Não, não tinha nenhum ressentimento apossando-lhe a mente e tampouco expirava os pulmões à primeira menção das coisas, as suas memórias eram fiscalizações deformadas de poucos amores abstraídos pela vida. Acordava aos poucos, esticando os firmes braços pro céu e com os olhos ainda inchados, virava a cabeça pra direita e o que existia era apenas um porta-retratos vazio.
Havia esquecido filhos,dizeres,jornais, cartas. Um verdadeiro e absoluto mestre da solidão. Ou quem saiba ainda estivesse esperando àquela melhor impressão de floreios lhe surgir um dia, mais que ainda não havia aparecido como anúncio de emprego no domingo.
Ele Pensava nisso enquanto jogava sozinho o cavalo no tabuleiro, e foi caminhando seriamente sua existência até a varanda ventilada, obedecendo aos seus miúdos olhos claros pro sexto andar.
Havia estado naquela cidade por mais de trinta anos, sempre com sua atenção tímida de caminhar sozinho pelo centro, conhecendo cada centímetro de pedra levantada dos concretos, suas sancas de gesso retilíneas defrontando as largas paredes alvas das sacadas. Sabia conferir bem cada detalhe dos emoldurados de frisos dourados e pequenos, os arcos bem redondos que ganhavam extrema leveza na tarde. Respondia a conhecidos como um peregrino distante, com acenarem curtos e rápidos, marcando uma suposta resposta de amizades. O chapéu lhe caía bem sob a careca rosácea, enterrando-se perfeitamente até o limite de suas sobrancelhas semicerradas. Vez ou outra retirava da cabeça para limpar a testa gordurenta com um lençinho roxo que ficava dobrado na lapela do paletó. Morava num prédio moderníssimo e quase não via razões de sair dele, gostava de Goethe, mas não conseguira/tivera tempo de vender sua alma ao diabo!Era difícil objetar as profundezas de sua alma! Por fim e sem maiores cuidados de entender todos estes seus fracassos, aceitou o empreguismo inerente de ser apenas um matemático sem números. Houve certos dias em que cenas distraídas de sua íris ganhavam passado, um conjunto ingênuo de ter treze anos e interpretar muito bem o barulho dos trilhos do metrô em Montparnasse, onde ligeiramente dormitava quando voltava da escola. E ao chegar em casa, deixando os grossos livros sobre a mesa,contentava-se com a música existencial de 'Mood indigo' e outras de Duke Ellington que rolava na vitrola quase todas os dias.
Ali enfiado entre dois travesseiros de pena brancos,confrontaria o seu pai cansado que voltava de alguma cervejaria.E se alimentava das pequenas impressões que o jazz acontecia.Ora despertava dentro dele esta escrita agonizante da saudade,parte de um sentimento que deixou e que vinha agora com um sentido confuso e especial,um gosto de imaginar como seus filhos estariam...Que fora tão desfavorável como pai...A música vem chegando com uma naturalidade bem oferecida,conversa a gravidade do tempo presente,e seu pai ainda permanece ali;dormindo os mais lindos sonhos no reinado de uma cama.Já era mais do que tempo para reformular sua cabeça,de encontrar-se publicamente com a senhora do sexto andar e lhe lançar um sorriso melancólico de trinta anos,trinta anos que divisou e impacientou a fala.Toma um banho,passa colônia francesa no corpo,se olha no espelho demoradamente,penteia os finos cabelos com certo ar de confiança,molha o rosto paradoxal e pesado,fica tentando se entender na linha incompreensível do ser,assobia em notas altas na saída de casa.
Se desloca com cem mil frases até o outro prédio.O porteiro pergunta pelo nome,ele responde: nome e sobrenome,faz-se então uma breve pausa e a porta elétrica se abre.Toma o elevador,a chave tetra gira duas vezes na porta,uma diminuta senhora perplexa e emocionada abre.Ele fica naquela manobra condenável de pensar o que dizer,convida-se pra entrar.Amanhã, seu pequeno porta-retratos prateado à altura da cômoda,terá um rosto novo pra viver entendimentos.
Aqui e agora, Sexta-feira, Março 29, 2011
Por: Jordan Duailibe