Apesar de originar-se no ano de 1992 e, depois de sua realização o Brasil ter sustentado o sistema, ainda assim, entendo que o presidencialismo merece uma constante avaliação, portanto, trago à baila esse debate que contou com as distintas participações de: Ronald
Rocha, Plínio de Arruda Sampaio, Sandra Starling e Vladimir Palmeira, para a apreciação dos meus leitores.
A reforma constitucional de 93 prevê a
definição do regime de governo. O PT defendeu na Constituinte o
presidencialismo. De lá para cá, muitos setores do partido têm se manifestado a
favor do parlamentarismo. A fim de contribuir para um posicionamento sobre o
tema, Teoria e Debate abre esta discussão com dois artigos
pró-presidencialismo e dois pró-parlamentarismo.
Presidencialismo é sinônimo de
hipercentralização. A implantação do parlamentarismo será uma derrota para o
que há de mais arcaico e antidemocrático na política nacional. Enfraquecerá a
hegemonia burguesa e possibilitará que o movimento socialista triunfe.
Para Raul Pilla, o homem que propôs a
introdução do parlamentarismo no Brasil, o "notável parecer de 1949"
de Afonso Arinos é "o maior esforço já despendido neste país em favor de
um regime condenado". Não há novos argumentos em socorro do
presidencialismo. Sua longevidade se reproduz em uma cultura entranhada na
sociedade civil, na inércia institucional, nos interesses políticos concretos,
no poder de cooptação da autoridade central, na disposição do capital em manter
a hipercentralização em torno do Executivo. Eis como se encontraram correntes
tão diferenciadas. Que razão comungam?
Há quem afirme, como Emanuel Mata, que
"o sistema presidencialista é muito mais democrático, porque nele os
poderes de governo emanam diretamente do povo (...) com o sistema de mandato
livre, em que não há vinculação imperativa da vontade, a representação é uma
ficção". Ora, também a representação presidencial tem "mandato
livre". Portanto, seria igualmente "uma ficção". Agravantes: os
ministros surgem da decisão absoluta do presidente; a fusão dos grupos
monopolistas financeiros com os órgãos de poder opera diretamente como
conveniências corporativas ou individuais.
Como poderiam "os poderes de
governo" emanar "diretamente do povo" senão como a quimera de
que a Presidência expressa realmente a soberania popular? De fato, o poder
originário é inseparável das determinações de classe que fundam o momento
particular e ditatorial do Estado burguês, incluindo sua verdade ideológica,
seu "direito da desigualdade" e seu monopólio de coerção.
Sob o capitalismo, a soberania popular
é formal. Sua correspondência com as relações sociais encontra-se mediada pela
ideologia e se exprime juridicamente. Nas palavras da filósofa húngara Ágnes
Heller, existe apenas "um Estado e um direito alienados". A liberdade
individual é uma entidade mítica posta idealmente pelo ser transcendental
metafísico, portanto originalmente externa ao homem real. Tanto mais no Brasil,
onde a sociedade se encontra sob a primazia dos grupos monopolistas financeiros
e o Estado é um aparato estranho ao comum dos mortais.Há, contudo, diferenças
entre as presidências nas duas formas de governo. Também no parlamentarismo
republicano o presidente é eleito diretamente. Porém, representando a chamada
chefia do Estado, sua eleição privilegiará questões de princípio, temas
estratégicos e grandes dilemas da conjuntura. Um Parlamento eleito para compor
o governo tende a se libertar do paroquialisrno e se expor à cobrança política.
Dois procedimentos alargam a democracia
burguesa: primeiro, o deslocamento do centro de gravidade da política
institucional para o Parlamento; segundo, a chance de mudar governos e
dissolver o Parlamento. Em um país onde a hegemonia passiva está associada a
uma Presidência paternalista e manipuladora, à impunidade dos políticos
burgueses durante quatro e até oito anos, à marginalização das massas frente à
política, onde a Presidência é mitificada como origem dos problemas -
obscurecendo as questões sociais - ou das soluções - potencializando o
populismo e o messianismo - não é fácil perceber o caráter progressista do
parlamentarismo.
Governo forte, para quem?
Os presidencialistas sempre foram
obcecados pela ideia de um "governo forte". Afirma Emanuel Mata:
"o regime parlamentarista tem degenerado em anarquia e ditadura". Tal
lógica se funda na razão passiva: "A vantagem maior do presidencialismo,
entre nós, está na imposição sociológica de um governo forte e progressista,
para um povo que cresce e não tem condições materiais para tolerar o imobilismo
da instabilidade, nem estabilidade emocional para suportar a complicação da
máquina parlamentarista".
Ordem e progresso. Quem virá impô-los?
O general de plantão? O populista? O messiânico pós-moderno? No Brasil, os
governos fortes traduziram os interesses das frações mais reacionárias das
classes dominantes. A discussão sobre formas de governo deve supor a defesa das
liberdades políticas no quadro do maior aprofundamento possível do regime
democrático-burguês republicano.
A forma federativa do Estado exige um
"governo forte", isto é, presidencialista? Afonso Arinos respondeu:
"O parlamentarismo é incompatível com o federalismo". Porém, inúmeros
países federativos adotam o parlamentarismo. A estrutura federativa exige tão-somente
uma Constituição destacada das leis ordinárias para garantir a
constitucionalidade das decisões parlamentares. De resto, os governos fortes
reduziram de tal modo a autonomia dos estados que a "nossa"
Federação, sob o presidencialismo, tornou-se uma farsa. Em nosso país, a
soberania popular corresponde ao artigo adicional proposto ironicamente por
Mirkine-Guetzevitch, à Constituição da Áustria: "O presidente da Federação
nomeia o povo".
No Brasil, a hipercentralização do
Executivo é momento, expressão e uma das determinações superestruturais da
reação política: tradição, cultura, psicologia social, instituição. Para os
trabalhadores, significa cidadania inconclusa, marginalidade política,
repressão, ausência crônica de liberdade. Para a burguesia, foco de crise
institucional. Assim, não é por razões doutrinárias que a opção parlamentarista
volta à baila. Tornou-se uma questão candente.
Todavia, tenta-se desqualificar o
debate. À esquerda, o doutrinarismo sempre foi indiferente ao regime político e
à questão democrática sob o capitalismo. Porque se interessaria pelas formas de
governo? À direita, Afonso Arinos procura usufruir da neutralidade:
"Qualquer sistema democrático de governo (...) será apto a resolver os
problemas do povo desde que funcione". Emanuel Mata pega o bastão: tudo
dependeria da "correta aplicação" e da "boa intenção dos (...)
governantes". Porém, o debate sobre as formas de governo possui um
estatuto próprio.
Sobra o argumento clássico: o Brasil
não está preparado, não há partidos! A direita repete o raciocínio
paternalista: primeiro, tutelar os partidos; só depois chamá-los ao exercício
do parlamentarismo. Quer uma situação que dispensa os partidos e os desagrega.
Fortalecer os partidos é um problema
dos partidos. Basta-lhes autonomia perante o Estado, liberdade, um sistema
eleitoral que os estimule, uma forma de governo que não os abastarde. Os que
não desejarem ou puderem se atualizar serão ultrapassados. Os que tiverem
substância terão como se fortalecer.
Parlamentarismo e interesse popular
A tradição presidencialista, escudada
na desconfiança da burguesia em qualquer mudança, ensinou, através de Afonso
Arinos, que "devemos nos habituar à prática da evolução construtiva das
instituições políticas, em vez de prosseguir no esforço de revoluções destrutivas,
que recolocam permanentemente o problema da forma do Estado sem nunca abordar
as questões de fundo, que dizem diretamente respeito à vida do povo". O
exagero de ver na mudança da forma de governo uma revolução é acompanhado de um
apelo demagógico à resolução das "questões de fundo", atitude que o
desavisado poderia atribuir ao doutrinarismo esquerdista.
Que presidentes se preocuparam
verdadeiramente com a "vida do povo"? Como considerá-la algo
exterior, como se a forma de governo fosse um tema cativo da classe dominante?
É preciso contrapor à inércia presidencialista o espírito da modernidade que
Marx e Engels enunciaram: "Tudo o que era sólido e estável se esfuma; tudo
o que era sagrado é profanado, e os homens, finalmente, vêem-se obrigados a
encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações
recíprocas".
Será oportuno? Hoje, o chefe de governo
personifica a herança presidencialista em seus piores traços. Político
messiânico, hipercentralizador, instrumentalizado pela oligarquia financeira
nacional e internacional, secundado pela mídia eletrônica, sustentado na
hegemonia passiva, aposta na absolutização das prerrogativas presidenciais e na
submissão do Congresso Nacional para melhor neutralizar a sociedade civil
organizada, esmagar a resistência proletária e isolar a oposição de esquerda. O
sistema partidário-eleitoral apodrece, ainda mais, com o agravamento da crise
de governo.
A mudança da forma de governo se
converteu em tarefa democrática. É a chance do parlamentarismo extrapolar o
círculo de políticos e juristas burgueses, tornando-se uma exigência popular.
Para tanto, é necessário antecipar o plebiscito, evitando que a proximidade
eleitoral eclipse as questões políticas e que as candidaturas presidenciais,
com raras exceções, costurem uma frente em defesa de suas ambições. Mais ainda,
é preciso que a reivindicação parlamentarista propicie o julgamento político do
governo Collor.
Além de oportuno, é apropriado. Sob o
presidencialismo, o exercício hegemônico se desloca para o Executivo na sua
personalidade central. A hegemonia se torna uma heteronomia em relação à
comunidade nacional. Supõe a existência de uma sociedade civil que recebe de um
princípio exterior as determinações a que deve se submeter. Se, pelos cânones
do Direito Constitucional burguês, o Parlamento é, por excelência, um fórum
representativo, será forçoso reconhecer que o presidencialismo significa, para
a sociedade civil, a perdição da autonomia formal. Em períodos agudos da luta
de classes, a eventual crise na hegemonia perde a natureza de carecimento
representativo para se converter diretamente em crise de autoridade, que só
pode ser restabelecida pelo clássico remédio nacional do "governo
forte".
Democratizar a democracia
O presidencialismo não se restringe à
forma de governo. Está presente nos partidos políticos, na tradição sindical
herdada do Estado Novo, nas entidades populares, nas sociedades anônimas, nos
clubes. A sociedade brasileira é presidencialista. A implantação do
parlamentarismo exige uma reforma que sacuda os alicerces psicossociais da
hegemonia passiva.Neste nível reside, junto com a resistência do fisiologismo,
o maior obstáculo. Mas também há ponderações no interior da esquerda. A
primeira levanta que a eleição para o Executivo central permite a politização
da disputa em torno de projetos nacionais e o crescimento da base de massas dos
partidos socialistas para além de seus limites orgânicos e de sua influência
normal. A segunda entende que a eleição direta da chefia do governo permite o
acesso ao poder com maior rapidez. A terceira tenta identificar
presidencialismo com democracia direta.
O parlamentarismo não inibe a
polarização política. Contribui para lhe imprimir uma qualidade nova. A eleição
direta da chefia do Estado em nada arrefece as paixões, antes vai canalizá-las
para temas estratégicos e dificultar o nivelamento de candidatos que adotam
discursos demagógicos. A composição do governo pelo Parlamento favorecerá o
intercâmbio entre as massas e os partidos. Atuará contra a inorganicidade e a
marginalidade política que a via particular de afirmação da supremacia burguesa
fixou na consciência das classes populares. Os partidos tenderão a se
fortalecer face a seu papel central na gestão da coisa pública e nas questões
de governo. Perderão aqueles interesses que, por seu poder e influência nas
altas cúpulas do Estado, vêm aparelhando o Executivo. Ganharão as correntes
cujos projetos passam pela politização da sociedade civil e fortalecimento
partidário.
A rapidez de acesso ao poder contém uma
ilusão: confunde Estado com governo e supõe que a simples eleição cria
condições para resolver os problemas sociais, desconstituir a hegemonia
burguesa e colocar a máquina estatal sob a direção dos trabalhadores. As
experiências internacionais e das prefeituras petiscas mostram outra realidade.
A conquista do governo federal implica um contraste com os interesses de classe
presentes no Estado, que devem ser enfrentados sem quimeras. Se acompanhada, no
Congresso Nacional, da hostilidade de uma maioria conservadora, a crise institucional
poderá evoluir para uma crise de governo. A única saída será, descartando-se a
capitulação, o apelo direto ao povo. Só uma correlação de forças favorável,
criteriosamente construída fora do Parlamento, poderá garantir o governo face
às conspirações que se escudariam no Congresso Nacional e na letra da
Constituição. Mas já não seria um capítulo da trama eleitoral. A estratégia
socialista precisa estabelecer critérios bem mais abrangentes do que a rapidez
do sucesso eletivo.
Como identificar presidencialismo com
democracia direta? Eleger um presidente que permanecerá inamovível durante todo
um mandato apenas pode ser visto como ato fundante - poder originário - do
Executivo se, ao princípio liberal que define a soberania popular pela
democracia formal, forem subtraídas as dimensões representativas referenciadas
no Parlamento e nos partidos. É um raciocínio próximo à tradição populista,
onde massas inorgânicas se abandonam à figura do salvador que supostamente
escolheram no momento de liberdade infinita do sufrágio direto, sem
intermediários ou representantes. A intimidade no processo eleitoral é sucedida
pela negligência política.
A discussão pede outros parâmetros. A
implantação do parlamentarismo será uma derrota para o que há de mais arcaico e
antidemocrático na política nacional. Aprofundará o regime democrático-burguês,
vinculando a composição do governo e os processos executivos à representação
formal assentada no Parlamento, dando condições à opinião pública de julgar a
responsabilidade dos partidos e desagregando a impunidade governamental que
atualmente perdura durante todo um mandato fixo. Diluirá o reduto federal do
fisiologismo, da clientela, do provincianismo. Deslocará para o Parlamento o
centro de gravidade da política institucional, favorecendo os partidos
ideológico-orgânicos. Reservará para consultas populares diretas os temas
relevantes. Enfraquecerá a hegemonia passiva e colocará o movimento socialista
em melhores condições na "guerra de posição".
Tais objetivos dependem, no entanto, de
reformas institucionais correlatas: fim da tutela militar, completa liberdade
de organização partidária, consolidação do sistema eleitoral em bases
proporcionais com isonomia entre os eleitores de estados diferentes, extinção
do Senado com a implantação do unicameralismo, aprofundamento do sistema
federativo, democratização nos meios de comunicação, e assim por diante. Cabe
ao Partido a iniciativa.
* Ronald Rocha é membro do Diretório
Nacional do PT, do Conselho Editorial de Teoria e Debate e diretor geral da revista
Arma Crítica.
Presidencialismo - O saudável conflito
A armação de que o presidencialismo
conduz ao caudilhismo não procede. A concentração de poderes acontece, em maior
medida, nos regimes parlamentaristas. Hitler e Mussolini, por exemplo, eram
primeiros-ministros.
"O objetivo constante é dividir e
dispor as várias funções de tal modo que uma possa ter controle sobre a
outra".James MadisonNovembro de 1983: um ousado PT, reunido em frente ao
Estádio do Pacaembu, em São Paulo, lança, diante de uma apenas razoável
audiência, a conclamação ao povo brasileiro para a luta pelas "Diretas-
já". Dezembro de 1987: o 5º Encontro Nacional petista, em Brasília,
ancorado em um frágil leque de alianças partidárias, dá a largada para mais uma
jornada memorável: "Brasil Urgente. Lula Presidente". Ambas
iniciativas, tímidas a princípio, resultaram nas maiores demonstrações de
cidadania que este país já teve oportunidade de vivenciar. Nas duas ocasiões,
tratava-se de afirmar uma relação de responsabilidade política direta entre o
povo e a titularidade da chefia de governo; e que esta responsabilidade fosse
forjada tendo a democracia como valor inarredável e o signo das mudanças
profundas como compromisso. Apostava-se, politicamente, nas inequívocas potencialidades
do presidencialismo democrático.
É de se estranhar, pois, que este
"insolente" partido acusado de "fazer o jogo do Maluf",
quando objetou a farsa do Colégio Eleitoral, por ser um golpe à soberania
popular esteja, agora, revendo suas posições e questionando possibilidades
radicalmente democráticas, por ele descortinadas sob a égide do
presidencialismo ao longo de apenas uma década de existência.
Por certo, a vitória de Collor na
eleição para a Presidência da República e os descaminhos da atual administração
levam a que defensores do parlamentarismo ganhem adeptos nas hostes petistas.
Os petistas parlamentaristas, ao atribuírem ao presidencialismo a matriz das
vicissitudes brasileiras, contribuem para apagar da memória nacional as
condições reais (desiguais) em que se deu a disputa pelo cargo presidencial;
buscam fazer crer, por indução, que o presidencialismo daria margem a opções
irracionais por parte do eleitorado. Assim, o governo Collor não seria um
acidente de percurso mas uma decorrência previsível de um processo de escolha
da chefia de governo, que propiciaria a manipulação do senso comum e o
inconsciente das massas. Mais grave, porém, é o fato de sofismarem quanto à
eficiência do parlamentarismo numa época em que se observa uma crise profunda, de
amplitude mundial, quanto aos padrões de legitimação e institucionalização.
Imputam ao presidencialismo defeitos que também poderiam ser conferidos ao
parlamentarismo. No afã de frustrar possíveis déspotas, frustram os líderes
democraticamente eleitos pelo povo.
Para que o PT se posicione de forma
segura, o debate há de se dar em bases que permitam aferir o grau de
legitimidade e eficácia governamental de um e outro regime de governo. Para
tanto, é necessário que se esclareçam as diferenças entre o parlamentarismo e o
presidencialismo.
No sistema parlamentarista de governo,
o Executivo é uma espécie de delegação do Parlamento a que se atribui a função
de governar, em consonância com um programa aprovado pela maioria da casa
legislativa. Estabelece-se um processo político semelhante a uma pirâmide de
três degraus: na base está o titular da soberania, o povo; sobre esta base
assenta-se um órgão de representação, o parlamento; e no vértice, sobre esta
camada intermediária, instala-se um colégio mais reduzido, uma "comissão
de confiança" do Parlamento, o governo (gabinete). A chefia deste governo
é atribuída a um primeiro-ministro eleito não diretamente pelo povo, mas por um
colégio eleitoral, o Parlamento, após indicação de um árbitro das disputas políticas,
o chefe de Estado - um monarca, ou um presidente da República. Assim, no
parlamentarismo, as atribuições de chefe de governo e as de chefe de Estado são
deferidas a pessoas distintas. A vontade do povo manifesta-se somente na
constituição do Parlamento, daí falar-se que o regime parlamentarista é um
regime monista. Isto é, de urna única vontade popular.
No sistema presidencialista, o governo
representativo baseia-se em uma separação (restrita) de poderes,
estabelecendo-se uma independência relativa entre Executivo e Legislativo. O
povo, da mesma forma que escolhe o Parlamento, também elege diretamente o chefe
de governo, que soma às funções executivas as de chefe de Estado. Desta forma,
fixando-se poderes distintos (Executivo e Legislativo), desconcentrando-se as funções
estatais e submetendo-se ambos - Parlamento e governo - ao voto popular,
reforça-se no presidencialismo o princípio do exercício da soberania pelo
sufrágio universal. Tanto o governo quanto a câmara de representação são
politicamente responsáveis perante o próprio povo. A legitimidade do governo
por este ângulo é maior no presidencialismo, posto que o consenso democrático
deriva de uma relação direta entre os cidadãos e o titular da chefia de
governo. O regime de governo presidencial é dualista, isto é, de dupla vontade
popular, resultando num permanente e positivo tensionamento político. Combina a
recorrência periódica ao voto universal e o sistema de freios e contrapesos que
só o presidencialismo proporciona com a desconcentração, separação e controle
de mão dupla do próprio poder.
No que se refere à eficácia
governamental, poder-se-ia argumentar que no presidencialismo a existência de
um parlamento em oposição ao governo gera graves conflitos administrativos,
sobretudo se o chefe do Executivo, usando de uma prerrogativa que lhe é
inerente neste sistema, veta matérias legais aprovadas na casa legislativa. A
tese, todavia, não prospera. O ordenamento jurídico-constitucional pode
consagrar o instituto da vinculação do voto dado ao postulante da chefia do
Executivo ao que for conferido à sua sigla partidária ou coligação (na chapa
apresentada ao Parlamento) e combinar esta hipótese à coincidência de mandatos.
Sem prejuízo da representação proporcional de minorias, este mecanismo
possibilitaria a configuração de sólida base de apoio parlamentar e o
fortalecimento das agremiações partidárias. Ademais, deveríamos indagar, se não
tem contribuído para a exaltação do modelo norte-americano de sistema de
governo o fato de nos EUA, tradicionalmente, se eleger o presidente da
República de um partido e constituir-se um legislativo oposicionista. Como
disse numa decisão da Suprema Corte em 1986 seu então presidente, Warren
Burquer, as instituições do governo foram deliberadamente dispostas para criar
um sistema que produzisse "conflitos, confusão e discordância".
Argumenta-se que o parlamentarismo
seria mais maleável em face da vinculação do governo ao humor predominante no
Legislativo, o que lhe conferiria maior estabilidade política. No entanto, o
presidencialismo comporta modulação análoga, porém mais democrática. Não
falamos aqui do impeachment do chefe de governo presidencial, na eventualidade
de prática de crime de responsabilidade, mas do recall, ou seja, a destituição,
por petição popular da própria representação parlamentar ou executiva
(revogabilidade dos mandatos). A alegada flexibilidade do parlamentarismo é
ainda questionável na medida em que se observa um progressivo constrangimento,
em distintos ordenamentos constitucionais, das oportunidades de proposição de
moções de censura aos governos instalados (dilatação dos interstícios para
apresentação de proposições de desconfiança). A par disso, a instabilidade
política é uma questão que se coloca para o parlamentarismo, quando o chefe de
Estado (presidente ou monarca) se vê diante da necessidade de optar
discricionariamente entre a dissolução do governo ou a dissolução do
parlamento, em razão da aprovação de um voto de desconfiança ou de simples
rejeição de uma matéria de interesse do gabinete.
Também não procedem as críticas de que
o presidencialismo conduziria ao governo imperial ou caudilhesco. Ressaltamos
aqui que o fenômeno da concentração de poderes é verificado em maior medida no
parlamentarismo. Com efeito, podemos afirmar que, hoje, os parlamentos inglês, alemão,
italiano, espanhol, entre outros regimes parlamentaristas, encontram-se
subjugados à dinâmica imposta por seus respectivos governos e não o contrário.
É o que se observa no exame de pautas de votação compostas quase que
exclusivamente de matérias consideradas relevantes pelo governo,
reconhecendo-se aos executivos a faculdade de editar providências cautelares de
caráter legislativo (government by decree na Inglaterra; ordonnances na França;
provvedimenti con forza di legge na Itália; decretos leyes na Espanha etc). O
mesmo não acontece nos EUA (presidencialista), onde o presidente da República
não possui a iniciativa no processo legislativo, não detém a prerrogativa de
editar medidas extraordinárias com força de lei, não tem controle sobre a
elaboração do orçamento e sequer pode formar seu secretariado (ministério) sem
o agreement de um órgão legislativo como o Senado Federal. Por essas e outras
razões é que se vê não no presidente dos EUA, mas no primeiro-ministro da
Grã-Bretanha uma figura política imperial.
De mais a mais, se é dado que no
presidencialismo as funções de chefia de Estado e chefia de governo se
confundem numa única pessoa, o que tem suscitado equivocadamente o rótulo de
"autocracia", correta é a constatação de que isso impede a emergência
de conflitos institucionais que, no parlamentarismo, emanam da interseção de
atribuições destes dois agentes políticos. As dificuldades aumentam, ainda
mais, em sistemas híbridos semi parlamentaristas (França, por exemplo) ou semi
presidencialistas (Portugal, por exemplo).No semipresidencialismo e no semi
parlamentarismo, conquanto haja separação entre as funções do chefe de Estado e
do chefe do governo, aquele (o presidente da República, no caso) é eleito
diretamente pelo povo em oposição ao parlamentarismo clássico. É bom lembrar
que os petistas parlamentaristas têm, sem exceção, defendido a eleição direta
do presidente da República, descartando a implantação do sistema
parlamentarista original. Registramos, no entanto, que não tem sido esclarecido
por adeptos desta ideia no interior do partido se o chefe de Estado teria a
prerrogativa de vetar as proposições de lei votadas pelo Parlamento, donde o
sistema pretendido seria um semi presidencialismo, tal como existe na República
portuguesa, ou se apenas ser-lhe-ia cometida a faculdade de propor ao
Parlamento a reapreciação de proposições legais já votadas, no que o regime
escolhido seria um semi parlamentarismo ao estilo francês.
Se os que advogam estes sistemas mistos
vêem na eleição direta do presidente da República um antídoto contra os
conchavos fisiológicos do jogo parlamentar, resta evidente que os momentos de
crise alimentam conflitos de competência entre o chefe de governo
(primeiro-ministro) e o chefe de Estado (presidente). A renúncia do presidente
de Portugal, Mário Soares, à condição de filiado ao Partido Socialista
Português ante a perda de sua maioria parlamentar na Assembléia Nacional; as
pressões para que o presidente da França, François Mitterrand, reduza o tempo
de seu segundo mandato; a inusitada proposta de Lech Walesa, presidente da
Polônia, de escolher a si próprio como "primeiro-ministro", após sua
recente derrota eleitoral demonstram, per si, a falta de operacionalidade atual
de mecanismos híbridos de governo.
Ponto sensível que os petistas
parlamentaristas evitam abordar: se no parlamentarismo o chefe de Estado é o
comandante supremo das Forças Armadas, caberia ao chefe de governo indicar os
ministros militares? Estes cairiam juntamente com o restante do gabinete, em
caso de aprovação de voto de desconfiança? Poderiam ser submetidos à moção de
censura isoladamente?
Os adeptos do parlamentarismo não têm
avaliado devidamente as condições reais em que este regime seria implantado num
país onde vige uma legislação eleitoral que distorce a representação popular;
onde impera um clientelismo em detrimento de alinhamentos
programático-ideológicos, dando-se primazia a composições governamentais a
partir de um centro politicamente difuso e cambiante; onde inexiste uma
administração estratificada, com altos funcionários politicamente neutros,
moralmente isentos, capazes de garantir a continuidade administrativa durante
os períodos de dissolução e formação de governos; onde se adota a forma
federativa de Estado e não se fala em estender o parlamentarismo aos
estados-membros e aos municípios; onde não estão previstas eleições para o
Congresso Nacional, em caso de vitória do parlamentarismo no plebiscito de
1993, para a necessária tarefa de adaptação do texto constitucional.
A solução a nosso ver estaria em um
presidencialismo renovado, em que a democracia, assumida como de natureza
conflitiva, se cristalizasse através de duas vias: as eleições legislativas e a
eleição presidencial; em que, enfim, o sistema de controle e equilíbrio (check
and balance) entre os poderes pudesse funcionar efetivamente. Este
presidencialismo o Brasil ainda não conheceu. Acreditamos que vale a pena
experimentá-lo.
Antes de atribuirmos os males
estruturais e de ocasião ao "caudilho de plantão", deveríamos exigir
que o Congresso Nacional exercesse prerrogativas já previstas na Constituição,
que possibilitam barrar arroubos autoritários de quem quer que venha a ocupar o
Palácio do Planalto. Queremos dizer com isto que está na hora de cobrarmos a
responsabilidade de um parlamento negligente no exame de admissibilidade de
medidas provisórias inconstitucionais; que evita sustar atos normativos do
Executivo que exorbitam do seu poder regulamentar; que tende a aprovar,
incontinenti, as contas públicas viciadas; que não zela pela preservação de sua
competência legislativa face à atribuição normativa de outros poderes; que não
agiliza a elaboração da legislação infraconstitucional, necessária para que a
Constituição tenha plena eficácia; que faz do Orçamento da União um balcão de
negócios e barganhas eleitoreiras; que obstrui inquéritos parlamentares de
investigação de atos irregulares do governo; que, por omissão, não consegue
derrubar vetos presidenciais em matérias importantes, como a política salarial
e os planos de benefícios previdenciários. Eis aí o Congresso Nacional que
poderia, no parlamentarismo, eleger, em nome do povo, o governo do Brasil!
Por último: aos que sustentam,
ligeiramente, que o presidencialismo deixou como legado à cultura política
nacional o Estado Novo de Vargas e a ditadura militar, recordamos que o
parlamentarismo ofereceu ao mundo os desvarios e horrores dos governos de dois
primeiros-ministros tristemente famosos: Benito Mussolini e Adolf Hitler.
* Sandra Starling é
deputada federal do PT/MG.
Presidencialismo: Indireta no estômago
É inacreditável que haja
parlamentaristas no PT. Nesse regime que tantos defendem falta democracia. O
chefe de governo é eleito por uma espécie de colégio eleitoral e isso propicia
a formação de panelinhas centralizadoras. Lutar pelo presidencialismo é
combater a direita liberal.
Por Vladimir Palmeira*É espantoso que
haja tantos parlamentaristas em nosso partido. A fragilidade desta posição em
um partido de movimento e de mudanças é tão grande que chama a atenção para a
nossa própria evolução.
Estabelecemos quatro pontos essenciais
para julgar um regime de governo: maior ou menor democracia (ou mais
representatividade), maior ou menor capacidade de descentralizar, maior ou
menor flexibilidade e maior ou menor capacidade de estabilização.
Presidencialismo e parlamentarismo se
equivalem quanto à flexibilidade. Os parlamentaristas adoram dizer que seu
regime é mais flexível porque podem mudar a qualquer momento o chefe de
governo, coisa bem difícil de se fazer no presidencialismo. Mas o
presidencialismo muda de governo com facilidade, embora não de chefe. Aqui no
Brasil mesmo, a queda de Zélia e de sua equipe representou uma mudança
substancial.
No parlamentarismo, é comum que a
possibilidade de mudar o chefe de governo sirva para mantê-lo. O primeiro ministro
pode dissolver o Congresso na hora que desejar. Quando está bem nas pesquisas,
"mete bronca", convoca eleições. Com isto, há chefes de governo que
se eternizam. Sem falar que mudanças na chefia de governo nem sempre traduzem
mudanças de fundo. A mesma panelinha continua mandando...O presidencialismo é
mais democrático que o parlamentarismo: (De fato, quanto mais direta a
democracia, melhor. Ora, no presidencialismo, os trabalhadores podem eleger
diretamente a chefia de governo que não precisa necessariamente ser de um só
homem, podendo ser colegiada. No parlamentarismo, deputados escolhem em nosso
lugar. Sabemos bem que nem sempre a democracia, a mais direta, é exeqüível.
Neste caso, porém, não há dúvidas. O parlamentarismo tira a possibilidade dos trabalhadores
escolherem diretamente seu governo.
Podemos ir mais longe. Nos Estados
Unidos, há estados onde o Poder Judiciário também é eleito. Deve ser este nosso
objetivo, três poderes eleitos diretamente.
O presidencialismo é mais
descentralizador, ao contrário do que se costuma alardear nas fileiras
parlamentaristas. Na Inglaterra, 70% das leis têm origem no Poder Executivo. É
verdade que os deputados elegem o chefe do governo. Mas, depois da eleição,
este governo tem um peso descomunal, passando praticamente tudo que quer. Salvo
um ou outro momento, é o Executivo que dá as cartas, daí termos figurinhas
carimbadas na direção dos governos europeus. Enquanto isso, não há, no mundo,
Legislativo mais forte que o dos Estados Unidos, que têm regime presidencialista...O
presidencialismo quebra a concentração porque os dois poderes são autônomos,
eleitos os dois. A eleição do Judiciário colocaria a situação ideal, o
equilíbrio entre três poderes, todos eleitos diretamente pelo voto popular.
Os mais ortodoxos lembrarão que Marx,
analisando a guerra civil na França, em 1871, vira na Comuna um exemplo de
poder moderno, que seria a um só tempo Legislativo e Executivo. A experiência
na URSS não pareceu confirmar as virtudes de tal exemplo. Favoreceu-se uma
centralização acentuada. A concentração de dois poderes em um só aumenta o
autoritarismo e dificulta o controle popular.
Sendo o presidencialismo tão superior,
por que, indagam os parlamentaristas, a Europa é parlamentarista e só os
Estados Unidos têm regime presidencialista entre os países desenvolvidos?
A resposta está na própria história da
Europa. Havia uma monarquia centralizada que começou a ser questionada pelos
senhores de terra e pelas novas classes dominantes. O poder real começou a ser
limitado, sobretudo na sua capacidade fiscal, a partir da formação de
parlamentos. A luta política teve um ponto decisivo na luta do Parlamento
contra o rei. No geral, seu resultado foi um compromisso. Os reis foram
perdendo poder efetivo e o Poder Executivo sendo designado pelo próprio
Parlamento, através da nomeação de um primeiro-ministro.
Já o presidencialismo veio com a
Revolução da Independência Norte-americana. Aqui, não poderia haver
compromissos, a realeza sendo inglesa. Rompidos os laços com a Inglaterra, os
americanos optaram pelo óbvio: escolher diretamente o Poder Executivo, através
da eleição de um chefe de governo, o presidente da República.
Assim, onde havia civilizações mais
antigas, onde a tradição monárquica pesou, o regime tendeu ao parlamentarismo.
Em países novos, como na América do Sul, quem pretendeu ter uma democracia
representativa optou naturalmente pelo presidencialismo.
Eis aí a resposta, fruto da experiência
histórica dos povos europeus. Querer repetir a Europa é mera bobagem porque,
como já se disse, não importamos com o parlamentarismo as condições e a
história européia. O Parlamento seria um fracasso maior que o Governo Paralelo,
esse fantasma que paira na cúpula de nosso partido.
Chegamos finalmente a um ponto onde o
parlamentarismo é vitorioso. Sem nenhuma dúvida é um regime mais estável. É
meio grotesco que petistas escolham um regime de governo pela defesa da ordem,
mas temos de reconhecer as vantagens parlamentaristas...Mas, se examinarmos
bem, descobriremos que o parlamentarismo não garante estabilidade nenhuma. Quem
lhe dá estabilidade é o sistema distrital de eleições. Não é à toa que a
maioria de nossos parlamentaristas defende este tipo de eleição.
Neste sistema, as eleições seriam por
distrito, por circunscrição eleitoral, e teriam caráter majoritário. Teríamos a
eleição de um deputado por distrito. Seria o vai ou racha. Ou se ganha ou se
perde. Os votos dos partidos derrotados não contam para coisa nenhuma. A
representação no parlamento não seria mais proporcional aos votos obtidos por
um partido. As minorias estariam liquidadas. Um partido poderia ter 10% dos
votos e nenhuma cadeira.
O Parlamento deixa de representar todas
as diferenças da sociedade. A tendência é a de se formar um bipartidarismo
artificial. Um só partido pode ter ampla maioria no parlamento, sem
correspondência efetiva com a proporção de votos que recebeu. O grau de
concentração de poderes que o parlamentarismo já tem é multiplicado pela
concentração partidária. A democracia se restringe. A descentralização vai para
o espaço. A estabilidade triunfa.
Presidencialismo e sistema
proporcional, eis a posição. Isto não implica que se pare nas definições.
Devemos patrocinar reformas no presidencialismo. Já nos referimos às eleições
no Judiciário. Teríamos de acabar com o direito de veto do presidente da
República, teríamos de exigira aplicação do princípio "um homem, um
voto", assegurando uma verdadeira proporcionalidade. No mesmo sentido,
deveríamos eliminar o Senado ou restringir sua competência a questões atinentes
à federação.
Encaminhamos as questões referentes ao
regime de governo em geral. Não poderíamos deixar, no entanto, de lembrar que,
na cultura política brasileira, as eleições legislativas são o exemplo de ação
fisiológica, enquanto toda a polarização política se dá nas eleições para o
Executivo. São estas que politizam. Aqui, o parlamentarismo também joga na
direção do retrocesso.
Nesta discussão, não podemos nos
limitar à questão do regime de governo propriamente dito. Cabe-nos perguntar o
porquê da onda parlamentarista. Não sai do nada. Vem englobada em uma opção de
desenvolvimento que a chamada direita liberal tem defendido. Vem dentro de uma
ofensiva dos setores dominantes que acua a esquerda. Chega dentro da tal
política de modernização.
A direita liberal quer liquidar o setor
público da economia e dispor do poder absoluto de composição dos quadros do
Estado. Quer política agrícola sem reforma agrária. Quer novo desenvolvimento
sem nova política de redistribuição de renda.
Ataca também os direitos sociais. Quer
liquidar com os direitos trabalhistas, assegurados na Constituição. Quer
cercear o direito de greve e a possibilidade de organização política.
Parlamentarismo e voto distrital são
seu caminho de ordenação política. Transição sem transtornos.
A luta é também contra a ofensiva da
direita. Nesta luta, não cabe o silêncio. Há muita gente dentro do PT que
aceita o parlamentarismo sem trais indagações. São os parlamentaristas por
descuido. Na verdade, não ligam para a questão porque ela é institucional.
Seria bom pensarem no assunto porque ele vai entrar em suas vidas...A luta pelo
presidencialismo é uma luta decisiva. Presidencialismo contra parlamentarismo.
Presidencialismo contra liberalismo
.* Vladimir Palmeira é
deputado federal pelo PT/RJ.
Parlamentarismo - Avançar de olhos
abertos
O parlamentarismo pode ser um meio de
desarticular a prepotência das elites. Se bem estruturado, ajuda a fortalecer
as instituições e estimula a participação popular. Na sua forma ideal, o
primeiro-ministro compartilha as decisões com o seu gabinete e também com um
presidente eleito pelo voto direto mas acima das disputas partidárias.
Por Plínio de Arruda Sampaio
A adoção do parlamentarismo pode
representar um avanço importante para o país. Tudo vai depender, porém, do tipo
de parlamentarismo a ser implantado. Daí a necessidade de começar a análise do
problema por uma breve descrição do modelo de que se está cogitando e das
condições da sua implantação em nosso país.
Os elementos básicos de um regime
parlamentarista adequado ao Brasil dos nossos dias são: Poder Executivo
colegiado (gabinete), constituído e dependente da maioria dos representantes
populares no Legislativo; gabinete formado em torno de um programa de governo,
debatido e aprovado pela maioria do Parlamento; fixação de interstícios
prudentes, como condição para a substituição de gabinetes; dissolução do
Parlamento e convocação de eleições gerais, quando a rotação excessiva de
gabinetes revelar o esgotamento da capacidade do corpo legislativo em exercício
para gestar governos minimamente estáveis; admissibilidade de voto de
desconfiança exclusivamente quando dirigido contra todo o gabinete; Legislativo
bicameral, reduzindo-se, contudo, as atribuições do Senado rigorosamente às
questões que envolvem o equilíbrio da federação.
Nesse modelo parlamentarista, o
presidente da República, eleito pelo voto direto, com mandato de seis anos, tem
a função de chefe de Estado e não de chefe de Governo. Contudo, além das
faculdades típicas dos chefes de Estado nos regimes parlamentaristas clássicos
(aceitar a demissão do gabinete e coordenar o processo de formação de um novo
governo), seria conveniente outorgar ao presidente, no caso brasileiro, algumas
faculdades executivas, como, por exemplo, indicar e nomear (após a necessária
aprovação pelo Parlamento) os juízes do Supremo Tribunal Federal, o
procurador-geral da República, os generais de Exército e os conselheiros do
Tribunal de Contas; aprovar e assinar os tratados internacionais; declarar a
guerra e assinar a paz (também após aprovação parlamentar). Terminado o mandato,
o presidente passaria a integrar vitaliciamente o Senado da República,
tornando-se inelegível para qualquer outro cargo público.
A condição preliminar para que esse
modelo parlamentarista funcione é a adoção simultânea de reformas na lei
eleitoral, na legislação partidária, na regulamentação dos meios de comunicação
de massas e das formas de participação popular. Em outras palavras, o
parlamentarismo não deve ser um tema de campanha isolado, mas parte de um
conjunto de reformas, destinadas a aprimorar o nosso sistema democrático.
A primeira dessas reformas refere-se à
introdução do voto distrital misto (parte dos deputados será eleita pelo voto
majoritário, parte pela proporção de votos que cada uma das listas partidárias
obtiver no total de votos de cada estado). A segunda reforma consiste na
introdução da norma da fidelidade partidária em relação às votações que
envolvam questões de confiança e na adoção de normas que forneçam, aos
afiliados dos partidos, meios eficazes de impedir a usurpação oligárquica das
direções partidárias. Quanto ao sistema de comunicação de massas, haverá que
ampliar o espaço da programação cultural e informativa preparada por fundações
culturais, de estrutura pluralista, nas TVs e rádios comerciais. Além disso,
será necessário tornar mais ágil o direito de resposta, a fim de impedir que o
uso do noticiário falso ou calunioso continue a ser um poderoso meio de
influenciar o eleitorado.
Finalmente, para que o parlamentarismo
possa vir a funcionar adequadamente no Brasil, será preciso definir as questões
que devem ser submetidas a plebiscito ou referendo e, sobretudo, ampliar o
âmbito do instituto da iniciativa popular de leis, como um meio de frear
tendências de manipulação ou mesmo de usurpação do poder decisório do povo
pelas corporações partidárias ou legislativas.
Em que e por que esse conjunto de
reformas institucionais constitui um avanço no quadro da crise brasileira?
Antes de mais nada, porque essa crise,
apesar de se expressar contundentemente no plano econômico, constitui-se
substancialmente numa crise política. Com efeito, a economia brasileira é
perfeitamente viável e dispõe de todos os recursos necessários para produzir,
em quantidade suficiente, os bens e serviços requeridos para assegurar um
padrão de vida decente aos 150 milhões de brasileiros. Não o faz unicamente
porque, ao longo de toda a nossa história, as decisões de política econômica
não foram tornadas em função dos interesses de toda a população, mas dos
interesses de uma pequena parte. Isso só foi possível porque o sistema político
vigente - esse conjunto formado pelas esferas do poder, pelo regime de governo,
pelas regras eleitorais, pelos meios de comunicação de massas - foi ocupado,
desde o período colonial, por oligarquias regionais e grupos de poder que
representam os interesses de uma minoria privilegiada. Décadas de urbanização,
de industrialização, de transformação tecnológica, de expansão do sistema de
ensino e de ampliação da participação política, sob a forma da
"modernização conservadora", mudaram a forma, porém não a substância
dessa dominação.
Uma das pedras angulares desse sistema
é a instituição da Presidência da República, que unifica, dá coerência e
imprime a dinâmica da política das elites nas outras esferas do poder. É
igualmente a Presidência que divide e dissolve as oposições. Os poderes que o
presidente concentra, o peso de uma história de cem anos de mando
presidencialista, a extraordinária força de inércia de uma cultura secular de
submissão dos partidos e dos políticos aos desígnios do chefe supremo, operam
como elementos de dissolução de qualquer intento sério de governar de acordo
com a opinião da maioria, canalizada pelos partidos e formalizada em programas
políticos negociados pluralisticamente no Legislativo - ou seja, de qualquer
intento sério de governar de modo verdadeiramente democrático.
Um exemplo bem recente esclarece a
tese. Quando se instalou a Constituinte, em 1986, o PMDB detinha 303 das 580
cadeiras dessa assembleia, além de 90% dos governadores de estado, 70% ou 80 %
dos prefeitos e vereadores, bem como as principais lideranças surgidas da luta
contra o regime militar. Teoricamente, o partido detinha o poder de votar a
Constituição na sua sede, entre os seus constituintes, e aprová-la, no dia
seguinte, no plenário da Assembleia. Do lado do Executivo, havia um presidente
fraco, originário da facção derrotada no embate da redemocratização do país,
escolhido para ser vice-presidente na chapa dos democratas, por força de um
acordo altamente contestado e alçado à Presidência por um acidente médico. Pois
bem, bastaram uns poucos meses de exercício da Presidência para que este
cidadão - uma personalidade de resto pouco impositiva e totalmente carente de
carisma popular - impusesse sua vontade ao todo poderoso PMDB, terminando por
fragmentá-lo.
Isto só foi possível pela faculdade que
o presidente da República tem, durante cinco intocáveis anos, de distribuir
verbas públicas, nomear e demitir discricionariamente pessoas para cargos
públicos, conceder ou negar isenções, subsídios e créditos. Tudo isso sem
possibilidade real de controle pelo Legislativo.
Se esses enormes poderes forem mais bem
distribuídos, ou seja, se essa pedra angular do sistema de dominação vier a
despencar, obviamente será mais fácil derrubar o edifício do arcaísmo político
- esse Gibraltar que constitui hoje o principal obstáculo à reestruturação da
economia e, portanto, à solução da crise.
Objeções e contra-objeções
Algumas objeções têm sido levantadas a
este tipo de argumentação.
A primeira pergunta é por que, tendo o
presidente dos Estados Unidos atribuições semelhantes, o sistema
presidencialista funciona adequadamente naquele país?
Porque lá, o instituto do
presidencialismo se insere em uma outra história, em uma outra cultura
política, em outro esquema de poder. E não funciona tão bem assim, já que, não
obstante o imenso produto bruto do país, mais de 20% da sua população
encontra-se abaixo da linha de pobreza.
A segunda indaga sobre a garantia de
que o primeiro ministro, como chefe do Executivo, não procederá do mesmo modo
que o presidente no regime presidencialista.
A esta objeção pode-se responder
inicialmente que garantia absoluta não há nenhuma. Mas a autoridade do primeiro
ministro não será exclusiva e sim compartilhada com os ministros do gabinete
que preside e com outra autoridade de grande poder - o presidente da República.
Com efeito, o presidente da República, eleito pelo voto direto e colocado fora
do dia-a-dia da disputa partidária e da possibilidade de disputar novos cargos
públicos, tenderá a examinaras grandes questões políticas com maior isenção e
objetividade, fazendo um contraponto discreto, mas muito efetivo, à atuação do
primeiro-ministro. Convém não esquecer que, no modelo proposto, as decisões
deste só valem com as assinaturas dos ministros e estes não ocupam as pastas
por sua escolha pessoal e discricionária, não são demissíveis adnutum, nem
pertencem necessariamente ao seu partido. Mais: o programa político do
primeiro-ministro terá de ser aprovado no interior do seu partido e no
Parlamento - duas instâncias que ele não terá condições de manipular tão
livremente quanto um presidente da República no regime presidencialista,
inclusive porque não pode distribuir favores governamentais com a mesma
facilidade que este. Finalmente, o primeiro-ministro e os ministros precisarão
comparecer periodicamente ao Parlamento, a fim de defender suas políticas. Isto
os obrigará a dialogar com os representantes do povo em uma posição muito
diferente daquela em que o todo poderoso presidente ou seus ministros se encontram
quando os recebem em suas protegidas salas de despacho. Em uma cultura ainda
fortemente marcada pelo senhorialismo colonial e pela prepotência das elites
que monopolizam a riqueza, o poder, a instrução superior e o prestígio social,
esse clima de diálogo constitui um avanço de consequências ainda não
inteiramente discerníveis mas, certamente, muito favoráveis à democracia.
Uma última objeção pode ser assim
formulada: se o problema central da crise brasileira é o da falta de decisões
drásticas, impondo reformas estruturais profundas; se, no contexto brasileiro,
o presidente constitui o único ator político que, em razão dos enormes poderes,
de que dispõe, pode tomar esse tipo de decisões; e se, como várias eleições têm
demonstrado, é mais fácil eleger um chefe de Executivo progressista pela via do
voto popular do que eleger um Congresso progressista, por que abrir mão dessa
vantagem, exatamente na hora em que as pesquisas indicam a possibilidade de
eleger um candidato popular em 1994?A resposta não é difícil e ajuda a colocar
corretamente o cerne do problema político brasileiro nesta conjuntura da
história do país.
Os imensos poderes do presidente são
efetivos quando este os direciona no sentido da manutenção do status quo. Se,
como aconteceu com Vargas, com Goulart (ou com Allende, no Chile), o presidente
adota uma política que venha a ameaçar o esquema básico de dominação, esses
poderes se desvanecem da noite para o dia, sob o ataque conjugado dos
interessas externos, dos meios de comunicação de massa, do boicote dos
empresários, do "quinta-colunismo" das classes médias.
O argumento de que é preciso preservar
o presidencialismo a fim de usar os poderes do presidente para impor as
transformações revolucionárias, corresponde, na verdade, a uma estratégia de
assalto ao poder muito em voga tempos atrás, que consistia em chegar ao governo
pelo voto e, uma vez lá, usar os instrumentos de poder de que o governo dispõe
para provocar a revolução. Esse "golpismo" revolucionário - hoje
felizmente muito desacreditado - não conduzirá o povo ao poder. O caminho do
poder popular é o do crescimento da consciência e da organização dos setores
populares ao longo de um processo de lutas políticas e sociais desenvolvidas no
contexto da democracia.
O parlamentarismo, concebido nos termos
acima expostos e inserido em um conjunto mais amplo de reformas políticas, como
as que foram aqui esboçadas, constitui, nesta hora e nas condições atuais do
país, um meio (entre vários outros) de desarticular a prepotência das elites dominantes
e, portanto, um passo (entre muitos) no caminho de uma democracia mais ampla.
Não se trata de uma panacéia. Não substitui outras consignas. Mas ajuda a
fortalecer os partidos e a participação popular. Fora desse contexto, a
campanha do parlamentarismo pode se transformar em mais uma dessas manobras de
cúpula, destinadas a esconder os verdadeiros problemas do povo e a favorecer a
dominação das elites. Por isso, parlamentarismo sim, mas de olhos abertos.
* Plínio de Arruda Sampaio é
coordenador da área de Reforma do Governo Paralelo.
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