Por Thiago Trung*
Como advogado
militante, tenho a impressão de que a administração pública enxerga o cidadão
sempre como uma parte contrária, nunca como sua própria razão de ser.
Queria abrir
um parênteses entre nós e me permitir sonhar um pouco. Já imaginou um partido político
que não estivesse interessado em nenhuma outra forma de poder senão o exercício
pleno do cargo legislativo? Um partido que não almejasse administrar o país, o
Estado e os Municípios, mas simplesmente legislar e fiscalizar os atos do Poder
Executivo?
Eu
particularmente acredito muito nessa ideia.
Mas seja para
criticar minha impressão sobre a administração pública enxergar o cidadão como
parte contrária ou para sonhar com outras formas de se fazer política,
precisamos antes entender como funcionam as coisas. Ou nos tornamos ativistas
de sofá.
No primeiro
texto da série "Para entender política", tratei brevemente da
separação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Portanto, a noção
geral você já tem: o Executivo administra, o Legislativo cria normas e o
Judiciário julga conflitos.
Essa separação
não é tão estanque, e, por vezes, o Legislativo julga e o Executivo legisla.
O propósito
deste texto, o quarto da série, é avançar um pouco mais nesse assunto e
esclarecer como este assunto também pode aprimorar sua opinião política.
Como
funciona o Legislativo
A Câmara dos Deputados |
O Brasil adota
um processo legislativo bicameral, ou seja, ele se fraciona em duas casas: a
Câmara dos Deputados e o Senado Federal, que, juntos, formam o Congresso
Nacional.
A Constituição
Federal nos diz que a Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo,
enquanto que o Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do
Distrito Federal.
Assim, não é
bem verdade quando se diz que os todos os políticos nos representam, pelo menos
do ponto de vista jurídico. Os Deputados Federais, que ocupam a Câmara dos
Deputados, sim, representam os cidadãos. Já a função dos Senadores é de atuar
em defesa dos Estados que os elegeram, e não diretamente em defesa da
população.
Como já
sabemos, a função primordial do Legislativo é produzir normas. Seria muito
legal discutir o processo legislativo completo, mas talvez isso valha um texto
exclusivo pois, além de longa, a discussão pressupõe conhecimento básico sobre
a hierarquia das normas no ordenamento jurídico, o que ainda não incluí na
série de textos Para entender política.
Por ora, fique
com a ideia de que o processo legislativo difere para diferentes tipos de
normas e pode envolver diferentes quóruns de aprovação, sessões de votação
separadas ou conjuntas das casas e muitas comissões de análise e estudo das
propostas.
A diferença
entre as duas casas não é só de representação. Cada uma delas tem competências
específicas, mas complementares. De novo, não cabe neste texto o detalhamento
das competências de cada casa – se tiver curiosidade, dá uma olhada nos artigos
49, 51 e 52 da Constituição Federal e mata a curiosidade. O que eu quero fazer,
mesmo, é chamar a atenção para uma informação um pouco menos óbvia e que
normalmente passa despercebida: o Poder Legislativo possui poderes que vão
muito além da produção de leis.
Além das
atribuições legislativas, o Poder Legislativo tem atribuições de fiscalização,
controle e julgamento. Nelas estão incluídos os seguintes:
(i) Poder de
pedir informações de quaisquer órgãos subordinados à Presidência da República
(sendo que se tal órgão desobedecer o pedido, isso pode ser considerado crime
de responsabilidade);
(ii) Formação
de comissões parlamentares de inquérito – as famosas CPI –, que possuem poderes
de investigação iguais das autoridades judiciais;
(iii) Controle
das contas da Presidência da República, com ajuda do Tribunal de Contas;
(iv)
Fiscalização e controle dos atos do Poder Executivo;
(v) Julgamento
de crimes de responsabilidade do Presidente da República, Ministros do Supremo
Tribunal Federal, do Procurador-Geral da República e do Advogado-Geral da União
(um crime de responsabilidade é aquele que atenta contra a Constituição
Federal); e
(vi) Aprovação
do orçamento anual e planejamento plurianual, que estabelece, de forma
regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública
federal para investimentos e para a manutenção de programas de duração
continuada.
Essas
competências tão displicentemente ignoradas por nós evidenciam como estamos
errados em superestimar o Presidente da República, pois ele deveria ser
devidamente controlado pelo Poder Legislativo.
E como estamos
ainda mais errados em subestimar o Poder Legislativo, pois ele é o Poder que
pode de fato obrigar o Presidente da República a agir conforme o ordenamento
nacional e, em última instância, conforme os interesses da população.
A existência
desses poderes de fiscalização é o principal motivo pelo qual entendo que um
Legislativo politicamente controlado pelo Executivo não pode dar coisa boa,
pois, neste cenário, o Executivo, que já concentra uma enorme liberdade de
ação, age com a certeza de que não terá suas decisões questionadas.
A compra de
apoio político é tema dos mais relevantes em teoria política e ocorre nas mais
diversas formas, como, por exemplo: coligações partidárias para obter maior
tempo de televisão, loteamento de cargos públicos de primeiro e segundo
escalão, promessa de obras em nichos eleitorais específicos e, até mesmo,
dinheiro vivo.
Honestamente,
não vejo muita diferença entre vender apoio político em troca de cargo na
administração pública ou de dinheiro – ambas são deturpações da função política
do Poder Legislativo e evidenciam como os políticos se apropriam do cargo e o
usam em benefício próprio ou do partido.
Apenas para
finalizar as considerações básicas sobre o Legislativo, o sistema bicameral
normalmente é criticado por ser um modelo pouco favorável a reformas. Isso
porque o veto a uma mudança legislativa, ou mesmo a postergação de sua análise
para um futuro incerto, é politicamente mais fácil no Senado (pois há menos
pessoas envolvidas), do que na Câmara dos Deputados (um ambiente com mais
agentes políticos). Se houvesse somente uma casa legislativa, numerosa, esse
manejo político seria um pouco mais trabalhoso.
Seguindo,
como funciona o Executivo
Gabinete presidencial no Palácio do Planalto | Foto: Roberto Stuckert Filho/PR. |
Finalizado o
Poder Legislativo, passemos para o Poder Executivo, que é exercido pelo
Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.
No nosso
sistema presidencialista, a Presidência acumula funções de chefia de Estado,
relacionadas principalmente a relações internacionais, e de chefia de governo,
referentes a questões internas.
É este o Poder
que determina onde serão investidos os recursos do país, separa quais áreas
serão priorizadas, desenvolve e aplica políticas públicas e executa as leis
criadas pelo Poder Legislativo. Pela sua própria natureza, o Poder Executivo
possui bastante discricionariedade – forma de agir onde não há no agente
qualquer restrição ou limite – em suas atividades, motivo pelo qual seria
saudável sua constante fiscalização por parte do Legislativo e do Judiciário.
Diante de
tamanha liberdade de ação, perceba como é importante fazer a escolha do chefe
do Poder Executivo com base nos programas de governo que os candidatos
divulgam, pois, em tese, eles representam a visão que o político tem para o
país. Você pode até simpatizar mais com um candidato do que com outro, mas,
afora a simpatia, você compartilha de sua visão de país?
Antes disso:
você já refletiu sobre suas próprias preferências políticas?
Você pode
escolher, por exemplo, dar mais relevância à economia, às relações
internacionais, à desigualdade social, aos direitos humanos ou ao meio
ambiente, e então escolher o candidato que mais se alinha com suas
preferências.
Quando estiver
refletindo sobre suas preferências políticas, seja realista: os recursos do
país são finitos e não dão conta de tratar de todos os temas de forma
satisfatória, por isso preferências devem ser escolhidas. Se você defende a
redução de impostos, saiba que isso afetará a qualidade dos serviços públicos;
se você almeja a redução da inflação, saiba que isso reduz o crescimento e pode
aumentar o desemprego.
Discutir
política de forma madura é adotar posições e suportar prós e contras (aliás,
não seria maturidade a capacidade de realizar escolhas conscientes e bancar
suas consequências?). Defender educação em período integral, saúde de primeiro
mundo, redução da inflação, crescimento econômico de dois dígitos, diminuição
dos tributos e fim da desigualdade social, assim, tudo junto, não dá. Ninguém
disse que é fácil, mas, para você se definir politicamente, você precisa fazer
escolhas e ter preferências.
Sinceramente,
o Poder Executivo é menos interessante para mim, pois se apresenta como um
grande administrador (e, lembrem-se, eu sou jurista; para os politólogos, a
coisa é diferente).
Como cidadão,
procuro me inteirar sobre quais políticas estão sendo executadas, quais as
prioridades de investimento e quais os rumos que o Presidente aponta para o
país, tentando fazer uma constante avaliação de acordo com a minha escala de
preferências. Mas isso sou eu, e estou aberto a sugestões.
Por
fim, como é o Judiciário
Supremo Tribunal Federal |
No esforço de
tratar da separação dos Poderes de forma sucinta, passemos já para o Poder
Judiciário, cuja principal função é resolver conflitos de interesse nos casos
concretos, com base no ordenamento jurídico.
Assim, quando
houver divergência sobre quem está errado e quem está certo, o Judiciário deve
ser acionado e a ele cabe resolver a pendenga. O que ele decidiu, está decidido,
e pronto.
O julgamento
de um conflito por uma parte imparcial é um importante meio de pacificação
social, pois evita que a discussão sobre determinado assunto se perdure
infinitamente no tempo e impõe um fim, com uma solução que deve ser considerada
correta.
O Judiciário
tem diversos órgãos com diferentes competências, conhecidos por um monte de
siglas. Vou quebrar seu galho e fazer um resumão para que você não se sinta
muito perdido lendo o caderno de política:
(i) STF, ou
Supremo Tribunal Federal, que é a cúpula do Poder Judiciário e tem como
objetivo primordial a defesa da Constituição Federal e da Federação.
(ii) STJ, ou
Superior Tribunal de Justiça, cuja principal função é proteger a incolumidade das leis federais;
(iii) TST, ou
Tribunal Superior do Trabalho, que é a última instância para julgamentos
referentes a relações de trabalho;
(iv) TSE, ou
Tribunal Superior Eleitoral, que julga conflitos referentes ao direito
político-eleitoral; e
(v) Superior
Tribunal Militar, que se ocupa dos crimes militares.
Esses são os
órgãos de cúpula, ou seja, as últimas instâncias de decisão sobre os
respectivos assuntos.
Eles também
têm competências específicas para julgar ocupantes de determinados cargos
políticos que, por sua relevância, não seguem o caminho normal do processo.
Assim, por exemplo, o STF deve julgar os crimes do Presidente da República
(lembrando que os crimes de responsabilidades são julgados pelo Legislativo),
dos membros do Congresso Nacional e seus próprios ministros, enquanto que o STJ
julga os crimes comuns dos Governadores.
O Poder
Judiciário, seguindo a lógica do Federalismo, também se divide em Federal, para
os assuntos que envolvem interesses nacionais, e em Estadual, para aqueles
temas de impacto local. Por isso há os Tribunais Regionais Federais e os
Tribunais de Justiça, estes últimos em âmbito estadual. A divisão não é
exatamente assim, mas essa é a ideia geral que eu gostaria que você levasse deste
texto.
O Judiciário é
um excelente instrumento político a ser utilizado pelo cidadão. Isso porque, se
você sofrer restrição ilegal de seus direitos por parte da administração
pública, por exemplo, você pode ingressar no Judiciário para que ele a force a
cumprir a lei. Acredite, a administração pública, em todos os níveis
federativos, adota ordinariamente procedimentos que ilegalmente afetam os
direitos dos cidadãos, e você precisa lutar contra isso.
Cobrança de
tributos de pessoas erradas, retenção de informação pessoal do cidadão,
concessão de benefícios previdenciários em desacordo com a legislação vigente,
é tanta coisa que até inventaram o “mandado de segurança”, que é uma ação
especial contra atos ilegais de autoridades.
E embora seja
o saco predileto de pancadas do Judiciário, não é só contra o Executivo que o
Judiciário pode atuar. Se o Legislativo fizer corpo mole e deixar de legislar
sobre determinado assunto, deixando-o sem regulamentação em detrimento dos
direitos do cidadão, ele pode ordenar-lhe que tome providências. É importante
notar, porém, que o Judiciário nunca age por si: ele precisa ser provocado por
alguém para poder tomar uma decisão.
E embora seja
o saco predileto de pancadas do Judiciário, não é só contra o Executivo que o
Judiciário pode atuar. Se o Legislativo fizer corpo mole e deixar de legislar
sobre determinado assunto, deixando-o sem regulamentação em detrimento dos
direitos do cidadão, ele pode conceder direitos aos indivíduos mesmo sem a
regulamentação do Legislativo. É importante notar, porém, que o Judiciário
nunca age por si: ele precisa ser provocado por alguém para poder tomar uma
decisão.
Enfim, eu,
sendo advogado atuante, tenho um monte – sério, um MONTE – de considerações
sobre o sistema judiciário brasileiro que, assim como outros tantos temas,
ficarão para depois, mas espero que essas noções básicas ajudem a clarear um
pouco as coisas.
Final?
Chegamos,
assim, ao fim provisório dessa série para entender política, que pretendeu dar um panorama geral
da organização do nosso país do ponto de vista jurídico de uma forma
descontraída e simples. Pelo tanto de pontas sem desfecho que eu deixei nos
textos, parece que eu previ inconscientemente uma vontade de continuar a
escrever.
Por ora,
queria agradecer ao Papo de Homem, pela edição cuidadosa dos textos, e à TJ,
revisora particular das mais valiosas. Todos os textos foram escritos com base
do Curso de Direito Constitucional Positivo do José Afonso da
Silva, um clássico de fácil leitura que recomendo para quem quiser se
aprofundar nos temas tratados.
No mais,
aguardo ansioso seus comentários para prolongarmos as discussões.
* * *
A série seguir
viva depende de vocês. Por favor, se manifestem com suas sugestões para o
futuro dela nos comentários!
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Leia também:
É advogado de
propósito. Gosta de arte, música e política e acredita que sempre dá para
mudar. Acredita também que Yourcenar está sempre certa, e que isso não muda
nunca.
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