Ao
contrário de enfraquecer o Congresso Nacional, o decreto não fortalece o
Executivo em detrimento do Legislativo e ajuda a fomentar os mecanismos
nacionais de participação.
Por
Thamy Pogrebinschi*
Ao
contrário de ameaçar a democracia representativa e enfraquecer o Congresso
Nacional, como se tem alardeado, o Sistema Nacional de Participação Social
(SNPS) tende apenas a revigorar a primeira e a fortalecer o segundo. Essas são
duas das principais conclusões de diversas pesquisas que realizei nos últimos
anos a respeito do impacto dos mecanismos nacionais de participação no
Congresso Nacional. Os dados revelam que representação e participação não
competem entre si, porém reforçam-se mutuamente. O Congresso Nacional está mais
em sintonia com os mecanismos participativos do que parecem supor os próprios
parlamentares que agora buscam sustar a aplicação do Decreto Presidencial
8243/14.
Detenhamo-nos no impacto do maior e mais antigo dos mecanismos de participação social abarcados pelo SNPS, as conferências nacionais. Assim como a maior parte dos mecanismos de participação mencionados no decreto, as conferências nacionais não foram criadas agora. Ao contrário, foram instituídas em 1941, no âmbito da reforma do então Ministério da Educação e Saúde Pública, conduzida pelo então ministro Gustavo Capanema. Com seus objetivos definidos pela Lei 370/37, a conferências nacionais destinam-se, desde então, a “dar a conhecer ao governo federal as necessidades e demandas locais” e “orientar o governo federal na execução de políticas locais”. Como necessidades e demandas locais não são privilégios de técnicos e administradores, as conferências nacionais permitem, já há algumas décadas, que os próprios cidadãos tenham voz no processo de formulação e execução de planos nacionais de políticas.
Quarenta
e duas conferências nacionais foram realizadas no Brasil entre 1941 e 2002,
antes da chegada do Partido dos Trabalhadores ao governo federal. Cerca de
metade dessas, 20 conferências, foram realizadas pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso. Vê-se que o PSDB agora busca invalidar o decreto presidencial
que busca regulamentar um mecanismo participativo que ele próprio resgatou da
Era Vargas e ajudou a impulsionar. O PT simplesmente deu continuidade e
preocupou-se em regulamentar e institucionalizar um mecanismo que, aliás,
também fora usado pelos governos Collor e Itamar.
Tal
continuidade reflete-se também nas áreas de políticas públicas debatidas com a
sociedade por meio das conferências nacionais. Foi o PSDB, por exemplo, que
convocou a primeira conferência nacional de direitos humanos, em 1996, e a
realizou sete vezes no total em seus oito anos de mandato, ou seja, quase
anualmente. O PNDH-3, que agora com tanto pasmo é relembrado e associado ao
decreto 8243/14, foi produto da 11ª edição de uma conferência nacional que o
PSDB – e não o PT – criou e institucionalizou.
As
conferências nacionais usualmente consistem em um processo que envolve etapas
locais inteiramente abertas à população, seguidas de etapas estaduais em todas
as unidades federativas, culminando na etapa nacional, na qual estão presentes
delegados da sociedade civil e do governo eleitos nas etapas anteriores. Em
regra, de cada uma dessas etapas resulta um conjunto de deliberações, que são
sistematizadas e rediscutidas, até chegar-se às deliberações finais, as quais
fornecem inputs que são absorvidos não apenas pelo Poder Executivo, como também
– e bastante – pelo Poder Legislativo. Cruzando-se todos os atos legislativos
do Congresso Nacional com as deliberações finais das conferências nacionais no
período entre 2003 e 2010, vê-se que as mesmas impactam positivamente de forma
não desprezível na agenda do Legislativo. Nada menos do que 1477 projetos de
lei, 125 leis ordinárias e complementares e 6 emendas constitucionais aprovadas
no período são inteiramente convergentes com as demandas finais das conferências
nacionais. Analisando-se esses dados mais profundamente, algumas conclusões
fazem-se necessárias.
Primeiro, se os resultados dos mecanismos nacionais
de participação são aproveitados por algum partido, esse não é o PT
isoladamente. Os partidos de oposição propuseram 31% dos atos legislativos
(projetos de leis, leis ou emendas constitucionais) tramitados no Congresso que
são convergentes com as deliberações das conferências nacionais realizadas no
período. O PSDB e o DEM/PFL são juntos autores de 23,8% das respostas
legislativas convergentes com os resultados das conferências nacionais. Isso
equivale a praticamente o mesmo volume de atos legislativos propostos pelo PT,
25,8% - o que desmente a acusação de que o governo usa os mecanismos
participativos para impor suas políticas. Além disso, apenas 40% dos atos
legislativos divergentes das recomendações das conferências nacionais foram
propostos pelos partidos de oposição. A base governista no Congresso apresentou
muito maior divergência (60%), demonstrando que os cidadãos e organizações da
sociedade civil que participam do mais abrangente mecanismo de participação do
país não são cooptados nem manipulados pelo PT ou pelo governo. Há pluralidade,
tanto na participação da sociedade civil, como na representação do Congresso.
Segundo, os mecanismos nacionais de participação não
fortalecem o Executivo em detrimento do Legislativo. Ao contrário, eles
tendem a possibilitar que o Legislativo recupere o protagonismo do processo
legislativo. Sabe-se, por meio de consagrados estudos dos cientistas políticos
Argelina Figueiredo (IESP-UERJ) e Fernando Limongi (USP), que cerca de 85% de
toda legislação aprovada pelo Congresso Nacional desde 1988 tem iniciativa no
Poder Executivo. Isso se deve, no contexto do presidencialismo de
coalizão brasileiro, a certas disposições institucionais determinadas pela
Constituição de 1988 e pelos regimentos internos do Poder Legislativo. Minhas
pesquisas revelam, no entanto, que 56% da legislação aprovada no Congresso convergente
com as recomendações das conferências nacionais têm iniciativa no próprio Poder
Legislativo – ou seja, bem mais do que os cerca de 15% das iniciativas que lhe
cabem no volume total da legislação promulgada desde 1988. Esses dados indicam
que, na medida em que a agenda do Legislativo converge com a agenda da
sociedade civil, o Congresso tem bem mais chances de ver aprovados os seus
projetos de lei.
Terceiro, os mecanismos nacionais de participação,
além de não enfraquecerem a representação eleitoral, podem contribuir para
reforçá-la. Nas eleições de 2010, apenas 42.709 votos foram necessários
para eleger um deputado federal em São Paulo, o maior eleitorado do país. No
Rio de Janeiro, segundo maior colégio eleitoral, bastaram 13.016 votos para
enviar um representante para o Congresso. Em 2011, dois milhões de pessoas
participaram das oito conferências nacionais realizadas no Brasil. Apenas uma
delas, a conferência de saúde, contou com etapas locais em 4.375 dos 5.570
municípios brasileiros, reunindo cerca de 600 mil pessoas. Se o Congresso tem
mais chances de ver seus projetos de leis aprovados quando os mesmos são
convergentes com as deliberações das conferências nacionais (pois, ao que tudo
indica, as mesmas convergem com as preferências do eleitor médio), então estas
são, no mínimo, uma fonte de informação valiosa para os parlamentares – supondo
que eles querem melhor representar e aumentar suas chances de se reeleger. As
conferências possibilitam, em particular em suas etapas municipais, que os representantes
tenham a chance de ouvir o que os seus eleitores – atuais e potenciais –
normalmente apenas podem lhe dizer de quatro em quatro anos. A participação
social pode, de diferentes maneiras, fortalecer a representação política.
Quarto, os mecanismos nacionais de participação, ao
contrário de criar um sistema político novo, ampliam a democracia
representativa. As conferências nacionais diversificam a agenda do
Congresso Nacional, impulsionando e alargando a sua atividade legislativa. O
número de projetos de leis sobre áreas de políticas novas como, por exemplo,
minorias, cidades e segurança alimentar, parece aumentar em consonância com a
ocorrência de conferências nacionais que tratam destes temas. Algumas daquelas
que são consideradas grandes conquistas dos mecanismos participativos o são
justamente por terem logrado converter em lei, votada pelo Legislativo, o que
governo e sociedade debateram juntos nas conferências e também nos conselhos
nacionais: a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional, o Estatuto da Igualdade
Racial, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Juventude, entre outros. No que
tange à políticas para minorias historicamente sub-representadas no Poder
Legislativo (como, por exemplo, mulheres, pessoas com deficiência, jovens,
índios e negros), o número de atos legislativos do Congresso convergentes com
as deliberações das conferências nacionais destinadas a essas novas áreas de
políticas públicas é ainda mais expressivo, alcançando cerca de 25% do total.
Mecanismos participativos ajudam as instituições representativas a resolver
problemas de exclusão política – os quais, devido a sua própria natureza
agregativa, sistemas eleitorais não podem sanar. E não há democracia
representativa enquanto expressão do poder da maioria sem que se proteja – e
represente – as minorias.
Que
o Congresso Nacional não cometa o erro de sustar o Decreto 8243/14, perdendo
uma importante oportunidade de fortalecer-se e aprofundar a democracia
brasileira.
*Thamy
Pogrebinschi é pesquisadora sênior do WZB Berlin Social Science Center e
professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (IESP-UERJ),
onde coordena o Laboratório de Estudos sobre a Democracia (LED)
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