“Delinear
a ampla interação de Brasil e Portugal na segunda metade do século XVIII”
(MAXWELL, p. 13) é, segundo Kenneth Maxwell, o objeto do seu “A Devassa da
Devassa – A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750 – 1808”. (link
para baixar o livro em PDF no final da postagem)
Lançado
em 1973 na Inglaterra, país natal do autor, com o título original de “Conflicts
and Conspiracies: Brasil & Portugal 1750 – 1808”, o livro chega aos 500
anos do Brasil na sua terceira edição, e com o status de leitura
obrigatória sobre o período. Resultado de uma minuciosa pesquisa, que se faz
presente na constante exposição de dados quantitativos, “A devassa da
devassa” em nenhum momento corre o risco de ser mais um livro sobre a
Inconfidência Mineira. Kenneth Maxwell vai muito além da simples exposição dos
fatos que compuseram o episódio e tampouco se deixa levar pela livre
especulação que as lacunas documentais tornam tentadora. O livro mostra um
autor preocupado em colocar suas hipóteses mas sem nunca deixá-las sem o
respaldo de um documento e/ou raciocínio que a sustente. E desta forma vai
penetrando na História de um Brasil-Portugal imerso numa crise cuja solução
extrapola o período selecionado, sem nunca esquecer de situá-la na Europa pré e
pós-Revolução Francesa.
O
livro mostra o eterno esforço de Kenneth Maxwell em tentar encontrar a versão
mais lógica para os acontecimentos que nortearam a relação de brasil e Portugal
entre 1750 e 1808. Daí a opção pela ordem cronológica dos fatos, que em alguns
momentos chega a se aproximar da estrutura narrativa. O tempo é usado como fio
condutor para a sucessão de informações costuradas por análises para chegarem à
categoria de hipótese.
Dentro
deste padrão geral que dá unidade à obra, “A Devassa da Devassa” é dividida em
oito capítulos de títulos simples e diretos, sempre seguidos de duas citações
documentais sobre o assunto a ser tratado, e quase sempre contemporâneas ao
mesmo.
Tudo
começa em julho de 1750, com a morte de D. João V, que leva D. José I ao trono.
Está dada a deixa para o tema que permeará todo o primeiro capítulo e, de forma
geral, todo o livro: Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marques de Pombal, e
sua atuação no governo. Após uma apresentação da situação econômica e política
de Portugal, o autor debruça-se sobre as façanhas pombalinas, sempre
remetendo-se à relação entre Portugal e Inglaterra como fator imprescindível à
compreensão do processo. É dado assim um panorama geral sobre a situação do
Brasil das Companhias de Comércio, dos jesuítas, do contrabando. Os capítulos
seguintes, “Mudança” e “Divergência”, continuam, cronologicamente, a expor os movimentos
principalmente econômicos que geraram a situação que culminaria no episódio
central do livro, a Inconfidência Mineira.
A
crise do ouro aparece como fator de desenvolvimento não só de Portugal, mas
também do Brasil, ambos impulsionados pela substituição de importações, o que
acaba por gerar uma burguesia incompatível com a política pombalina de
altamente mercantilista. A morte do Rei, a demissão de Pombal e a Independência
dos Estados Unidos levam o autor a apresentar a década de 1780 como cenário
quase óbvio para a Inconfidência: a nova política metropolitana era desastrosa
e os interesses coloniais ganhavam força.
Nesse
contexto, Kenneth Maxwell apresenta Minas Gerais com seus personagens. Terra de
economia dinâmica e intelectualidade efervescente, entre outros atributos.
Terra do grupo de Vila Rica, terra de Tiradentes, o tão proclamado herói da
República. E é exatamente essa glorificação, essa imutabilidade nacionalista de
uma História sedenta por heróis, como a nossa, que é questionada no livro.
Questionamento que se dá via fatos, via raciocínio lógico, sem qualquer fúria
tendenciosa. O autor começa descrevendo cada um dos participantes da chamada
Inconfidência mineira, apresentando-os como endividados membros da plutocracia
mineira, em conflito com um governo cada vez mais rígido principalmente no que
cerne à cobrança de tributos. É a partir daí que se dá a desmistificação do movimento.
O
capítulo “Conspiração” e uma descrição quase em tom de romance, não fossem os
vários e precisos dados apresentados pelo autor, da preparação tentativa de
revolução. Descrição física, detalhamento de horário, composição do cenário,
números das dívidas. Tudo é descrito. E é nesse momento que aparece com força a
tese do autor de que Inconfidência foi movida única e exclusivamente por
motivos pessoais, por homens que viam na proposta de um Estado independente a
única solução para seus problemas bem menos nobres que uma preocupação
ideológica de fundo nacionalista. O nacionalismo era sim exaltado, mas como
veículo natural para uma revolução que buscava a independência. E o povo também
era convocado por razões não menos óbvias, como coloca o autor: “A conspiração
dos mineiros era, basicamente, um movimento de oligarcas e no interesse as
oligarquia, sendo o nome do povo invocado apenas como justificativa” (idem, p.
119).
A
historiografia institucionalizou a versão de que , estando a revolução
programada para a ocasião em que fosse imposta a derrama (já que era necessário
um contexto de insatisfação popular), e sabendo-se que Joaquim Silvério dos
Reis delatou a intenção do movimento para o governador de Minas Gerais,
Barbacena, este último teria cancelado o imposto em função da
denúncia.
A proposição de outra versão por Maxwell é talvez um dos pontos mais
interessantes da sua tentativa de repensar o episódio. Diante de várias
evidências por ele reunidas, o autor chega à conclusão de que a suspensão
precedeu a denúncia, e que a atitude de Joaquim Silvério dos reis correspondeu
a uma tentativa de ter sua dívida perdoada por fidelidade à coroa, já que com a
suspensão da derrama a rebelião fracassaria.
Outro
ponto que “A devassa da devassa” mostra-se uma obra inovadora é na apresentação
de evidências de que, ao contrário do que mostram os documentos oficiais,
Cláudio Manoel da Costa, um dos inconfidentes, teria sido assassinado, e não
provocado suicídio.
Mas
o ponto principal em que toca Kenneth Maxwell ao propor uma nova visão da
Inconfidência mineira diz respeito a Tiradentes, hoje tido como grande herói da
Inconfidência e, consequentemente, da Independência. O livro traz a tese de que
o alferes Joaquim José da Silva Xavier trazia em si todas as condições para ser
“eleito” bode expiatório, sendo o único a ter sua sentença efetivamente
executada. Indivíduo em busca de ascensão social, elemento periférico dentre os
plutocratas que compunham o grupo revolucionário. É assim que Tiradentes é
mostrado, e o autor sugere até mesmo que aquele que viria a ser herói não
atuava além das questões práticas, sendo posto de lado nas decisões do
movimento, preterido pelos próprios companheiros. A sua morte, espetáculo
público, usada como exemplo por um governo temeroso e ainda atônito, fez dele
um símbolo. E Maxwell nos lembra que, ao ser interrogado, o inconfidente
defendeu ferrenhamente os ideais de República e Independência, trazendo para si
toda a responsabilidade da rebelião fracassada. E aí reside seu mérito
incontestável: a coragem a e determinação que o transformaram em herói póstumo.
Mas
não fossem as circunstâncias a coragem de um homem não teria força para
firmar-se como feriado nacional séculos depois. Em “A devassa da devassa” fica
claro o papel paradigmático que a fracassada Inconfidência mineira assume no
momento de crise entre metrópole e colônia em que ela ocorre. O autor nos
lembra que, dentre tantas revoltas, esta ganha destaque por ter sido pioneira
no seu nacionalismo e na clareza com que atacava o sistema colonial. E o fato
de não terem conseguido o que planejaram, ou a verdadeira natureza de suas
motivações não fazem o grupo de Vila Rica menos importante como agente
histórico. Nada voltaria a ser como antes. A morte de Tiradentes em nada
intimidaria uma sociedade que passava a ver em Portugal um obstáculo, e não uma
matriz incondicional. A Inconfidência trouxe à tona um sentimento cujo controle
escapava às garras de um mercantilismo já senil.
Desde
21 de abril de 1792 seriam quase três décadas. Foi este o tempo da gestação de
uma independência concebida na clandestinidade mineira.
Maxwell
encerra o livro fazendo uma análise dos anos que se seguiram, até a vinda da
corte portuguesa para o Brasil, em 1808. Anos de conflitos políticos na Europa
e de incertezas quanto ao Brasil, movimentado pela Revolta dos alfaiates, na
Bahia. E, como se já não bastasse a prolixidade com que expõe dados e ideias, o
autor disponibiliza, ao final, mapas, gráficos e tabelas que ilustram todo o
período tratado. Uma verdadeira devassa sobre Brasil-Portugal de 1750 a 1808.