As ocorrências
do ultimo final de semana em Vitória/ES¹ testemunham que um espectro ronda o estado
do Espírito Santo: o fantasma do racismo.
O racismo no
ES é antigo, arraigado e disseminado, mas só se torna explicito em ocasiões bem
especificas. Ele se faz presente na academia, nas empresas, na imprensa, no
setor público, nas famílias etc. Vai envenenando as relações sociais e a vida
das pessoas lentamente sem que percebamos ou a ele possamos reagir. Muitas
vezes a coisa é fomentada até com a contribuição ou beneplácito de pessoas que
são consideradas altamente instruídas, humanistas e intelectualizadas. Ou de indivíduos
situados em elevadas posições de poder político ou influencia social.
Por vezes dá
nisso que se presenciou ai no centro do consumo da capital, tendo como
protagonistas as duas divisões da Policia Militar, reflexo desta microssociedade,
que talvez possa ser considerada uma das mais racistas do Brasil. Em verdade o
que as câmeras mostraram é algo que já ocorria e ocorre em localidades das
periferias da Grande Vitória e do interior.
Contudo, antes
de prosseguirmos, há que explicitar o que se pode entender como sendo racismo,
ou ainda como discriminação e preconceito raciais. A nosso ver, e de uma
maneira a tornar o problema mais compreensível sociologicamente e remediável
nos termos da política pública, tais fenômenos de aversão, desrespeito ou ainda
desvalorização de indivíduos e coletividades com base em caracteres somáticos, fenotípicos
e biótipos, assim como culturais, configuram racismo. Este vem a ser o
desapreço em decorrência da cor, da etnia, ou ainda da origem etc. Ainda assim
os mesmos não nos contam tudo acerca do que ocorre. Importa qualificar os
mecanismos que os tornam significativos do ponto de vista do entendimento e da
ação individuais.
Especificamente
ali, naquele caso, tem-se um problema que passa antes pela dimensão cognitiva
dos indivíduos, num nível mais superficial, do que pela mais profunda dimensão psicológica.
Havia também considerável proporção de indivíduos brancos em meio ao grupo dos
detidos. Mas todos são identificados seja como “funkeiros” ou “mal vestidos",
além de "pretos", categoria esta última tão imprecisa quanto os
"pardos" do Censo do IBGE. Há inúmeros testemunhos oculares nos
coments e postagens em redes sociais e blogs.
Os
"morenos", "pardos", não brancos, estando em minoria num
dado ambiente, se tornam mais fácil e imediatamente identificáveis por um ilícito,
malfeitoria, ou irregularidade, real ou imaginada, do que os demais. A
melanodermia (pele escura) vem a ser o que os cientistas chamam de um atalho
(shortcut) cognitivo, um rótulo (label) ou identificador, para distingui-los
dos demais.
Esta dimensão
superficial é a que parametriza a tomada de decisão com respeito aos outros indivíduos
presentes na situação, muito mais que a dimensão profunda, imperscrutável da
psicologia, da "consciência" ou de um suposto "imaginário
social".Não se assume aqui que haja algo ocorrendo por trás das intenções
das autoridades policiais presentes, ou ainda que estas mesmas se pautaram por
puro e simples "etnocentrismo" (até porque as PMs aceitam negros e
"pardos" em suas fileiras), como também que a atitude ou o
comportamento racistas sejam algo constante no espaço e no tempo, mas algo dinâmico
e por isto mesmo, passível de ser tratado, mitigado.
É licito supor
que o mesmo resultado ocorreria com os brancos se estivessem na mesma situação,
em termos e condicionantes simetricamente iguais. As probabilidades
"conspiram" contra eles. Para quem tem curso superior, com
treinamento apurado e prolongado em Humanidades, Medicina ou outras
especialidades, o fenômeno pareceria transparente e claro duma maneira que não
seria acessível aos simples transeuntes. Contudo, nem sempre é assim, a
verificar pela recorrência dos episódios e ocorrências associadas a isto. Ainda
assim, não é porque é o palco dos acontecimentos veio a ser o Shopping Vitória,
suas imediações, como ser um ambiente social de classe média "fascista e
odiosa". Mas porque os indivíduos ali não se acham adequadamente treinados
cognitivamente para reconhecer os elementos da situação, assim evitando a
reação estereotipada, "preconceituosa". E aqui não falamos dos
detidos.
O mesmo efeito
cognitivo adverso ocorre na Policia Militar, dita "exterminadora de
negros", reduto de "capitães do mato", que utiliza, no mais das
vezes, o poder letal desproporcionalmente e, nisto, toma a decisão com base em
tonalidades de pele como o indicador mais recomendável, "preciso"
para libera-lo com maior excesso discricionário. Isto não torna a instituição
como um todo e seus agentes menos responsáveis por eventuais abusos e
arbitrariedades cometidas neste como também em outros episódios, apenas ilumina
o conjunto de circunstancias moralmente arbitrárias em que se acham os
tomadores de decisão e os formuladores da política de segurança pública, assim
como dos sujeitos jurisdicionados e custodiados.
Aliás, um dos
achados mais interessantes da criminologia é este: a diferença entre o
"criminoso" e o "cidadão de bem" pelo prisma da
propensidade à ilicitude é exatamente porque o primeiro foi apanhado.
Contudo, não
se pode dizer que esteja moralmente ou socialmente sã uma coletividade regional
em que alguns se acham desigualmente identificados - "negativamente
privilegiados" no dizer dum famoso sociólogo alemão a escrever um século
atrás - e os indivíduos recorrem a tais atalhos cognitivos ou rótulos para
identificar públicos e personalidades ameaçadoras ou portadoras de riscos à sua
vida, ao seu patrimônio e às suas famílias. Ainda que o emprego de tais noções
pareça racional, as repercussões agregadas da ação individual nelas pautada não
o são.
Em assim
visualizando os contornos e os termos do problema do racismo evita-se a
abordagem vitimizadora e maniqueísta que faz de uns algozes e de outros
condenados, duma maneira estática, perene e irremediável. Esta abordagem, que
faz de alguns ganhadores e de outros perdedores do jogo social em caráter
sistemático, determinístico, é a que tem prevalecido e se difundido na opinião
pública. Ao contrário, as posições são dinâmicas porquanto os agentes
implicados na situação podem muito bem tanto cooperar quanto conflitar com
respeito a crenças, expectativas e desejos mutuamente excludentes entre si, ou
não. Em todo caso, ambos são prisioneiros e este dilema se perpetua enquanto
não atualizam seus prospectos a respeito um do outro e não cooperam entre si
para sair da situação de perdas mutuas decorrentes de circunstancias moralmente
arbitrárias.
O ocorrido
indica que determinados indivíduos, ao longo de sua história de vida e de seus
antecedentes familiares e/ou comunitários, não obtiveram da coletividade a chance
de provar o seu valor, de exibir caracteres, atributos e capacidades que os
tornassem socialmente valorizados. E assim sendo, o meio social não atualizou
as suas crenças a respeito destes indivíduos e grupos a que
"pertencem".
A recordar
que, historicamente, no Espírito Santo, diferentemente do ocorrido em outros
lugares, como p.ex. o Rio Grande do Sul, aos negros e mulatos foi dificultado,
não apenas o acesso à propriedade de terras, mas ainda vedado
institucionalmente o acesso serviço e ao treinamento militar - uma trajetória
cujo curso foi moldado por decisões governamentais regionais tomadas na esteira
da "Revolta do Queimado" (1849), a única ocorrida em capital de província
no Brasil Imperial.
Some-se a
estas peculiaridades históricas, uma série de sucessivas (ou às vezes
concomitantes) migrações internas e desigualdades persistentes, bem como múltiplas
segregações ou discriminações entre comunidades, não somente quilombolas e
indígenas, mas também colônias italianas, alemãs e de outras etnias e nacionalidades
emigradas do Velho Mundo no sec. XIX. Quem não se recorda das perseguições e da
onda de histeria coletivas contra estas etnias durante a Segunda Guerra
Mundial? Quem nunca ouviu as histórias orais de seus pais e avós a respeito da
maneira como os agentes da ditadura getulista tratava os imigrantes e seus
descendentes?
Ainda nestas
duas ocasiões anteriores, nos anos 40 dos séculos XIX² e XX³, as tonalidades de
pele, a indumentária, até mesmo o gosto musical, a cultura popular, foram
utilizados como atalhos cognitivos pelas autoridades e pelo público, com
intuito de identificar "ameaças", "inimigos internos" e
"quintas colunas".
Se, para
muitos, soa amarga e descabida a comparação da tarantella italiana, ou do som
dos atabaques africanos, ou ainda das concertinas germânicas, com o funk, por
outro lado, em matéria de privações e segregações o que se tem como efeito é
trágica e inequivocamente similar. Muitos perderam suas vidas simplesmente por
pertencer a uma etnia diferente. Ainda que a sociedade lhes tenha oportunizado
meios e recursos para melhorar sua imagem e sua autoestima, muitos guardam
memórias e emoções dolorosas que não gostariam ver repetidas.
Contudo tais
prospectos ganham uma vivacidade muito forte pois o episódio ocorre num momento
em que o estado ganha destaque nacional em diversas áreas como a educação e o
turismo, mas ainda deve amargar um quadro perverso e nada alentador nos seus
indicadores sociais de criminalidade, violência contra a mulher e assassinatos
de jovens, pessoas excluídas do mercado de trabalho. Inevitável associar o
ocorrido aos números crescentes de indivíduos que pertencem à chamada
"Geração Nem, Nem" (Nem estudam, Nem trabalham), segundo recente
estudo do IBGE. 3
O que isto
legou aos pósteros, enquanto passivo histórico ainda é difícil de aquilatar ou
dimensionar. Se bem que por vezes a repercussão apareça diante de nossos olhos
como algo bastante palpável, concreto, mas nem por isto menos aterrador e digno
de repulsa e indignação. Uma vez que conhecemos os mecanismos sociais presentes
e a trajetória pregressa que os mesmos dinamizam, não há mais que repetir ou
até justificar a persistência dos mesmos erros. E para tal, cumpre
mudarmos nosso modo de olhar para os mesmos problemas.
Notas:
¹A verificar
pela repercussão nacional e regional, em critica às instituições envolvidas
(policia, imprensa etc.) o episódio assumiu amplitude e profundidade
particularmente criticas:
"Shopping
Vitória: corpos negros no lugar errado", de Douglas Belchior:
²Sobre
Queimados ver http://www.ape.es.gov.br/newsletters/relatoqueimado.htm
³Sobre as
perseguições a imigrantes e seus descendentes no ES ver:ADL Diacônica Luterana.O
Incêndio nas Mentes. http://www.youtube.com/watch?v=6C7_5HiYGFc
3 http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2526
Leia também: Leia também: Shopping Vitória: corpos negros no lugar errado :
Matéria de Douglas Belchior Publicada no site do
INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS.
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