Por
André Borges Lopes, do blog Luis Nassif Online
Aos
que ainda sabem sonhar
O
fundamental não é lutar pelo direito de fumar maconha em paz na sala da sua
casa. O fundamental não é o direito de andar vestida como uma vadia sem ser
agredida por machos boçais que acham que têm esse direito porque você está
"disponível". O fundamental não é garantir a opção de um aborto
assistido para as mulheres que foram vítimas de estupro ou que correm risco de
vida. O fundamental não é impedir que a internação compulsória de usuários de
drogas se transforme em ferramenta de uma política de higienismo social e
eliminação estética do que enfeia a cidade. O fundamental não é lutar contra a
venda da pena de morte e da redução da maioridade penal como soluções finais
para a violência. O fundamental não é esculachar os torturadores impunes da
ditadura. O fundamental não é garantir aos indígenas remanescentes o direito à
demarcação das suas reservas de terras. O fundamental não é o aumento de 20
centavos num transporte público que fica a cada dia mais lotado e precário.
O
fundamental é que estamos vivendo uma brutal ofensiva do pensamento
conservador, que coloca em risco muitas décadas de conquistas civilizatórias da
sociedade brasileira.
O
fundamental é que sob o manto protetor do "crescimento com redução das
desigualdades" fermenta um modelo social que reproduz – agora em escala
socialmente ampliada – o que há de pior na sociedade de consumo, individualista
ao extremo, competitiva, ostentatória e sem nenhum espaço para a solidariedade.
O
fundamental é que a modesta redução da nossa brutal desigualdade social ainda
não veio acompanhada por uma esperada redução da violência e da criminalidade,
muito pelo contrário. E não há projeto nacional de combate à violência que fuja
do discurso meramente repressivo ou da elegia à truculência policial.
O
fundamental é que a democratização do acesso ao ensino básico e à universidade
por vezes deixam de ser um instrumento de iluminação e arejamento dos indivíduos
e da própria sociedade, e são reduzidos a uma promessa de escada para a
ascensão social via títulos e diplomas, ao som de sertanejo universitário.
O
fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos
"libertários" e "de esquerda" hoje abriram mão de disputar
ideologicamente os corações e mentes dos jovens e dos novos "incluídos
sociais" e se contentam em garantir a fidelidade dos seus votos nas urnas,
a cada dois anos.
O
fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos
"sociais-democratas" já não tem nada a oferecer à juventude além de
um neo-udenismo moralista que flerta desavergonhadamente com o autoritarismo e
o fascismo mais desbragados.
O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.
O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.
O
fundamental é que os sindicatos, movimentos populares e organizações estudantis
estão entregues a um processo de burocratização, aparelhamento e defesa de
interesses paroquiais que os torna refratários a uma participação dinâmica,
entusiasmada e libertária.
O
fundamental é que temos em São Paulo um governo estadual que é francamente
conservador e repressivo, ao lado de um governo federal que é supostamente
"progressista de coalizão". Mas entre a causa da liberação da maconha
e defesa da internação compulsória, ambos escolhem a internação. Entre as
prostitutas e a hipocrisia, ambos ficam com a hipocrisia. Entre os índios e os
agronegócio, ambos aliam-se aos ruralistas. Entre a velha imprensa embolorada e
a efervescência libertária da Internet, ambos namoram com a velha mídia. Entre
o estado laico e os votos da bancada evangélica, ambos contemporizam com o
Malafaia. Entre Jean Willys e Feliciano, ambos ficam em cima do muro,
calculando quem pode lhes render mais votos.
O
fundamental é que o temor covarde em expor à luz os crimes e julgar os aqueles
agentes de estado que torturaram e mataram durante da ditadura acabou
conferindo legitimidade a auto-anistia imposta pelos militares, muitos dos
quais hoje se orgulham publicamente dos seus crimes bárbaros – o que nos leva a
crer que voltarão a cometê-los se lhes for dada nova oportunidade.
O
fundamental é que vivemos numa sociedade que (para usar dois termos
anacrônicos) vai ficando cada vez mais bunda-mole e careta. Assustadoramente
careta na política, nos costumes e nas liberdades individuais se comparada com
os sonhos libertários dos anos 1960, ou mesmo com as esperanças democráticas dos
anos 1980. Vivemos uma grande ofensiva do coxismo: conservador nas ideias,
conformado no dia-a-dia, revoltadinho no trânsito engarrafado e no teclado do
Facebook.
O
fundamental é que nenhum grupo político no poder ou fora dele tem hoje qualquer
nível mínimo de interlocução com uma parte enorme da molecada – seja nas
universidades ou nas periferias – que não se conforma com a falta de
perspectivas minimamente interessantes dentro dessa sociedade cada vez mais
bundona, careta e medíocre.
Os
mesmos indignados que se esgoelam no mundo virtual clamando que a juventude e
os estudantes "se levantem" contra o governo e a inação da sociedade,
são os primeiros a pedir que a tropa de choque baixe a borracha nos
"vagabundos" quando eles fecham a 23 de Maio e atrapalham o
deslocamento dos seus SUVs rumo à happy-hour nos Jardins.
Acuados,
os políticos "de esquerda" se horrorizam com as cenas de sacos de
lixo pegando fogo no meio da rua e se apressam a condenar na TV os atos de
"vandalismo", pois morrem de medo que essas fogueiras causem pavor em
uma classe média cada vez mais conservadora e isso possa lhes custar preciosos
votos na próxima eleição.
Enquanto
isso a molecada, no seu saudável inconformismo, vai para as ruas defender –
FUNDAMENTALMENTE – o seu direito de sonhar com um mundo diferente. Um mundo
onde o ensino, os trens e os ônibus sejam de qualidade e gratuitos para quem
deles precisa. Onde os cidadãos tenham autonomia de decidir sobre o que devem e
o que não devem fumar ou beber. Onde os índios possam nos mostrar que existem
outros modos de vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do agribusiness e
das safras recordes. Onde crenças e religião sejam assunto de foro íntimo, e
não políticas de Estado. Onde cada um possa decidir livremente com quem prefere
trepar, casar e compartilhar (ou não) a criação dos filhos. Onde o conceito de
Democracia não se resuma à obrigação de digitar meia dúzia de números nas urnas
eletrônicas a cada dois anos.
Sempre
vai haver quem prefira como modelo de estudante exemplar aquele sujeito
valoroso que trabalha na firma das 8 da manhã às 6 da tarde, pega sem reclamar
o metrô lotado, encara mais quatro horas de aulas meia-boca numa sala cheia de
alunos sonolentos em busca de um canudo de papel, volta para casa dos pais
tarde da noite para jantar, dormir e sonhar com um cargo de gerente e um
apartamento com varanda gourmet.
Não
é meu caso. Não tenho nem sombra de dúvida de que prefiro esses inconformados
que atrapalham o trânsito e jogam pedra na polícia. Ainda que eles nos pareçam
filhinhos-de-papai, ingênuos em seus sonhos, utópicos em suas propostas,
politicamente manobráveis em suas reivindicações, irresponsavelmente seduzidos
pelos provocadores de sempre.
Desde
a Antiguidade, esses jovens ingênuos e irresponsáveis são o sal da terra, a luz
do sol que impede que a humanidade apodreça no bolor da mediocridade, na
inércia do conformismo, na falta de sentido do consumismo ostentatório, nas
milenares pilantragens travestidas de iluminação espiritual.
Esses
moleques que tomam as ruas e dão a cara para bater incomodam porque quebram
vidros, depredam ônibus e paralisam o trânsito. Mas incomodam muito mais porque
nos obrigam a olhar para dentro das nossas próprias vidas e, nessa hora,
descobrimos que desaprendemos a sonhar.
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Dag Vulpi