Por Demian
Melo - Laboratório de Estudos dos Militares na Política
O
propósito deste trabalho é discutir o processo que culminou na realização da
consulta plebiscitária de 1963. Enfocaremos o comportamento de alguns atores
políticos, realçando a participação dos militares na crise geral do regime então
vigente. Cabe ressaltar que a presente comunicação é um resultado parcial de
nossas pesquisas sobre o tema, que serão aprofundadas numa futura
pós-graduação.
Em
janeiro de 1963 os eleitores brasileiros foram chamados a decidir sobre a
permanência de uma recente experiência parlamentarista ou a volta ao
presidencialismo, adotado como sistema de governo desde a proclamação da
República, em 1889.
Resultado
de um arranjo institucional que visava a manutenção da ordem constitucional
frente à ameaça de setores golpistas das Forças Armadas, o parlamentarismo foi
instituído de forma casuística, após a renúncia espetacular de Jânio Quadros,
em agosto de 1961.
A
eleição deste último, em 3 de outubro do ano anterior, havia representado uma
enorme novidade no cenário político nacional: pela primeira vez alguém situado
“fora” do monopólio da aliança PSD(Partido Social Democrático)/PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro) - que dominara a cena política desde a Carta de 1946 -
chegava ao cargo máximo da nação.
Vitorioso
na disputa contra os candidatos Marechal Henrique Teixeira Lott e Ademar de
Barros (PSP), Jânio Quadros não conseguiu ser alçado à presidência juntamente
com o candidato a vice de sua chapa, o então senador Milton Campos. Naquele
contexto, a legislação eleitoral permitia a disputa dissociada para os cargos
de presidente da República e vice, característica que abria brechas para
incompatibilidades na composição do Executivo federal. Derrotado Campos,
assumiu a vice-presidência o político do PTB gaúcho João Goulart. A vitória de
Jânio, no entanto, garantiu que setores até então preteridos do sistema
político ocupassem importantes cargos na área econômica e administrativa. Foi o
caso, por exemplo, dos grupos ligados aos setores mais internacionalizados do
capital, que só acessavam a burocracia do Estado através de canais “paralelos”
e que formavam o chamado “bloco do capital multinacional e associado”.
Por
outro lado, o governo Jânio foi marcado também por uma contraditória política externa independente e por lances internos calcados num moralismo
hilário, como na proibição do uso de biquínis de duas peças nas praias, do
lança-perfume e da briga de galos. Nas Forças Armadas, que aqui nos interessam
em especial, setores antigetulistas, identificados com a Cruzada Democrática, ocuparam
a cúpula dos ministérios militares, sendo este um dos signos de mudança na
correlação de forças no interior desta que é a principal instituição do Estado.
No dia 25 de agosto de 1961, data em que Jânio Quadros renunciou ao cargo de
presidente da República, João Goulart encontrava-se em visita diplomática à
República Popular da China. Herdeiro político do getulismo, Jango (como também
era conhecido) já havia ocupado o Ministério do Trabalho por um breve período
(1953-54), durante o segundo governo Vargas e a vice-presidência da República,
durante o quinquênio 1956-1961, ocasião em que governou juntamente com
Juscelino Kubitschek, cabeça da chapa PSD-PTB. Opositor do governo representado
por Jânio, Goulart fora virtualmente elevado à condição de chefe do Executivo
federal numa data muito peculiar: no Dia do Soldado. A ocorrência de
solenidades militares na capital e nas principais cidades da República criaram um
ambiente propício para que a notícia da renúncia corresse como um rastilho de
pólvora entre os setores da caserna. Diante do ocorrido, o deputado Ranieri
Mazzili, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu temporariamente a cadeira
executiva, mas teria que passá-la, conforme rezava a Carta de 1946, ao
vice-presidente eleito. Naquela conjuntura, entretanto, os ministros militares
de Jânio (general Odílio Denis, brigadeiro Gabriel Grün Mosse almirante Sílvio
Heck) pronunciaram-se publicamente contra a posse de Goulart, posição comunicada
ao Congresso Nacional pelo próprio Mazzili.
A
reação aos propósitos golpistas dos ministros militares veio do extremo sul do
país, por meio do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Este
conseguiu o apoio militar do general Machado Lopes, comandante do III Exército,
que se pôs ao lado da legalidade. Através de emissoras de rádio, o governador
gaúcho emitia notícias sobre a campanha pela posse de Goulart, formando a chamada
“Rede da Legalidade”. O clima de polarização se instaurou e uma guerra civil
tornou-se iminente. Contudo, seguindo uma velha tradição nacional, operou-se um
acordo político: a posse de Goulart seria garantida mediante a instauração do sistema
parlamentarista, que, na prática, retirava os poderes do presidente da
República. O grande fiador do acordo, o político mineiro Tancredo Neves, tornou-se
primeiro-ministro. O Ato Adicional que instituiu o parlamentarismo previa a
realização de um referendum nove meses antes do final do mandato de Goulart, para
que fosse endossada ou não o novo sistema de governo. Assim,
ficava em aberto a possibilidade de retorno ao presidencialismo.
Desde
o seu discurso de posse, João Goulart deixou claro a sua intenção de lutar pela
volta ao sistema presidencialista, como podemos ver no trecho abaixo:
Cumpre-nos,
agora, mandatários do povo, fiéis ao preceito básico de que todo poder dele emana,
devolver a palavra e a decisão à vontade popular que nos manda e nos julga,
para que ela própria dê seu referendum supremo às decisões políticas que em seu
nome estamos solenemente assumindo neste momento.
Formou-se
então uma ampla frente pelo retorno ao antigo sistema de governo, composta por diferentes
matizes do espectro político. Os setores de esquerda e nacionalistas que haviam
apoiado a posse de Jango movimentavam-se para a volta do presidencialismo: em
primeiro lugar porque consideraram o parlamentarismo um “golpe branco”; em
segundo porque ligaram a campanha pelo presidencialismo à implementação de
reformas profundas na estrutura social brasileira, as chamadas reformas de base.
O partido do presidente, o PTB, ao lado do PCB (ilegal desde 1947, mas com relativa
liberdade de funcionamento no período, além de considerável hegemonia no
movimento operário), junto a outras organizações como a Ação Popular (AP, setor
católico de esquerda, que hegemonizava o movimento estudantil), ao lado de um cada
vez mais ativo movimento sindical, mobilizaram-se pelo retorno do
presidencialismo. Por sua parte, políticos conservadores da UDN e do PSD,
vislumbrando as eleições presidenciais que se realizariam em 1965, queriam
desembaraçar-se do parlamentarismo. A UDN, que em sua Carta de Princípios–
aprovada em encontro de seu Diretório Nacional, em fevereiro de 1962 –
estabelecia que o parlamentarismo era o sistema de governo ideal, via suas
principais lideranças defenderem a volta ao presidencialismo. Já o PSD, maior
partido do Congresso Nacional, não conseguiu chegar a um acordo sobre tema, o
que leva estudiosos a afirmar que a questão teria levado ao primeiro grande
racha na legenda.
Entre
esses diferentes setores amadurecia a ideia de antecipar o Referendum
sobre o sistema de governo.
Em
meados de 1962 o primeiro gabinete parlamentarista renunciou, gerando a
primeira grande crise do parlamentarismo. Quem substituiria Tancredo Neves?
Goulart propôs o nome de Francisco Clementino de San Thiago Dantas, da ala
moderada do PTB. San Thiago Dantas, tendo praticado uma política externa
independente quando ocupou Ministério das Relações Exteriores, situava-se em
rota de colisão com setores conservadores do país. O PSD, maior partido do
Congresso, reivindicava o direito de indicar o nome para substituir Neves. Cada
vez mais autônomo, o movimento sindical se lançou ao centro do palco, ameaçando
com uma greve geral caso o Congresso recusasse o nome de Dantas. A direita
política, agrupada na Ação Democrática Parlamentar (ADP), verdadeira caixa de
ressonância dos interesses do capital multinacional e associado, conseguiu
impedir a aprovação do nome indicado por Goulart.
Este
resolveu propor para o cargo o nome de Auro de Moura Andrade, velha raposa ‘direitista do PSD. Imediatamente realizou-se uma greve geral
coordenada pelo Comando Geral de Greve, embrião do futuro CGT, paralisando o
país e mostrando a força da classe trabalhadora organizada. Antes mesmo da
realização da greve, Moura Andrade renunciou, e setores do governo buscaram
interceder junto aos dirigentes da greve nacional com o fito de impedi-la. Mas
o movimento sindical resolveu mostrar sua força e manteve a greve, buscando com
isto influir sobre a composição do novo gabinete. Por fim surgiu o nome de
Brochado da Rocha, político gaúcho ligado ao governador daquele estado, cujo
gabinete esteve comprometido desde o início com a tarefa de aprovar a antecipação
do plebiscito.
Os
governadores estaduais, em razão das dubiedades existentes no Ato Adicional que
instituiu o parlamentarismo, temiam que o sistema fosse aplicado nos estados,
debilitando seus poderes.
Em meados
de 1962 reuniram-se em Araxá (MG) e redigiram manifesto contrário ao
parlamentarismo, propondo a antecipação da consulta popular para que fosse
decidido o sistema de governo. O evento, que ficou conhecido como Conferência
de Araxá, teve como principal animador o governador de Minas Gerais, Magalhães
Pinto, elaborador das propostas aprovadas no encontro. Apenas o governador da
Guanabara, Carlos Lacerda, votou contra o documento, embora fosse grande
interessado na volta ao antigo sistema de governo, já que se colocava como presidenciável
para as eleições de 1965.
Importantes
setores da imprensa também passaram a posicionar-se pela realização de um
plebiscito, como, por exemplo, o Correio da Manhã, que em editoriais dos meses
de julho e agosto, em meio à crise sucessória, defendeu a ideia de um referendum
simultâneo às eleições de outubro. Cabe lembrar que o mesmo Correio da Manhã era
um ferrenho opositor do governo Jango, o que denota a heterogeneidade da frente
antiparlamentarista.
Em
agosto de 1962, os ministros militares lançaram um manifesto reivindicando a
antecipação do plebiscito, passando a intervir de forma mais contundente na
questão. Os ministros das três armas – Nelson de Melo (Exército), Pedro Paulo
Suzano (Marinha) e Reinaldo de Carvalho (Aeronáutica) – propuseram a realização
do plebiscito imediatamente, coincidindo com as eleições que se realizariam em
outubro, no que faziam coro com a proposta de Brochado da Rocha. A proposta do
governo era rejeitada pelos partidos de oposição – UDN e PSD –, que temiam uma
forte identidade entre os políticos oposicionistas e o impopular parlamentarismo,
prejudicando seu desempenho eleitoral nas eleições vindouras. Para estes,
fazia-se necessário separar os dois pleitos, pois também, como já apontamos
anteriormente, não havia consenso no interior dessas legendas quanto à matéria.
Em 18 de agosto ocorreu uma tentativa de acordo entre o governo e os diversos
partidos de oposição, que se materializou numa emenda apresentada por Oliveira
Brito. Esta consistia na transferência da decisão sobre o
plebiscito para o futuro Congresso, a ser eleito em outubro seguinte. Esta
proposta malogrou, porque em setembro o gabinete de Brochado da Rocha resolveu
submeter a um voto de confiança uma proposta de realização do plebiscito no dia
7 de outubro. O impasse continuou, pois essa emenda foi recusada pela maioria
conservadora no Congresso, o que levou à renúncia do gabinete.
Na
iminência da demissão do segundo gabinete, o CGT ameaçou convocar uma nova
greve geral caso o plebiscito não fosse marcado para coincidir com as eleições
de outubro. Entre os militares, a tensão aumentava. O comandante de III
Exército (Rio Grande do Sul), general Jair Dantas Ribeiro, enviou um telegrama
ao ministro da Guerra, Nelson de Mello, afirmando que não teria condições de manter
a ordem pública no estado caso o parlamento se recusasse a aprovar a realização
do plebiscito.
A 13
de setembro foi publicada a seguinte declaração na imprensa:
Face à
intransigência do Parlamento... e tendo ainda em vista as primeiras
manifestações de desagrado que se pronunciam nos territórios dos Estados (sic)
ocupados pelo III Exército, cumpre-me informar a V. exa., como responsável pela
garantia da lei, da ordem... e da propriedade privada deste território, que me
encontro sem condições para assumir a segurança e êxito a responsabilidade do
cumprimento de tais missões, se o povo se insurgir pela circunstância de o
Congresso recusar o plebiscito para antes ou no máximo simultaneamente com as
eleições de outubro próximo vindouro.
Por
sua vez, os generais Osvino Alves e Peri Constant Bevilaqua, comandantes do I e
II Exércitos, respectivamente, solidarizaram-se com Dantas Ribeiro. Apenas o
general Castelo Branco, comandante do IV Exército, recusou-se a apoiar a declaração.
O ministro da Guerra, contrariado, considerou a declaração do comandante do III
Exército uma manifestação de insubordinação.
Por
outro lado, o movimento sindical resolveu solidarizar-se com Dantas Ribeiro e
convocou uma greve nacional para exigir a antecipação do plebiscito. Em 14 de setembro,
Brochado da Rocha renunciou. A greve geral estourou no dia seguinte, tendo uma
adesão inferior àquela realizada em julho, mas não menos radicalizada e
importante. No dia 16 do mesmo mês, fruto de um acordo em meio à polarização política,
foi aprovado o projeto que antecipava o referendum para o dia 6 de janeiro de
1963.
Ao
gabinete de Brochado da Rocha sucedeu o de Hermes Lima. Com a data do
plebiscito marcada, este consistiu basicamente num período de transição ao
presidencialismo. A certeza da vitória do sistema presidencialista era
percebida pelos atores políticos e mensurada nas pesquisas de opinião pública
realizadas no período, que apontavam mais de 70% da população favorável ao
retorno do presidencialismo.
Mas
não faltaram defensores do novo experimento, como os parlamentaristas históricos
Raul Pila e Afonso Arinos de Melo Franco. Entre o militares, Juarez Távora, da Cruzada
Democrática e pertencente aos quadros do Partido Democrata Cristão (PDC), encontra-se
entre os principais defensores do sistema. Este pronunciou uma série de
conferências radiofônicas – num momento em que este ainda era o mais importante
veículo de comunicação de massas –, e emitiu pronunciamentos na
televisão defendendo a superioridade do sistema parlamentarista. Seus
argumentos consistiam em:
1)
declarar que o sistema vigente no Brasil era uma caricatura de parlamentarismo;
2) defender
a eficiência histórica do sistema, usando, constantemente, o exemplo do Segundo
Reinado.
Chegava
a listar uma série de importantes personalidades políticas formados sob este
sistema no oitocentos, afirmando que “a escola parlamentar foi bem mais fecunda
em verdadeiros estadistas, que a presidencial”.
Mas
era do lado pró-presidencialista que se encontravam a maior parte dos
militares. Peri Constant Bevilaqua, general que comandava a II região militar,
era um forte opositor do sistema parlamentar. Militar legalista, Bevilaqua
defendeu a posse de Goulart, mas considerou o Ato Adicional que instituiu o
parlamentarismo uma violação da Constituição de 1946. Em seu arquivo particular
há um manuscrito de sua autoria, redigido no dia 6 de janeiro de 1963 (dia do
plebiscito), em que afirma ser o parlamentarismo vigente fruto de “condições anormais”.
Esperava, assim, que o povo repudia-se aquele regime nas urnas, o que acabou
por acontecer. No mesmo arquivo de Bevilaqua há um telegrama de Goulart,
enviado poucos dias depois, agradecendo o apoio do general ao retorno do presidencialismo.
Deve-se
lembrar, contudo, que o general Bevilaqua encontrava-se em profunda contradição
com uma das bases fundamentais de sustentação do governo Goulart, o movimento sindical,
sendo um ferrenho crítico das organizações sindicais “paralelas”, que levavam
este nome por estarem em desacordo com a legislação trabalhista vigente.
O
período parlamentarista foi marcado por grandes instabilidades políticas,
situação que perdurou mesmo após a volta do presidencialismo. Esta permanência
revela que a instabilidade do sistema político possuía raízes profundas,
remetendo a questões que estão além das alternativas entre presidencialismo e
parlamentarismo. Trabalhamos com a ideia de que o sistema político de então se encontrava
em “crise orgânica”, situação que é caracterizada quando os partidos políticos
tradicionais não são mais reconhecidos como representantes dos interesses das
classes sociais, a exemplo do que afirma René Armand Dreifuss em seu trabalho
clássico sobre o golpe de Estado.
Trata-se,
portanto, da crise do populismo, forma de domínio político baseado no chamado
“estado de compromisso”, que perdurou no Brasil de 1930 a 1964.
Todavia,
a opção generalizada pelo presidencialismo pode indicar pistas sobre as
profundas transformações ocorridas na sociedade brasileira no bojo da crise dos
anos de 1960. Os setores das classes dominantes que viriam a assumir os
principais postos da política econômica e administrativa no governo militar que
sucedeu a queda de Goulart, chamados por Dreifuss de “elite orgânica”, empenharam-se
pela volta ao presidencialismo. Segundo este autor:
Anpuh
Rio de Janeiro
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também:
Bibi Ferreira e o plebiscito de 1963
Enviado por Tamára Baranov 08/11/2013
Autor: Tamára Baranov
No dia 6 de janeiro de 1963, o povo brasileiro
atendeu ao apelo do Presidente João Goulart, comparecendo maciçamente às
urnas do plebiscito, para dizer não à manutenção do parlamentarismo em
vigor no país desde 1961. Na época de Jango, o rádio era uma arma
poderosa para as campanhas políticas, e os jingles eram capazes de
vencer uma eleição. Bibi Ferreira e os convidados especiais Elizeth
Cardoso, Ivon Cury, Isaurinha Garcia e Jorge Goulart, marido de Nora
Ney, foram chamados para apresentar uma das principais peças
publicitárias do presidencialismo.