Por Thiago Trung*
As eleições
são um período particularmente tenso para mim. Não me refiro à obrigação de
fazer escolhas conscientes, que eu levo bem a sério, mas às inevitáveis
discussões com amigos / colegas / conhecidos / taxistas / pessoas aleatórias no
ônibus e na vida.
São em
momentos como esse que eu percebo como estamos longe de uma verdadeira
cidadania e como parte da responsabilidade pela zoeira em que vivemos é nossa.
Explico. Ao
começar uma discussão política, é inevitável que eu traga no discurso
argumentos de minha formação jurídica: distribuição de competências, distinção
entre legalidade e moralidade, direitos humanos, divisão de poderes e por aí
vai.
E, exceto
quando discuto com colegas de faculdade e profissão, desanimo logo de cara
quando a boa pessoa não entende que Presidente não prende criminoso, que
Governador não tem nada a ver com a Petrobrás e que a discussão do sistema
educacional demanda coordenação entre municípios, estados e União.
Claro que
juristas têm certa vantagem nesse sentido, mas não deveríamos todos entender um
pouco mais das instituições do país em que vivemos?
Confesso que a
ideia de escrever esta série de textos veio primeiro do ímpeto egoístico de me
economizar tempo nas discussões que se aproximam, mas, pensando bem, até que é
bem legal tentar explicar conceitos jurídicos importantes de forma simples.
Lembro que política pode e deve ser analisada sob diversos aspectos; este texto
trata somente do ponto de vista jurídico.
Comecemos pelo
começo, que, juridicamente, é a Constituição Federal (“CF” para os íntimos).
"Vamos torcer pra Seleção e reclamar do governo?"
VAMOOOO!!
|
"Legal! Agora vamo entender a Constituição e exercer nosso
papel como cidadão?" err...
|
Manja o Contrato Social, do Rousseau,
de quem você ouviu falar na aula de história da sétima série quando sua
professora falou do iluminismo? Então, é ela.
É o pacto
social, o acordo
a que todos nós teoricamente nos submetemos em troca de uma ordem social
organizada e
que traz os fundamentos desse Estado chamado República Federativa do Brasil.
Quando você lê
que algo é inconstitucional, é porque esse algo vai contra esse documento
basilar do nosso ordenamento jurídico e deve ser inutilizado.
Esse algo –
que pode ser uma lei ordinária, um decreto, ou mesmo uma emenda constitucional
– deve estar muito errado, porque a Constituição Federal trata de assuntos
ligados à essência do Estado, como os direitos fundamentais dos cidadãos, a
organização do Estado e princípios norteadores de sua ação. Acredite, isso
acontece com mais frequência do que imagina.
A ideia de um
conjunto normativo ao quais todos os cidadãos estão submetidos – eu disse
todos, inclusive políticos, magistrados, policiais, eu, você – nasceu como
forma de organizar o barraco e limitar um poder governante que já foi absoluto
e que carecia de legitimidade. Se devo obedecer a algo, que pelo menos eu
participe na sua gênese; se devo me submeter a normas, que todos meus pares
também se submetam.
A participação
na condução política do país contribui para a legitimidade das normas, e a submissão
de todos ao ordenamento jurídico, sem exceção, garante um Estado regido pelo
direito, e não por pessoas potencialmente arbitrárias.
Além da
legitimidade, o legal de ter um documento com todos os princípios básicos do
Estado é que você, com uma dose de boa vontade, pode sentar e se inteirar sobre
eles. Antes de começar a ler a Constituição, contudo, peço que pare um minuto e
pense no que ela significa.
Lembre que a
proteção de um sistema jurídico e a possibilidade de influenciar a vida
política dos vários níveis de sua comunidade foi conquistada a duras penas.
Sério, cabeças
rolaram, e ainda rolam, para que pudéssemos fazer isso. Humanize a luta
política e talvez você comece a entender porque gente como eu acha o exercício
de direitos um dever moral em memória àqueles que morreram para que os
tivéssemos.
Enfim, dramas
à parte, abra a Constituição Federal aqui. Já esclareço que ninguém
está lhe pedindo um parecer jurídico sobre uma questão de alta indagação; estou
lhe sugerindo que conheça a Constituição, e para isso não é necessária formação
em direito. Juro.
A linguagem
pode ser diferente daquela com que está acostumado, mas vou guiá-lo nesse seu
primeiro contato. Eu sei, prometi falarmos de política, mas, acredite, tudo
sobre o que estamos conversando tem a ver com política.
Este texto vai
se restringir aos primeiros artigos, que são quase poéticos (não estou sendo
sarcástico!) e que dão pano para bastante manga.
O artigo 1º
Logo no primeiro artigo, tem-se que "a
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito".
Veja que interessante: quando falamos em termos
nacionais, sempre nos referimos à União, que é literalmente a união de Estados,
Municípios e Distrito Federal (onde a sede da União fica, já que ela não teria
um território próprio), que são esferas federativas independentes.
O artigo 1º também traz a expressão "Estado
Democrático de Direito", que merece ser esmiuçada. Estado de Direito
significa que o poder político está subordinado a normas (direito), e
democrático, claro, é o adjetivo derivado de democracia, palavra de origem
grega composta pelos termos gregos “demos” e “kratos”, que significam,
respectivamente, povo e poder. Resumindo, o Brasil é um Estado em que o poder
político deriva do povo e é regido por normas objetivas.
Continuando, o parágrafo único do artigo 1º
ratifica o que disse até o momento e insere a forma como o poder político é
exercido:
"Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição."
Soberania popular, bebê, ou seja:
(i) o “poder”, o “sistema político”, “eles”, tudo isso
brota de nós: povo;
(ii) a participação política se dá indiretamente, por
meio de representantes eleitos, ou diretamente, como ocorre nos casos de
plebiscitos e referendos;
(iii) tudo está sujeito aos termos da Constituição.
Poxa, você poderia ter começado logo por aí, então. Sim,
poderia, mas não teria graça.
O artigo 2º
Sigamos. O art. 2º diz que são Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Não existe hierarquia entre eles, o que me permite
pensar que superestimar o Poder Executivo e subestimar os demais, tanto em suas
capacidades quanto em suas responsabilidades, é um tiro no pé – todos nós já
cometemos esse erro, acredite.
Assim como o Presidente da República não tem
competência para exigir a aprovação de determinada norma pelo Congresso
Nacional, este não pode se imiscuir em julgamentos técnicos pelo Supremo
Tribunal Federal, por exemplo. Cada um dos Poderes deve ficar em seus
respectivos quadrados e agir com eficiência em suas funções, em um sistema de
pesos e contrapesos que impede o acúmulo de um poder absoluto em qualquer um
deles.
A separação dos Poderes é um assunto extenso que
será tratado em um texto separado, mas, por ora, quero que você se acostume com
a ideia de que atuação política extrapola, e muito, a discussão de plano de
governo e definição do Presidente da República (e também do Governador e do
Prefeito, claro, mas me mantive no plano da União porque é do que o art. 2º
trata).
Pulando para
o artigo 5º, se for ler apenas um, que seja esse
Os artigos 3º e 4º tratam dos objetivos do país e
dos princípios que regem suas relações internacionais, respectivamente.
Interessantíssimos, mas assunto para um outro momento.
Estou ansioso para chegar na vedete da Constituição,
o famoso, belo (e tantas vezes desrespeitado) artigo 5º, que trata das
liberdades individuais. Se você já se cansou deste texto, que talvez seja mais
longo do que previa quando começou a ler sem rolar a tela até o final, aguente
pelo menos até o próximo parágrafo.
O artigo 5º é importante para sua vida, e, se você
quiser fazer o rebelde, ir contra a tudo o que eu disse neste artigo e ler um
único artigo da Constituição, que seja este artigo 5o.
As garantias individuais são sua proteção e ninguém
pode tirá-las de você. Basta estar vivo para tê-las, e algumas são até
aplicáveis a gente morta.
Ninguém, nem mesmo, e especialmente, o Estado, em
qualquer nível federativo, em qualquer Poder, pode desrespeitá-las. Conhecê-las
é sua arma contra arbitrariedades, sua afirmação como cidadão, sua chance
de melhorar seu julgamento e revisar suas atitudes e opiniões.
Nossos direitos
fundamentais de acordo com o artigo quinto. Conhece todos?
|
Nossos direitos fundamentais de acordo com o artigo
quinto. Conhece todos?
Pincemos algumas garantias que têm relação mais
clara com o pensamento político:
(i) Princípio da legalidade, segundo o
qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei".
Lei, aqui, deve ser entendida em sentido amplo:
Constituição Federal, Constituição Estadual, lei complementar, lei ordinária,
lei delegada, etc. É com base neste princípio que você pode se negar a cumprir
determinada ordem que não tenha respaldo legal, como, por exemplo, negar o
acesso da polícia a sua casa sem mandado judicial.
Ao mesmo tempo, é com base nele que você não tem o
direito de exigir de outras pessoas comportamentos de cunho meramente moral,
religiosos ou de boas maneiras (na verdade, nada impede de exigi-los, já que
isso não está prescrito em lei, mas você deve, pelo menos, suportar seu
descumprimento).
(ii) Direito de manifestação do pensamento, segundo o
qual "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato".
Essa vedação ao anonimato dá muita discussão – por
exemplo, usar máscaras torna um manifestante anônimo, ou seria uma expressão individual
de identidade política ou ideológica? A ideia nesse artigo é que a liberdade de
se manifestar caminha junto com a possível responsabilização por seus atos.
(iii) Liberdade de manifestação, que
garante "a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica
e de comunicação, independentemente de censura ou licença".
Portanto, você é livre para divulgar suas ideias,
opiniões e tudo o mais que você quiser. Esta liberdade, porém, não é uma carta
branca para sair bradando impropérios ou inventando boatos: nenhuma garantia
individual é absoluta, e seu exercício deve ser ponderado e limitado pelas
demais liberdades e proteções. Lembre que o cidadão é livre, mas também
responsável por seus atos.
(iv) Direito de receber informação de interesse particular, coletivo
ou geral dos órgãos públicos, salvo em caso de segurança da sociedade e do
Estado. Acesso à informação, meus caros: se o órgão é público, as informações
que tramitam dentro dele também devem ser.
(v) Direito de petição aos Poderes públicos em
defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.
Você tem o direito de peticionar diretamente às
autoridades políticas para reclamar ou denunciar ilegalidades. Talvez uma
petição individual se perca na barafunda burocrática tão comum de órgãos
públicos, mas este direito mobilizado pode se tornar um grande fator de pressão
pública. Um exemplo de que isso funciona foi a criação do Parque Augusta, em
São Paulo, que teve grande mobilização popular.
Como você vai perceber da leitura do artigo 5º, há
outros direitos que podem ser usados no contexto político, e todos eles são
cruciais para o exercício da cidadania plena. Ao se deparar, por exemplo, com o
inciso XII, que diz:
"É inviolável o sigilo da correspondência e
das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo,
no último caso, por ordem judicial."
Você pode se questionar sobre a prática banalizada
de obter informações de mensagens eletrônicas para formação de publicidade
direcionada. Ou, ainda, duvidar do caráter da mídia sensacionalista que não
hesita em rotular como bandidos pessoas que sequer foram julgadas, em completo
desrespeito ao princípio de que ninguém será considerado culpado até o trânsito
em julgado de sentença penal condenatória - o que aconteceu no caso da Escola Base
é exemplo do que o desrespeito à presunção de inocência pode causar.
A ideia deste texto, contudo, não é esgotar o
assunto e nem entrar em detalhes, mas instigar o cidadão a entrar em contato
com o coração (ou a alma?) do nosso país. Se chegar ao final do artigo 5°
inspirado, prossiga – talvez encontre bons argumentos para
reivindicar algo de seu chefe nos artigos seguintes.
Se não rolar, espera um pouquinho pelo próximo
texto, onde pretendo tratar especificamente dos direitos políticos previstos na
Constituição.
Nesse meio tempo, seria muito saudável conversarmos
e aprimorarmos conjuntamente nossas noções políticas. Deixem suas dúvidas e
críticas nos comentários para seguirmos.
* * *
Nota do editor: esse é o primeiro texto da série
"Para entender política", por meio da qual pretendemos
elucidar, de maneira apartidária, conceitos políticos básicos para que possamos
ter diálogos mais produtivos sobre esse tema tão importante. Afinal, é bem
difícil palpitar quando não sabemos do que estamos falando. Sugestões para a
série são extremamente bem-vindas.
publicado em 08 de Agosto de 2014, 09:28
VOCÊ ESTÁ NO PERCURSO:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!
Abração
Dag Vulpi