terça-feira, 23 de maio de 2017

Uma “estória” da dor neuropática


Por Dr. Márcio Conti via site DAHW

*Os lugares e nomes de pessoas contidos nesse post foram alterados, para resguardar os aspectos éticos do tratamento.

Em Juazeiro, Aparecida caminha para o consultório do Dr. Francisco aflita e ansiosa. Há 1 ano tenta de todas as formas melhorar as dores que sente no cotovelo e tornozelo depois de 1 ano e meio tratando a hanseníase, que tanto a fez ficar envergonhada. Passou por vários médicos, tomou medicações e acha que nada vai dar certo. Sua história parece com tantas outras em todo o mundo.

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Esperando na cadeira do Posto de Saúde pensa que esta será mais uma consulta aonde sairá sem qualquer solução, lhe dá vontade de chorar e voltar para casa sentindo-se castigada pela segunda vez, a primeira no diagnóstico e depois com a dor que não larga dela.

Dona Aparecida, por favor entre. Fala aquele jovem de jaleco e rosto tranquilo.

Bom dia doutor. – Tentando disfarçar o nervosismo.

Como está? Estou achando que está sentindo calor. Este verão não dá trégua!

Doutor se todos os meus problemas fossem o verão estaria feliz.

Desculpe não me apresentei sou o Francisco.

Não é o Doutor Francisco?

Também sou. – Disse ele com um sorriso – Mora próximo ao Posto de Saúde?

Desculpe Doutor estou com tanta dor e tristeza que quero ser examinada logo.

Lógico Aparecida, sente-se e vamos conversar.

O consultório simples com paredes recém-pintadas era simpático, mas nada luxuoso. Ela duvidou que ali pudesse achar alguma solução. Ele, jovem, não parecia conhecer sobre o mistério que sofre, após passar por outros que pareciam saber muito mais. Pensou em duvidar da amiga Amália que recomendou o Doutor para tratá-la.

Dona Aparecida porque veio me visitar? Recolhendo vários papeis com receitas, exames e relatórios.

Doutor, vou ser sincera, acho que meu problema não tem cura, estou vindo quase sem esperança. – Chorando envergonhada, parecia que neste local pelo menos chorar podia.

Fique calma e vamos conversar. – Após ler toda a papelada fazer algumas anotações levantou a cabeça e perguntou – A senhora teve hanseníase pelo que li, se tratou e parece que está curada da doença, mas tem dor?

Pelo amor de Deus Doutor, estou quase enlouquecendo com as dores, não sei o que fazer e o quê procurar. Meu patrão acha que estou enganando ele para não trabalhar, mas sou honesta e nunca faria isto.

Depois de alguns minutos chorando, Francisco pergunta.

A senhora terminou o tratamento da hanseníase e ainda sente dores que começaram no sexto mês, elas pioraram?

Sim doutor, muitas dores e cada vez estão piores.

Tomou corticoides com pouco melhora? – Ela fez que sim com a cabeça

Após minutos conversando e vários outros examinando, Francisco oferece a cadeira e ela se senta.

Vou explicar para a senhora o que consigo perceber. A hanseníase como deve saber e foi orientada na sua Unidade que a tratou, pode causar doença em nervos dos braços, pernas, pescoço e rosto, além das manchas no corpo, é realmente desagradável e muitas pessoas tem preconceito com os doentes, mas frisando que tem cura e a senhora está curada. Porém, em alguns pacientes inflamação do nervo cria a necessidade de operar este nervo para melhorar a função e dor. Em outros casos tratamos com corticoides e até mesmo Talidomida, um remédio que não usamos normalmente, principalmente em mulheres. Outras pessoas não terão nenhum problema e curados viverão normalmente, e um terceiro grupo terá dor crônica que precisará tratar.

Trouxe uma água para os dois, realmente os dias estavam muito quentes, e continuou:

Há quanto tempo a senhora sente a dor e já tentou tomar medicações para melhorá-la?

Já sinto dor assim há mais de 1 ano e minha vida está difícil, estou quase perdendo o emprego e confesso que não consigo trabalhar. Em alguns momentos choro de dor e tudo que tomei não faz efeito.

Entendo Aparecida, você está desenvolvendo um quadro que chamamos de dor crônica que é aquela com mais de 6 meses de duração que não melhora com analgésicos ou anti-inflamatórios. Vou te explicar melhor. A sensação de dor começa com um estímulo em algum local do corpo que tenha inervação dolorosa, é um mecanismo que nos protege e evita que nos machuquemos. A ausência da dor seria uma situação séria, como em alguns pacientes que perdem, pela hanseníase, a sensibilidade de mão ou pés. Este estímulo o cérebro interpreta como dor e esta depende de vários fatores, definimos como o “sofrimento” que a dor causa. Pessoas diferentes interpretam o estimulo doloroso com “sofrimento” ou intensidade diferentes.

Olhando para o jovem médico sem acreditar muito na fala dele, Aparecida interrompe:

O senhor está falando que é coisa da minha cabeça?

Não é uma fantasia ou mentira, se é esta a sua observação. A dor não é uma fantasia. É real e só você sente, mas no caso de existir o estimulo por muito tempo o cérebro “desregula” e passa a interpretar o mesmo estímulo com mais sofrimento, e até mesmo, quando ele desaparece, este continua a acreditar que ainda existe. Daí algumas pessoas manterem dores muito fortes depois de anos curadas. Você consegue me entender?

Está me falando que estou curada, e mesmo assim a minha cabeça continua a sentir dor?

Você está curada e ainda sente dor, não acha que sente dor, a sente de verdade.

Estranho doutor, todas as dores que senti passam com remédios.

Sei que é diferente, mas acredite, existem pessoas aonde mesmo sem qualquer estimulo doloroso ou os mais bizarros como som, vento, alteração de temperaturas desencadeiam crises dolorosas violentíssimas. Vemos isto e em alguns casos classificamos com um nome de Alodínia.

Isto tem cura? – Já aflita pois aquele doutor era a primeira pessoa que explicava a sua dor desta forma.

Em alguns casos sim, em outros melhoramos muito o sofrimento da dor com antidepressivos, neurolépticos e outros remédios que agem no cérebro. Quero frisar que não é maluca, não está depressiva na sua forma clássica de depressão, precisamos ajudar com medicações e fisioterapia seu cérebro “esfriar” como gosto de falar, a sensação de dor, como uma panela que desligamos a chama e aos poucos esfria.

Já não era fácil para Aparecida entender totalmente aquele médico, ainda mais com uma fala que nunca havia escutado. Será que os outros não sabiam disto, ou aquele era maluco?

Hoje Aparecida conversamos, examinei você e entendi com o meu conhecimento seu quadro de dor. Posso falar com certeza que tratamentos existe, talvez não façam a dor desaparecer totalmente, mas faremos de tudo melhorando a qualidade da sua vida. Volto a falar, da hanseníase está curada. Minha proposta é que em meses esteja melhor ou sem dor e assim fique por sua vida.

Após medicá-la, explicar como usar os remédios, Francisco percebeu que sua sofrida paciente ainda estava desconfiada e completou

Uma forma excelente de ajudar no seu tratamento é conhecer melhor o que está causando tanto sofrimento Aparecida. Todas as quartas-feiras as 11 horas eu e alguns pacientes, junto com fisioterapeutas e enfermeiros nos encontramos para explicar tudo isto, ouvindo os relados e assim aprendendo com vocês, é lógico que está convidada, na verdade ninguém precisa de convite.

Vou ver se posso doutor, estou agradecida por tudo.

Não me agradeça, explique a outros o que entendeu sobre nossa conversa assim eles também entenderam o que passa com você.

Deram um abraço e combinaram uma nova consulta em 3 semanas.

Doutor Francisco terminou seu dia e voltou para casa aonde iria ver sua família, ler um pouco e descansar e Aparecida foi à farmácia pegar sua nova medicação.

Após vários encontros, com melhoras, pioras, ajustes de medicação além de paciente-médico, tornaram-se amigos. Hoje Aparecida em seu bairro organiza encontros com pacientes e ex- pacientes para trocarem informações sobre a hanseníase, as dores físicas e sociais que sentem. Logicamente doutor Francisco sempre que pode passa lá.

Obs.: Aparecida quase não sente dor hoje em dia. Quase!

Um abraço a todos e até o próximo texto!


Dr. Márcio Conti

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