Por Fernando
Chiocca*
Economia e
artes marciais? Quais paralelos podemos traçar entre ambas? Em
primeiro lugar, as duas representam um tipo de conhecimento sistemático: a
ciência econômica é o estudo da ação humana e de sua interação com bens e
serviços, e as artes marciais são o estudo da melhor maneira de sobrepujar
fisicamente outro homem.
Ambas são
ideias que foram desenvolvidas por centenas de anos, e estão subdivididas em
diversas escolas ou estilos. No entanto, foi na metade do século XX que
ambas desenvolveram um ramoinvencível: na economia, consolidou-se a Escola
Austríaca de Economia, tendo Ludwig von Mises como líder, e nas artes marciais,
o jiu-jítsu brasileiro, tendo Hélio Gracie no comando. E é sobre estas
duas ramificações específicas da economia e das artes marciais que irei
discorrer neste artigo.
O jiu-jítsu
foi criado por monges indianos e, com o tempo, foi se espalhando pela Ásia até
chegar ao Japão feudal, onde foi praticado e desenvolvido pelos samurais. Após
o período Meiji, quando a ordem Samurai foi abolida e o Judô foi desenvolvido
por Jigoro Kano, o jiu-jítsu chegou ao Brasil em 1914, com um aluno de Kano,
Mitsuyo Maeda, conhecido como Conde Koma. Em 1917, Koma ensinou sua arte
para o jovem Carlos Gracie. Carlos passou estes ensinamentos para seus
irmãos e os Gracies começaram a praticar e a desenvolver esta arte marcial,
dando origem a um novo estilo, o jiu-jítsu brasileiro. E foi o irmão mais
novo e mais fraco de Carlos, Hélio, quem aperfeiçoou mais eficientemente o
jiu-jítsu, e se tornou um lutador "casca-grossa".
Os irmãos
Gracie começaram a abrir academias de jiu-jítsu e, para provar a superioridade
de seu estilo, começaram a desafiar lutadores de outras artes marciais ou
qualquer pessoa que duvidasse da eficiência de sua luta, colocando inclusive
anúncios em jornais com estes desafios — e os Gracies derrotavam todos que
apareciam. Hélio se tornou o Gracie mais proeminente, sendo por muitos
anos o lutador número um da família, e isto o transformou em uma celebridade no
Brasil. Em busca de reconhecimento mundial, Hélio desafiou o campeão
mundial de jiu-jítsu, o japonês Kimura, que era 30 quilos mais pesado que
Hélio. Kimura se recusou a lutar com Hélio, dizendo que ele era o campeão
e que se Hélio quisesse uma luta, deveria lutar com Kato, o vice-campeão — que
também possuía uma enorme vantagem de peso — que também o derrotaria com
facilidade.
A luta, no
entanto, acabou ocorrendo, e Hélio derrotou Kato em 6 minutos, forçando Kimura
a aceitar o desafio anterior. Kimura declarou que se Hélio durasse mais
do que 3 minutos, ele o consideraria o vencedor. Em 1951, Kimura derrotou
Hélio aos 13 minutos, quando Carlos jogou a toalha para evitar que o braço de
Hélio fosse quebrado pela chave que Kimura lhe aplicou — e que depois foi
batizada com seu nome. Hélio se aposentou e era chegada a hora para a
segunda geração dos Gracies assumir a tarefa de reivindicar a superioridade de
sua arte.
Durante os
anos de 1970, os filmes de Bruce Lee fizeram grande sucesso, e professores de
kung fu e karatê apareceram para desafiar a hegemonia do jiu-jítsu. Foi a
vez de Rolls Gracie encarar o desafio. Rolls era filho de Carlos, criado
por Hélio, e foi o melhor lutador que a dinastia Gracie já produziu. Ele
derrotou facilmente o mestre de karatê, e nesta luta foi possível observar, na
técnica de Rolls, o atual jiu-jítsu "estilo Gracie" em sua forma
totalmente desenvolvida — ele havia adicionado ao jiu-jítsu técnicas de wrestling e sambo.
Rolls morreu
pouco tempo depois em um trágico acidente de asa-delta, o que fez com que
outros lutadores passassem a representar a família Gracie em inúmeros desafios
subsequentes. O jiu-jítsu dos Gracie sempre venceu.
Porém, mesmo
diante desta esmagadora superioridade, o "jiu-jítsu Gracie" não foi
capaz de derrotar um oponente: Hollywood. A imensa maioria do público
mundial ainda acreditava que o kung fu e outros estilos semelhantes eram o
supra-sumo das artes marciais. Apenas alguns poucos estavam cientes da
verdade sobre as artes marciais. Posso mencionar aqui o meu exemplo pessoal: em
meados da década de 1980, mesmo vivendo no Brasil, eu ignorava completamente a
supremacia do jiu-jítsu dos Gracie e, influenciado por filmes bobos como Karatê
Kid, matriculei-me em uma academia de karatê, tornando-me anos depois um faixa
preta de tae kwon do. Assim como o resto do mundo, só fui ter consciência da
verdade sobre as artes marciais no começo dos anos 1990.
Rorion Gracie
estava morando na Califórnia desde a década de 1970, ensinando e promovendo o
"jiu-jítsu Gracie", desafiando e vencendo lutadores locais — a esta
altura, uma tradição familiar. Em 1993, ele teve uma ideia que iria
transformar o mundo das artes marciais para sempre, e iria de uma vez por todas
provar qual estilo era o melhor: ele inventou o Ultimate Fighting
Championship (UFC), um torneio de artes marciais sem regras e sem divisões
por peso, que na realidade tinha apenas uma característica distinta do que a família
vinha fazendo nas últimas décadas: ele seria transmitido pela TV.
Rorion também
criou o octógono, um ringue gradeado, ideal para este tipo de luta. O lutador
escolhido para representar os Gracies não foi Rickson, que era o musculoso
atual campeão da família, mas sim seu irmão Royce, que, como seu pai Hélio, não
era um sujeito nada fisicamente intimidador — embora mais alto do que Hélio.
Royce venceu todas as lutas das primeiras edições do torneio, derrotando
grandes mestres das mais variadas artes marciais. Só que, desta vez, o
mundo todo pôde ver a família Gracie em ação.
Daquele
momento em diante, todo o mundo soube que, se alguém quisesse se tornar um bom
lutador, teria de aprender jiu-jítsu — ou seria derrotado por um lutador que
soubesse jiu-jítsu. Não foi apenas uma vitória de Royce; foi a vitória
suprema do jiu-jítsu estilo Gracie sobre todos os outros estilos. Foi
como a descoberta da América por Colombo: os europeus já haviam estado aqui
antes, mas foram suas navegações cruzando o Atlântico que levaram ao
conhecimento geral do continente americano pelos europeus, mudando o mundo para
sempre.
Pouco depois
do UFC, Rickson foi para o Japão e venceu facilmente os melhores lutadores
japoneses, confirmando aquilo que Royce havia demonstrado nos EUA.
Agora, falemos
sobre ciência econômica. As origens da Escola Austríaca podem ser
encontradas nos trabalhos dos escolásticos tardios da
Universidade de Salamanca, na Espanha, que descobriram e explicaram as leis
econômicas. Estes ensinamentos foram desenvolvidos por intelectuais
europeus como Cantillon, Turgot, Bastiat e Say até 1871, quando Carl Menger, professor de
economia na Universidade de Viena, condensou-os com a teoria da utilidade
marginal e fundou a Escola Austríaca de Economia, marcada pela publicação da
obra Princípios de Economia Política.
O primeiro
adversário de Menger e da Escola Austríaca foi a Escola Historicista Alemã,
representada por Gustav von Schmoller e outros. Menger os enfrentou e os
derrotou durante uma disputa intelectual chamada deMethodenstreit durante
os anos de 1890. Menger teve muitos discípulos, entre eles o arquiduque Rudolf
von Habsburg, príncipe da família imperial da Áustria. Mas foi Eugen von Böhm-Bawerk quem
levou os ensinamentos do mestre a novos patamares, aplicando-os a diversos
temas, desenvolvendo ainda mais a Escola Austríaca. Böhm-Bawerk também
enfrentou batalhas intelectuais, principalmente contra os marxistas, e saiu
vitorioso refutando definitivamente a teoria da exploração
do socialismo-comunismo.
No entanto,
foi somente com um aluno de Böhm-Bawerk que a Escola Austríaca se desenvolveria
em um estilo invencível. Ludwig von Mises reconstruiu a ciência econômica
sobre sólidas fundações epistemológicas, colocando a economia como um ramo de
uma ciência maior — a praxeologia —, dando a ela o status de uma disciplina
axiomática lógico-dedutiva. Mises começou a aperfeiçoar a Escola
Austríaca em 1912, com a publicação de The
Theory of Money and Credit, e já em 1920, com a publicação do ensaio O cálculo econômico sob o
socialismo, ele derrotou todos os pensadores socialistas, demonstrando
que o socialismo era impraticável.
Durante toda a
sua vida, Mises teve inúmeras disputas intelectuais com todos os tipos de
adversários — socialistas, marxistas, positivistas, intervencionistas,
neoliberais etc. —, e teve muitos estudantes, que por sua vez também
enfrentaram subsequentemente este tipo de batalha. Provavelmente uma das
mais importantes batalhas foi lutada por um aluno de Mises, Friedrich August
von Hayek, contra John Maynard Keynes.
Durante os
anos 1930, Hayek era um professor na London School of Economics, e era o
mais influente economista austríaco no mundo anglo-saxão. Ele era,
portanto, o homem para enfrentar Keynes, que havia publicado suaTeoria Geral em
1936. Hayek foi um aluno de Mises, mas antes disso ele já era um
discípulo de Friedrich von Wieser, e iria permanecer essencialmente um
wieseriano pelo resto de sua vida. Foram as inconsistências de sua
abordagem wieseriana/walrasiana a respeito do equilíbrio geral que o levaram a
sucumbir diante de Keynes.
Keynes
apresentou uma teoria totalmente falaciosa — sem nenhuma inovação sobre o que
já existia —, mas sua teoria fornecia um adorno e um linguajar científicos em
defesa dos gastos governamentais, da inflação, dos déficits e de todo o resto
que os políticos adoram fazer. Com o tempo, sem uma refutação sólida, o
tsunami keynesiano varreu o mundo da economia.
Na verdade, a
ciência econômica da Escola Austríaca misesiana só foi se desenvolver
completamente mos anos 1940, quando Mises publicou Nationalökonomie (1940)
e Ação Humana (1949).
Apenas os estudantes de Mises dos anos 1940 em diante seriam os
verdadeiros misesianos, como Murray
Rothbard, Hans
Sennholz, Israel
Kirzner, Ralph
Raico e George
Reisman. Os misesianos — os estudantes de Mises e os estudantes
destes estudantes de Mises — continuaram enfrentando batalhas intelectuais
contra outras escolas de pensamento econômico, e continuaram vencendo todas.
Rothbard foi
um lutador exímio que aperfeiçoou a ciência econômica misesiana em muitas
maneiras e encarou todos os tipos de adversários. Muitos desses avanços e
disputas podem ser vistos em publicações vultosas como Man,
Economy and State e Economic
Controversies.
Apesar de
todas essas vitórias e de toda a sua superioridade, a Economia Austríaca
misesiana não é o "estilo" dominante de ciência econômica no mundo. A
ciência econômica misesiana está onde o jiu-jítsu dos Gracie estava 20 anos
atrás — amplamente desconhecida e praticada por uma pequena minoria. Nós
austríacos tivemos grandes mestres como Hélio e Rolls, e hoje em dia temos
grandes lutadores como Royce e Rickson, mas parece que está faltando um Rorion.
Estamos tentando de muitas formas alterar o paradigma econômico. O
economista austríaco Robert Murphy está desafiando o
famoso keynesiano laureado com o prêmio Nobel Paul Krugman há algum tempo.
Krugman já
debateu ao vivo outro austríaco, Ron Paul, mas foi apenas um debate informal em
um curto telejornal (Paul
Vs Paul). No decorrer de suas duas últimas campanhas presidenciais,
Ron Paul promoveu a escola austríaca misesiana como ninguém havia feito até
então; porém, isso foi incapaz de causar qualquer abalo ao mainstream econômico
— o keynesianismo continua dominando o mundo acadêmico e a mídia.
Os Gracies
também se esforçaram por muitas décadas, e sem sucesso, fazendo coisas como este seminário de 1988
promovido por Chuck Norris (no qual ele conta a história de quando
Hélio Gracie, com 75 anos, o colocou para dormir), ou a tentativa de Rorion de
também usar Hollywood, quando ele dirigiu as cenas de luta de Mel Gibson no
filme Máquina Mortífera, ou quando ele próprio atuou em um
filme B (mostrando definitivamente que o jiu-jítsu não servia para filmes, ao contrário do kung fu e sua plasticidade).
Foi somente com o UFC que eles finalmente atingiram uma audiência
significativa.
Obviamente, a
ciência econômica nunca será algo tão popular quanto as lutas de UFC, e
disputas intelectuais jamais atrairão o grande público. Mas a ciência
econômica possui seu público e o zeitgeist econômico influi muito
mais na vida cotidiana das massas do que a dominância de uma arte marcial em
particular.
Quando Hélio
Gracie já estava bem idoso, perguntaram a ele o que era um homem fraco. E
ele respondeu: "Eu sou um homem fraco. Eu nasci fraco e vou morrer
fraco. Eu derrotei meus adversários apenas porque eu sabia
jiu-jítsu." Ele lutou sua vida inteira para provar a superioridade
de seu estilo — e conseguiu. O mundo veio a saber sobre esta superioridade do
jiu-jítsu brasileiro "de estilo Gracie" somente após as vitórias de
Royce no UFC.
Mises também
lutou toda a sua vida para demonstrar o que é uma ciência econômica válida;
para provar a superioridade da Economia Austríaca misesiana — e ele
conseguiu. Mas poucos estão a par deste fato. Como estourar essa
bolha intelectual é o maior dos desafios que os austríacos têm diante de si.
*Fernando
Chiocca é um intelectual
anti-intelectual, praxeologista e
conselheiro do Instituto Ludwig von Mises Brasil.
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