Por Dag Vulpi - Postagem original feita em 20 de junho de 2015
São muitas as histórias inusitadas que giram em torno dessa “laranja” chamada vida. Eu mesmo conheço um bocado delas — algumas presenciei, outras me contaram, e esta que narrarei, tive o privilégio de vivê-la.
Foi lá pelos idos dos anos 80, numa Mutum ainda pacata, quase parada no tempo, quando fui passar uns dias de férias com dois amigos: o Augusto, o “Gutim”, funcionário da antiga CESAN, e o José Rubner, o “Zérrubi”, meu colega do extinto Banco Nacional e filho daquela terra mineira.
A cidade respirava sossego. As aventuras eram simples, mas intensas — cavalgar pelos arredores, assistir aos domadores enfrentando burros chucros, observar a natureza em seu ritmo rude e encantador. Tivemos até que aprender a enrolar cigarros de palha, pois por lá, maço industrializado era artigo de luxo. À noite, o boteco era o centro do universo: cartas, gargalhadas e o desfile das mineirinhas, vaidosas ao saber que havia forasteiros na cidade. Nós, três jovens em plena solteirice, tínhamos mais olhos do que sorte — os rapazes locais não viam com bons olhos nossa presença, e as moças tampouco se arriscavam a contrariá-los.
Mas o melhor da história veio num sábado, quando Zérrubi sugeriu uma pescaria. Topei de imediato. Gutin também. O Zé conhecia o riacho e o homem certo para nos guiar: o lendário Genésio.
Genésio era baixote, de pele curtida pelo sol, e dono daquela sabedoria que não se aprende em livro algum. Um tipo raro, desses que transformam o trivial em anedota. Sabíamos que dali sairia mais história do que peixe — e não erramos.
De fala mansa e quase sussurrada, Genésio logo decretou a regra: sendo sábado, a pescaria seria de peneira. Argumentei que a pesca com anzol seria mais emocionante, mas bastou ele me olhar e murmurar algo entre os dentes — “Cêjá pescoqui gumavez?” — que mudei de ideia na hora. Aquele homem tinha uma autoridade serena, irresistível.
Começamos. As instruções vinham em mineirês cerrado, e só o Zérrubi, nosso tradutor oficial, entendia cada sílaba. Entramos todos no riacho, a água gelada cortando as pernas. Foi quando Genésio, entre um sorriso desdentado e um gracejo, comentou algo que o Zé traduziu entre risadas:
— “Água fria, né? É assim mesmo: uns mijam, outros riem.”
A pescaria seguiu com mais fumaça que peixe. Genésio mantinha preso ao pescoço um saco plástico com palha de milho, fumo desfiado e um isqueiro de pavio — seus tesouros de sobrevivência. Fosse dentro ou fora d’água, ele nunca deixava de enrolar seu “picão de paia”.
Depois de um longo trecho sem sucesso, finalmente pegamos dois peixes num ponto mais fundo. Genésio anunciou que era o único lugar do riacho onde peixe se deixava pegar por peneira — o resto, segundo ele, fora só treinamento. E ali, já fora d’água, ele preparava seu quarto cigarro com a destreza de um alquimista.
Mas a verdadeira surpresa ainda estava por vir.
Quando voltamos à água, animados com a boa maré, a pescaria enfim rendeu. Os peixes vinham aos montes, e nossa alegria não cabia no peito. Até que notamos algo estranho: uma peneira boiando sozinha, descendo o rio. E logo adiante, apenas uma mão, como um último pedido de socorro.
Pulamos. Puxamos o corpo de Genésio quase sem vida, já inchado de tanta água que engolira. A cena nos gelou a espinha. Deitamos o velho matuto na margem, viramos seu corpo, e dele escorria um rio inteiro — talvez com alguns peixinhos junto. Foi então que, quando tudo parecia perdido, ele abriu um olho, mexeu a mão e sorriu.
Na palma, o motivo de tamanha teimosia: o isqueiro. Encharcado, mas intacto.
Quando conseguiu respirar, contou, com ajuda do Zérrubi, que sabia nadar melhor que qualquer homem do Vale. Já atravessara o Rio Doce levando numa mão uma jaca, noutra uma melancia. Mas jamais deixaria para trás o que mais amava. Disse que não se tratava da palha nem do fumo, mas do isqueiro — presente de seu pai, o único bem que ainda o ligava a uma vida que se esfarelava no tempo.
E para provar o ponto, enrolou outro cigarro.
Lentamente.
Com devoção.
Passou a língua na palha, acendeu o pavio com os dedos trêmulos e, olhando para o céu, tragou fundo, como se inalasse a própria existência. Depois, com um meio sorriso e o olhar marejado, disse — ou melhor, Zé traduziu:
“Se existir algo, qualquer coisa, que faça vocês felizes... lutem pra não perder. Eu já perdi muita coisa nesta vida. E hoje quase perdi a vida pra salvar o único presente que o velho me deixou.”
Ficamos ali, em silêncio.
O rio correndo, os peixes quietos, a fumaça subindo.
E eu entendendo, sem palavras, que às vezes o que parece pequeno — um isqueiro, um cigarro, uma lembrança — é o que nos ancora à própria vida.
Reflexão:
Algumas histórias valem menos pelo enredo e mais pelo eco que deixam em nós. O “cigarro de Genésio” não era só um gesto teimoso, mas um símbolo de fidelidade àquilo que nos dá sentido. Em tempos em que tudo é descartável, há sabedoria profunda em quem ainda sabe o valor do que permanece — mesmo que seja apenas um velho isqueiro, acendendo, teimosamente, a última chama de um tempo que já se apagava.

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Dag Vulpi