 bastava.
Apoiei a taça vazia sobre a mesa e virei a cabeça para o lado. Adormeci.
E foi aí que começou o sonho.
O cenário era uma fazenda. Os protagonistas: eu, um jovem cabrito chamado Goat, e um velho asno chamado Jair, que coexistiam em harmonia.
Goat vivia num pequeno cercado próximo à casa, alimentando-se das folhas secas que caíam de uma grande árvore. Como não eram suficientes, eu precisava diariamente cortar feixes de capim no pasto do asno para sustentar o cabrito.
O ideal seria que dividissem o mesmo espaço, mas o temperamento ríspido do velho Jair me fazia adiar essa conversa.
Passei a visitá-lo com frequência, levando-lhe uma espiga de milho, seu agrado favorito.
Nossos “diálogos” eram breves e pouco amistosos — mas, afinal, tratava-se de um asno.
Certo dia, levei o Goat comigo para apresentá-los e conversar sobre a partilha do pasto. Jair relutou em se aproximar, ignorou até a espiga, mas acabou cedendo.
Com desdém, comentou:
“Talvez você não saiba, mas esse aí é neto do velho Trotsky — aquele bode arruaceiro que nunca trabalhou, só vivia pregando essas bobagens comunistas. Queria que todos dividissem o pouco que tinham. Um lunático! Até um sobrinho meu caiu nessas ideias e estragou a cabeça. E esse aí”, apontou para Goat, “certamente é da mesma laia.”
Virou as costas e foi embora.
Goat ficou perplexo. “Afinal, é um ancião. E dos anciões se espera sabedoria”, disse-me.
Mas parecia saber mais do que dizia. Ao chegarmos em casa, confidenciou: “Senhor, acho que o velho Jair anda recebendo fake news pelo celular. Vi o filho de um vizinho comentar que o avô dele troca mensagens com o asno pelo WhatsApp.”
Fiquei alarmado — dentro da minha própria fazenda, sem saber, as mentiras já estavam se alastrando.
“Você tem razão, Goat”, respondi. “São essas fake news, trocadas entre os mais velhos e menos instruídos, que estão corroendo a democracia e transformando o bom senso em ressentimento.”
Naquela noite, as palavras do asno ecoaram na minha mente.
Acordei decidido a enfrentá-lo.
Sem espiga, sem agrados.
“Jair”, chamei, “precisamos conversar.”
Ele ergueu as orelhas, relutante.
Fui direto ao ponto: questionei sua crença em mentiras, sua hostilidade gratuita e sua recusa em dividir o pasto.
Com altivez, respondeu:
“Não dividirei espaço com o neto de um comunista. E o que converso pelo celular é da minha conta. Afinal, vivemos numa democracia.”
Contive o ímpeto e respondi:
“Você tem razão sobre o direito à privacidade. Mas democracia não é viver isolado em sua própria bolha de mentiras. É conviver, aprender e reconhecer que o outro existe.”
Decidi, então, instituir um revezamento: meses pares, o asno no cercado; meses ímpares, o cabrito.
Era abril — mês par.
Jair desceria.
O Goat, surpreso, tentou dissuadir-me: “Senhor, prefiro ficar onde estou, não quero causar-lhe constrangimento.”
Mas fui firme: “Não é castigo, é oportunidade.”
E assim foi.
Nos primeiros dias, o velho Jair manteve-se de costas para a cerca, resmungando.
Já o Goat florescia no pasto, fez amigos, corria, lia, vivia.
Pouco a pouco, percebi o asno navegando na internet. Entrou no Facebook — inclusive no grupo que administro, “Consciência Política Razão Social” — usando um perfil falso de Campinas.
Mas, curiosamente, começou a pesquisar também em sites de checagem de fake news.
Chegou o primeiro de maio. Dia de troca.
Ao reencontrarem-se, Goat perguntou o que ele achara do cercado.
“Maravilhoso”, respondeu Jair. “Foi lá que aprendi o que é limite. Li coisas novas, pensei, refleti. Descobri que nem tudo o que me contaram era verdade. Que fui manipulado por anos, transformado em instrumento dos que mandam neste país. Quero mudar. Quero dividir este espaço com você, se o nosso dono — que, na verdade, é nosso amigo — permitir.”
Goat olhou para mim e pediu: “Diga que sim.”
Sorri.
E ali, naquele abraço triplo, percebi que talvez a democracia não esteja perdida — apenas dormindo dentro de cada asno à espera de um cabrito disposto a dialogar.
Nota:
Fábula moderna sobre polarização política, intolerância e o poder corrosivo das fake news. Um conto simbólico sobre a necessidade do diálogo, da escuta e da reeducação do olhar — onde até um velho asno pode aprender novamente o valor da convivência.

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Dag Vulpi