Por Thiago
Trung*
Qual é,
exatamente, o problema com a educação do país? Quem é o responsável?
Falar que a
educação é de péssima qualidade já virou tão clichê que ninguém aguenta mais
(e, apenas para dar uma alfinetada para nos tirar da letargia, ficar repetindo
isso à exaustão não nos faz uma pessoa crítica, só demagógica).
Porém, é
importante conhecer a competência de cada ente federativo para realmente
qualificar o debate político e não sair falando bobeira por aí, posando de
engajado.
Estamos
progredindo e chegamos ao terceiro texto da série “Para
entender política”. Depois de termos apresentado
a Constituição Federal e os
direitos políticos dos cidadãos, passemos a um assunto que certamente irá
melhorar sua argumentação em debates políticos: o federalismo.
O artigo 1º da
Constituição Federal de cara diz que “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal (...)”, e dá a dica de que federalismo tem a ver com a
união de esferas políticas distintas. Dando uma mão para a Constituição
Federal, pode-se entender que federação seria a união de unidades públicas com
autonomia política e constitucional.
As unidades
políticas não são hierárquicas
Veja que
interessante, um Município não está abaixo do Estado em que se insere, que, por
sua vez, não está abaixo da União. Eles são, na verdade, complementares, o que
não significa que o Presidente da República tenha algum poder hierárquico sobre
os Governadores e Prefeitos.
A autonomia
dos entes federativos é garantida de duas formas:
A primeira é
estabelecendo fontes de custeio de suas atividades, seja pela instituição de
tributos diretos a serem cobrados diretamente pelas unidades federativas, seja
pela obrigatoriedade de repasses de receitas entre os entes federativos.
Existem,
portanto, tributos federais, estaduais e municipais, e se você está indignado
com a alíquota de algum deles, direcione sua crítica ao correspondente fisco:
se está revoltado com o Imposto de Renda, buzine na união; se o problema é com
o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação, grite com o Estado; se é com o
valor do Imposto de Transmissão de Imóveis Inter-Vivos, reclame com o
Município, e assim para cada um dos tributos existentes atualmente.
A segunda
forma de assegurar autonomia é distribuir competências entre as unidades
políticas. Jurista entende competência como autoridade ou poder para decidir
sobre algum fato, e não exatamente como capacidade de realização satisfatória
de algo.
Assim, dizer
que Município é incompetente para legislar sobre direitos trabalhistas não é
uma ofensa, mas apenas uma constatação de que não possui poder para tratar
dessa matéria.
A ideia de
distribuir competências é de permitir que a unidade política mais adequada
trate dos temas que lhe afetam mais diretamente. Assim, assuntos considerados
de interesse nacional, como segurança militar, direitos trabalhistas e normas
de imigração, por exemplo, são de competência da União; assuntos de interesse
local, como organização do plano diretor da cidade, são de competência
municipal.
Os Estados,
com algumas poucas exceções, ficaram com o que se conhece por competência
remanescente, ou seja, o que não for da competência nem da União, nem dos
Municípios, é dos Estados.
A divisão de
interesses, como se pode imaginar, não é lá muito estanque. Justamente por essa
sobreposição de interesses entre as unidades federativas é que inventaram as competências
concorrentes, em contraposição às competências privativas.
Nas
competências concorrentes, em que mais de um ente federativo tem interesse, a
regra geral é que a União deve estabelecer regras gerais, enquanto que Estados
e Municípios estabelecem regras específicas. Este assunto não é lá tão simples
e dei uma boa simplificada, mas fiquemos com essa noção de que competências
podem ser individuais ou compartilhadas.
Retomando o
caso da educação e os papéis específicos da União, Estado e Município
Quem cuida da escola
dela: município, estado ou união?
|
Um belo
exemplo de competência concorrente é a educação, e aqui peço licença para me
desviar da Constituição Federal e dar uma olhadela na legislação infraconstitucional
para explicar melhor o conceito de competência concorrente, e também para
discorrer um pouco sobre esse assunto que virou carne de vaca em qualquer
discussão política.
O artigo 23,
V, da Constituição Federal diz que é competência comum da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios proporcionar os meios de acesso à cultura,
à educação e à ciência.
A União,
cumprindo seu dever de estabelecer regras gerais (previsto no artigo 22, XXIV,
da Constituição Federal), aprovou a Lei n.º 9.394, com as Diretrizes e Bases da
Educação. Se você tiver um tempinho, dá
uma lida nela, só para se inteirar um pouco sobre o assunto.
Escolhendo
apenas algumas competências mais interessantes, vemos que cabe à União:
(i)
estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que
nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a garantiruma
formação básica comum aos brasileiros;
(ii) assegurar
um processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental,
médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a
definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino.
Perceba que se
julgou importante para a nação assegurar uma formação básica comum a todos seus
nacionais e avaliar o resultado de tal educação. Já ouviu falar do ENEM (Exame
Nacional do Ensino Médio)?
Então, é por
isso que é o Ministério da Educação quem cuida do ENEM, e não outro órgão, pois
se pretende verificar se essa base educacional comum atinge todos os cidadãos
do país, e não somente de determinados Estados ou Municípios.
A União pode,
também, organizar instituições de ensino por si, mas sem a obrigatoriedade de
assegurar nenhum tipo de formação. Por isso vemos que existem universidades e
escolas de ensino técnico federais. Os deveres de educação básica, mesmo, são
dos Municípios e dos Estados.
Aos Municípios
cabe oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade,
o ensino fundamental, sendo permitida a atuação em outros níveis de ensino
somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de
competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela
Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.
O Município,
assim, deve priorizar o ensino fundamental e, se sobrar uma graninha, fazer
creches e pré-escolas. Se ainda assim sobrar dinheiro, aí sim ele pode investir
em outros níveis de ensino.
Já aos Estados
cabe assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio
a todos que o demandarem, lembrando que o ensino médio pode preparar o
estudante para o exercício de funções técnicas. O mesmo raciocínio do Município
se aplica a este caso: o Estado deve priorizar o ensino médio e técnico, depois
o ensino fundamental, e só depois outros níveis de ensino.
Agora sim
podemos seguir com a pergunta inicial do texto, "qual é, exatamente, o
problema com a educação do país?"
É o currículo
das escolas? Brigue com a União.
É a falta de
creche ou um ensino fundamental porco? Culpe o Município.
É o ensino
médio que não prepara para os vestibulares mais concorridos ou a falta de bons
ensinos técnicos como alternativa à faculdade? Aí o negócio é com seu Estado.
Identificar
com exatidão o problema que nos incomoda é o primeiro passo para podermos
perseguir algo melhor e sair do discurso circular e vazio.
Indo mais
fundo nas competências dos entes federativos
A União é o
ente mais abrangente e tem como horizonte de preocupações questões que afetam o
país em sua inteireza. Declarar guerra e celebrar paz, por exemplo, são atos
que afetam a todos os brasileiros, então é natural que a competência para esses
atos seja da União.
Questões
monetárias – e aqui, refiro-me a questões que envolvem a nossa moeda, cuja
unicidade permite a troca de bens dentro do país – e questões cambiais, que
envolvem o controle das reservas de divisas internacionais, também são
preocupação da União, assim como a manutenção de meios de comunicação dentro do
território nacional por meio de serviço postal e da regulamentação das
telecomunicações.
Mantendo essa
noção de que os interesses da União são amplos, dá uma lida nos artigos 21 e 22 da Constituição Federal para ver quais
são as outras competências (mesmo, vale entrar e ler). Você vai perceber que a distribuição de
competências faz, pelo menos, um pouco de sentido, e, ainda que não saiba de
cor todas elas, você poderá pensar suas opiniões políticas de maneira mais
consciente.
Indo dos
interesses mais amplos aos mais específicos, o Município tem competência para
legislar sobre assuntos locais, como o plano de ocupação do solo, e organizar e
prestar os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte
coletivo. Entenda que a questão não tem a ver com a importância da matéria, mas
sim com sua amplitude.
Só para não
dizer que não falei de flores, os Estados têm competências comuns com a União,
como cuidar da saúde e proteger o meio ambiente, algumas poucas competências
exclusivas, como a exploração de gás canalizado e a determinação de zonas
metropolitanas, e competências residuais, que, como já dito, são aquelas
competências que não são nem da União, nem dos Municípios.
Este assunto é
um campo fértil e entender que os entes federativos têm vidas separadas é um
bom começo para avaliar de forma mais clara os governos federal, estaduais e
municipais. Questões como educação, sobre a qual tratei muito brevemente, saúde
e segurança são mais bem analisadas após a identificação das competências e
responsabilidades de cada ator político.
Seria
excelente se pudéssemos eleger um único bode expiatório para problemas dessa
complexidade e malhá-lo como Judas, mas a verdade é que esses temas envolvem
uma coordenação política cuja ineficiência raramente se deve a apenas um
governo.
Agora não vá
mais deixar os candidatos te enganarem prometendo o que está fora da alçada
deles
Um último
aspecto sobre as competências que eu gostaria de indicar e que talvez possa lhe
ser útil ao pensar seu voto é que os partidos e os próprios candidatos devem
ter propostas condizentes com os cargos que pretendem ocupar (e, de forma
reflexa, nós temos que ter expectativas reais sobre o âmbito de atuação de cada
cargo).
Não nos
adianta de nada que um candidato a Deputado Estadual defenda o matrimônio
poliafetivo ou a redução da maioridade penal, pois essas matérias são de
competência privativa da União – assim, o que ele pensa ou deixa de pensar
sobre esses assuntos podem indicar uma possível identificação pessoal com os
ideais do candidato, mas são inúteis do ponto de vista juspolítico.
Juro que
tentei me conter e tratar dos assuntos básicos de forma direta. Assim como nos
outros textos, muitas questões importantes e interessantes ficaram de fora, mas
os comentários estão aí para isso.
Enquanto
conversamos, vou agilizar o quarto texto dessa sériepara entender política, que
tratará da divisão de competências entre os Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário.
* * *
Nota do
editor: esse é o terceiro texto da série “Para entender política“, por meio da qual pretendemos
elucidar, de maneira apartidária, conceitos políticos básicos para que possamos
ter diálogos mais produtivos sobre esse tema tão importante. Afinal, é bem
difícil palpitar quando não sabemos do que estamos falando.
É advogado de
propósito. Gosta de arte, música e política e acredita que sempre dá para
mudar. Acredita também que Yourcenar está sempre certa, e que isso não muda
nunca.
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Dag Vulpi