domingo, 16 de setembro de 2012

Duas décadas de duelo de Jefferson e Dirceu em jogo no julgamento do mensalão


Por José Casado
BRASÍLIA - Os convidados ficaram impressionados: além de belas mulheres adornando o ambiente, havia um mini-palanque com microfone, holofotes e câmeras prontas para quem quisesse usar. Anunciava-se a harmonia entre a cúpula do PTB e José Dirceu, chefe da Casa Civil. O governo Lula sequer completara 90 dias, e o partido de Roberto Jefferson e José Carlos Martinez cuidava de reafirmar a Dirceu, numa noite de verão em Brasília, a disposição em servir sob seu comando na "base aliada". O ministro recebeu de Martinez um reluzente relógio Rolex: - É a nossa autoridade maior - justificou Jefferson, ao mencionar o valor aparente (R$ 5 mil).
Meses depois, Dirceu telefonou: - Martinez, o Rolex que você me deu de presente é falso!
A história correu do Palácio do Planalto para os plenários da Câmara e do Senado. Houve quem vislumbrasse nela uma profecia: - Como o relógio, o acordo deles e o apoio do PTB também devem ser falsos - ironizou da tribuna o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA). Conhecia os personagens e, como poucos, sabia que uma biografia é feita também pelos adversários que se constrói na política. Não havia risco de dar certo, observando-se o prontuário das relações de Dirceu e Jefferson.
Onze anos antes, Dirceu estava no ataque. Integrava a CPI sobre os negócios de Paulo César Farias, caixa de Fernando Collor na eleição de 1989 quando derrotou Lula.
Era junho de 1992, a CPI tinha 20 dias de funcionamento e não coletara uma única prova, mas Dirceu já proclamava: - O presidente é conivente com a corrupção e tráfico de influência, e isso basta para um processo de impeachment.
Ele e Jefferson já haviam trombado na Comissão de Seguridade Social. Dirceu sugerira convocar a mulher do presidente, Rosane Collor, para depor sobre corrupção. Na época, Rosane chefiava um órgão público de assistência social e Dirceu já produzira 180 requerimentos sobre suspeitas de irregularidades.
Jefferson presidia a comissão e explodiu. Gritava ("Não se faz política tentando atingir a família"), enquanto avançava na direção de Dirceu. Foi contido. Semanas depois o derrotou na votação do requerimento para convocar Rosane (por 30 a 3). Descobriram-se inimigos. Collor encontrou o líder de sua "tropa de choque".
Na CPI, o defensor do presidente chegava armado, muitas vezes carregando uma mala preta quadrada em que, suspeitava-se, facilmente caberia uma metralhadora. Escolhia o fundo do plenário, posição incoerente para quem comandava uma "tropa de choque".
-Era meu segredo - ele conta: - No auge daquela confusão, descobri um câncer no testículo direito. Não contei a ninguém, nem à família. Vinha ao Rio fazer radioterapia e voltava a Brasília na manhã seguinte. Sabe o que tinha na mala? Não era metralhadora. Eram fraldões! Sentava no fundo, porque a toda hora tinha de ir ao banheiro, efeito da terapia.
Com 150 quilos de pura ansiedade e agressividade, era chamado de troglodita pelos adversários.
-E era mesmo. Andava balançando, que é como um gordo faz para se defender do impacto no joelho, fumava muito, bebia muito, comia muito e ainda levava uma caixa de chocolates no bolso. E como tinha horror à esquerda que quer acabar com a liberdade individual, a toda hora queria sair na mão com os petistas.
Dirceu anunciava horror à direita, que personificava em Collor no Palácio do Planalto e em Jefferson no Congresso. Também investia no confronto, coordenando ações de Eduardo Suplicy e José Paulo Bisol no Senado, José Genoino e Aloizio Mercadante na Câmara.
Suplicy vocalizou a suspeita de que Jefferson, advogado criminalista, poderia ter recebido um milhão de dólares pela defesa de Collor na CPI. O deputado partiu para cima do senador do PT, boxeador nas horas vagas. Foi interrompido por uma "gravata" de um segurança - inesquecível para ambos. Soltou-se, vislumbrou o terno branco de Bisol na saída do plenário e foi atrás, mas não conseguiu alcançá-lo.
A convivência no tapete verde da Câmara ficou insuportável. - Não desperto isso em ninguém, só nele - repetia Dirceu. Esse enredo de ódio era uma gota na oceânica crise institucional. Ególatras, construíam-se como adversários. Do lado de fora, um governo ruía por corrupção, e o presidente da República buscava a salvação em sessões de magia negra.
Ao impeachment seguiu-se a CPI do Orçamento. Desacreditado, Jefferson viu-se outra vez sob suspeita de corrupção, pela voz do senador Bisol, que trocara o PT pelo PSB do ex-governador pernambucano Miguel Arraes. Foram meses de imobilização até o arquivamento da denúncia, aparentemente por interferência de Arraes. Ruminava ressentimento.
Deu o troco no meio da eleição presidencial de 1994. Denunciou Bisol, então candidato do PSB à vice-presidência na chapa de Lula, por suposta corrupção no Rio Grande do Sul. Usou toda a sua habilidade de bom orador, que valoriza as vogais, foge das consoantes e não rosna nas fricativas, em um dos mais rancorosos discursos pronunciados da tribuna do Congresso: - Senhor presidente, vim para contar a história de rabo preso de um senador de rabo solto...
Bisol renunciou à candidatura como vice de Lula, que foi derrotado por Fernando Henrique Cardoso (PSDB) no primeiro turno.
Quem forneceu os papéis, distribuídos aos jornalistas depois do discurso?
- Foi o doutor Arraes, aquele era o "dossiê Arraes" - ele conta.
Arraes disputava espaço na oposição com Lula. Pela versão de Jefferson, o líder do PSB preferiu fritar o representante do seu partido na aliança com o PT. Arraes se elegeu governador de Pernambuco, tornou-se um dos principais adversários do governo Fernando Henrique, mas não conseguiu se reeleger quatro anos depois.
O tempo arrefeceu a memória das mútuas desfeitas. Oito anos mais tarde, Jefferson e Dirceu se reencontraram. Uniram-se em torno da perspectiva de poder.
Estavam na reta final da eleição de Lula, em 2002, e renovados à sua maneira: Dirceu pela plástica, Jefferson pela perda de 100 quilos com cirurgia no estômago. E, entre eles, o ânimo conciliador de Lula e Martinez.
Começava a montagem da "base aliada": - É um bolero, dois pra lá e dois pra cá - definia Dirceu. Exalava euforia: - A oposição pode vir quente que nós estamos fervendo, o modo petista de governar tem força.
No final de 2003, um grupo de fundadores do PT lançou um manifesto crítico ao "dois pra lá e dois pra cá" de Dirceu. Ele ironizou:
- Se quiserem formar um novo partido. A Convergência Socialista criou o PSTU e, como sabem, hoje é um dos maiores partidos do Brasil.
Um ano depois, em outubro de 2004, enquanto o barítono Jefferson cantava "Eu sei que vou te amar" para Lula, recostado num sofá vermelho, os dissidentes abandonaram o PT e fundaram o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Pouco tempo depois, o passado bateu à porta de Dirceu e Jefferson. O deputado achou que o chefe da Casa Civil iria tomar-lhe o controle do PTB, via mensalão. Voltou ao confronto.
Menos ansioso nos seus novos 82 quilos, Jefferson resolveu se incriminar para dar credibilidade à denúncia, como Ródion, o personagem de Dostoiévski em "Crime e castigo".
- Você lembra da paixão pelo suicídio na ópera 'Butterfly'? Pois é, sem tragédia, sem sangue e sem ódio o povo não gosta - argumenta.
O resultado dessas duas décadas de duelo depende agora de uma decisão do Supremo. Eles se arriscaram e podem acabar assistindo à própria "morte" na política.


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