Em centros de estudos, universidades e
sedes de governo de todos os cantos, o assunto do momento é a desigualdade
social.
São Paulo - Se a história pode servir de baliza,
não há dúvida: a busca pela igualdade total de renda é completamente insana.
Não há exemplo de povo que tenha evoluído ao instituir um modelo de remuneração desligado do
esforço, da ambição e do talento individual. Os países da esfera comunista
tiveram sete décadas para provar que seu modelo poderia funcionar.
Em 70 anos, nem um único produto de
consumo de sucesso saiu de trás da Cortina de Ferro. Quando o Muro de Berlim
caiu, em 1989, os alemães-orientais invadiram as estradas do lado ocidental com
seus Trabant, carrinhos com motor em dois tempos e velocidade máxima de 90
quilômetros por hora.
Muitos desses Trabi, como eram chamados
carinhosamente, foram simplesmente abandonados nas ruas.
Mas nem por isso o polo oposto — uma
sociedade marcada pela disparidade extrema — não merece repulsa semelhante. A
opulência de uns pode ser um estímulo poderoso às massas, desde que a maioria
não esteja presa em um círculo de miséria ou se considere fora do jogo.
Se no século 20 cabia ao comunismo
comprovar sua viabilidade, no século 21 é o capitalismo que está sob
escrutínio. Não pela capacidade de gerar riqueza, bem entendido. Vale aqui um
paralelo à famosa frase do ex-premiê inglês Winston Churchill sobre a
democracia: o capitalismo é o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros.
Ninguém com um pingo de juízo duvida de
sua eficiência. O ponto é outro. O que, sim, está sendo cada vez mais debatido
é a forma como a renda gerada é distribuída na sociedade. A pergunta de nossos
tempos: por que o capitalismo é tão injusto? Por que perseguimos há mais de 200
anos o ideal de uma sociedade menos desigual — e continuamos falhando
miseravelmente?
Uma mostra cabal de como o tema anda
mexendo com corações e mentes é o que se passou na vida do economista francês
Thomas Piketty nas últimas semanas. Até recentemente, Piketty era apenas um
professor e pesquisador da Paris School of Economics virtualmente desconhecido
mesmo entre seus pares.
Quando EXAME o entrevistou, em março,
quase ninguém tinha ouvido falar de seu novo livro, O Capital no Século 21
(com previsão de lançamento no Brasil para este ano). Mas o fenômeno Piketty
estava prestes a estourar. Ao chegar às livrarias americanas, no mesmo mês, o
livro revelou-se um estrondoso sucesso.
A obra, um calhamaço de quase 700 páginas,
continua vendendo a uma média de quase 200 cópias por hora. A editora, que já
teve problemas para dar conta da demanda, está prestes a lançar mais uma edição
de capa dura. Até o fim de maio, os direitos de publicação tinham sido
negociados para 27 países — talvez o mais improvável best-seller de todos os
tempos.
Piketty obviamente renega a volta à
aventura soviética. Embora faça já no título uma clara referência à obra de
Karl Marx, o francês tem sido o grande assunto do momento por três outros motivos.
Primeiro, porque faz um longo e inédito levantamento sobre a concentração de
renda e de riqueza — principalmente nos Estados Unidos, na França, na
Grã-Bretanha, na Alemanha e no Japão.
Algumas séries históricas voltam mais
de 100 anos. Segundo, porque chega ao que acredita ser uma nova lei do
capitalismo: no longuíssimo prazo, o retorno sobre o capital, o que inclui
propriedades, investimentos, terras e máquinas, é maior do que o da economia.
Em outras palavras, o capitalismo teria
uma tendência inevitável à concentração. Por último, o francês, seguindo uma
linha altamente polêmica, arrisca um remédio: a criação de um imposto global
sobre a riqueza.
Do vencedor do Nobel Robert Solow, de
89 anos, criador da teoria que explica o crescimento econômico, ao príncipe
Charles, todos se sentiram motivados a dizer algo sobre as ideias de Piketty.
Nos principais centros de pesquisa conservadores de Washington, onde até pouco
tempo a palavra desigualdade era tida quase como um tabu, não se fala de outra
coisa.
O francês virou o economista mais pop
do momento. Mais recentemente, ele foi acusado pelo jornal inglês Financial
Times de fazer barbeiragens na coleta de dados, de ter feito arredondamentos
sem critério e, pior, de não ter base estatística para bancar seu diagnóstico
do capitalismo.
“Não sei se meus críticos estão sendo
justos, mas tudo bem. Coloquei todos os dados em um site para que pudéssemos
ter um debate aberto”, disse Piketty a EXAME, no fim de maio.
A discussão sobre a robustez de parte
dos dados e a validade de sua teoria ainda deverão dar muito pano para manga.
Mas uma coisa ele já conseguiu: ajudou a colocar o tema da desigualdade no topo
da agenda global.
Os economistas tentam há décadas
entender o fenômeno da distribuição de renda. Por muito tempo, a grande
referência foi uma hipótese levantada na década de 50 pelo Nobel Simon Kuznets,
segundo a qual a desigualdade tenderia a acompanhar o grau de desenvolvimento
dos países.
Nas sociedades pré-industriais, dizia
Kuznets, a desigualdade é baixa porque essencialmente todos são pobres. Com a
industrialização, parte da população segue para as cidades, passa a ganhar mais
e se distancia socialmente em relação a quem ficou no campo.
À medida que as economias vão se
desenvolvendo, ainda segundo Kuznets, os benefícios do crescimento se espalham
e a desigualdade volta a cair — mas agora com um bem-estar generalizado. A tese
serviu para explicar o comportamento da disparidade americana no pós-guerra — e
assim ganhou ares de verdade.
O economista Edmar Bacha, criador da
expressão “Belíndia” (o Brasil seria a mescla da pequena e rica Bélgica cercada
pela gigantesca e paupérrima Índia), acompanhou de perto esse debate.
Ele utilizou a imagem da Belíndia num
congresso internacional nos anos 70 para argumentar que, no caso da América
Latina, os sinais eram de que a redução das distâncias ainda iria demorar muito
tempo para acontecer. “Isso era o máximo que se dizia. Naquela época, não
questionávamos a curva de Kuznets”, diz Bacha.
Mais recentemente, porém, a teoria de
Kuznets começou a ser colocada em xeque. A distribuição de renda nos países
ricos, após muitos anos de queda, voltou a crescer nos anos 80.
“Agora, Piketty jogou a pá de cal na
hipótese do Kuznets”, afirma o brasileiro Francisco Ferreira, economista-chefe
para a África no Banco Mundial e autor de vários trabalhos sobre o tema. Ou
seja, o tempo, por si só, não vai resolver o problema da disparidade.
O capitalismo, é inegável, tem se
provado uma poderosa arma para combater a pobreza. Nas últimas três décadas, a
população mundial cresceu 50%, mas o número de pobres caiu de 2,6 bilhões para
2,5 bilhões. O principal responsável por essa queda foi a China.
Desde que o Partido Comunista Chinês
decidiu abraçar a economia de mercado, 600 milhões de pessoas saíram da
pobreza, algo nunca visto na história da humanidade. Na ponta oposta, no
entanto, os ricos estão ganhando cada vez mais. Por contraditório que pareça,
essa inédita redução da pobreza tem acontecido numa época de elevação
indiscriminada das distâncias.
Um estudo recente da OCDE, grupo que
reúne as nações mais ricas, ilustra bem esse ponto. O trabalho examina uma
série histórica bem menos ambiciosa do que a de Piketty.
Foca no que aconteceu desde meados da
década de 90, mas conclui o mesmo: a desigualdade vem subindo nos Estados
Unidos — e também no Canadá, na Alemanha, na França, no Japão, na China, na
Índia e na África do Sul.
“Na quase totalidade dos países ricos e
na maioria dos em desenvolvimento, a maré elevou todos os barcos nas últimas
décadas. Mas os iates subiram mais do que os barcos menores”, diz o sérvio
Branko Milanovic, que foi economista-chefe do departamento de pesquisa do Banco
Mundial por 22 anos e, ao lado de Piketty, é considerado um dos maiores
especialistas no assunto.
Entre as grandes economias, o Brasil
desponta como uma das raras e felizes exceções. Por aqui, a pobreza e a
desigualdade caíram ao mesmo tempo — embora o país ainda seja uma das nações
mais díspares do mundo.
Qual, afinal, é o problema?
Como explicar as duas faces do fenômeno
— a queda na pobreza e o aumento das disparidades? A linha mais aceita liga
ambos os fatos à globalização econômica, que ganhou força nos anos 90.
De lá para cá, os empregos industriais
mais simples migraram dos países ricos para a Ásia, deixando trabalhadores com
baixa qualificação sem emprego nos Estados Unidos e na Europa e fazendo a festa
de operários humildes do outro lado do mundo.
A China se tornou a fábrica do mundo — e a fome
de sua economia por matérias-primas espalhou as benesses do crescimento para a
América Latina e partes da África. A pobreza, assim, caiu acentuadamente em
dezenas de países. No polo oposto, a globalização e as novas tecnologias
acabaram beneficiando também os trabalhadores mais qualificados.
A distância entre a elite da força de
trabalho e a massa começou a crescer ano a ano. Hoje, o 1% mais rico dos
Estados Unidos, para ficar no exemplo da maior economia do mundo, absorve quase
metade do crescimento total da renda. É isso o que despertou a ira de
movimentos como o Ocupe Wall Street, que diz representar os 99% restantes.
Vale lembrar o que começou a se passar
dentro das grandes empresas, motores das principais economias. Há, também aí,
um aumento brutal das distâncias. Na década de 50, os presidentes das maiores
empresas americanas embolsavam 20 vezes mais do que a média do mercado.
Hoje, ganham 200 vezes mais. Mas há
casos extremos. Mark Parker, presidente da fabricante de material esportivo
Nike, leva para casa um salário mais de 1 000 vezes maior do que a média da
companhia. De certa forma, esses executivos passaram a ser tratados como
celebridades do mundo do showbiz.
“Mudanças na política de remuneração
para os altos executivos são, sem dúvida, um dos fatores do aumento da
desigualdade”, diz Michael Förster, chefe da divisão social da OCDE.
Achar que o fato de as pessoas estarem
melhorando de vida numa escala global encerra toda a questão é um equívoco. A
partir de certo ponto, a desigualdade se transforma num problema econômico
grave. Ela pode ser comparada ao colesterol: existe a boa e a ruim. A
desigualdade positiva é aquela que incentiva as pessoas a estudar com
dedicação, trabalhar e empreender.
Histórias inspiradoras de
empreendedores podem ter um efeito multiplicador sobre milhões de pessoas. A
desigualdade negativa é a que impede a mobilidade social. Em situações assim, o
status social dos pais é determinante sobre o futuro dos filhos.
Por ter uma educação melhor, os filhos
dos mais ricos ficam com os melhores empregos — como se fossem lugares cativos.
Os filhos dos pobres acabam, na melhor das hipóteses, brigando pelos empregos
que sobram.
Colocado de outra forma, países com
mais disparidade de renda costumam ser os mais desiguais em termos de
oportunidades. E isso é moralmente indefensável. Toda a engenhosidade do
sistema capitalista assenta-se na noção do mérito. Se isso dá lugar a um jogo
de cartas marcadas, a base moral se esvai.
Por isso mesmo, um número crescente de
pessoas parece querer resgatar ideais dos homens das Luzes. Pensadores
como o francês Denis Diderot, ao longo do século 18, engajaram-se na defesa que
todos tinham de ter as mesmas chances de participar da vida econômica e
política — um objetivo incrivelmente atual.
“Se uma criança passar a infância
morando numa casa enorme e andando num carro de luxo porque seu pai e sua mãe
são bem-sucedidos, não há o que dizer. Do ponto de vista da sociedade como um
todo, o problema é se o dinheiro da família conseguir dar uma grande vantagem
educacional a essa criança”, diz Michael J. Sandel, professor de filosofia da
Universidade Harvard e autor do influente O Que o Dinheiro Não Compra — Os
Limites Morais do Mercado. E é exatamente essa a discussão de hoje.
Nos Estados Unidos, quem nasce na base
da pirâmide social tem cerca de 40% de chance de permanecer por lá, um número
alto comparado aos 25% da Dinamarca. É daí que alguns economistas dizem, em tom
de brincadeira, que se alguém quiser viver o sonho americano é melhor mudar
para Copenhague.
Numa palestra sobre capitalismo
inclusivo em Londres na última semana de maio, o economista Larry Summers,
ex-assessor do presidente americano, Barack Obama, e crítico de Piketty,
enfatizou a necessidade de os governos darem atenção redobrada à qualidade de
serviços públicos, como saúde e educação.
No último discurso sobre o Estado da
União, no começo do ano, Obama citou a palavra “oportunidade” dez vezes. Falou
sobre programas para melhorar a qualidade das escolas públicas e aumentar o
acesso às universidades.
Mas há mais. A desigualdade de
oportunidades é não apenas injusta — ela gera ineficiências do ponto de vista
econômico. Em economias nessa condição, há um desperdício enorme do talento de
parte da população, gente que poderia estar produzindo muito mais.
Uma hipótese cada vez mais aceita entre
os economistas é que países mais desiguais tendem, no longo prazo, a ter taxas
de crescimento menores. O balanço dos estudos feitos até agora aponta nessa
direção. Redistribuição, Desigualdade e Crescimento, publicado em fevereiro por
três economistas do FMI, é o último deles.
O trabalho faz uma análise de 153
países por várias décadas e conclui que os menos desiguais registram uma
elevação maior do PIB.
Como o estudo usa pesquisas
domiciliares feitas de forma diferente em vários países, o FMI toma o cuidado
de não recomendar suas conclusões como base para a adoção de políticas
públicas. “Apesar dos problemas, acreditamos que os dados estejam no caminho
certo”, diz Jonathan Ostry, um dos autores.
Os desafios brasileiros
No Brasil, as limitações que a
desigualdade de renda impõe ao crescimento econômico estão evidentes na casa de
toda família que pode pagar por uma empregada doméstica.
Mesmo com todo o avanço social
registrado desde 1995, e de forma mais dramática a partir de 2003, os filhos de
médicos, advogados, engenheiros e administradores têm 12 vezes mais chances de
ser médico, advogado, engenheiro e administrador do que o filho da empregada
doméstica.
Já na largada, Pietro, de 1 ano, filho
de Dora Santos, arrumadeira numa casa de São Paulo, sai em desvantagem em
relação a Nina, com exatamente a mesma idade, filha da advogada Sabrina
Beltrame, também da capital paulista.
Num ranking organizado pelo Banco
Mundial com 35 países de Europa, África e América Latina para avaliar a
igualdade de oportunidades entre seus cidadãos, o Brasil aparece em penúltimo
lugar.
“Fomos um dos poucos países que
melhoraram a distribuição de renda nos últimos anos, mas se quisermos continuar
avançando teremos de equalizar as oportunidades”, diz Armínio
Fraga, ex-presidente do Banco Central que tem
aconselhado o senador Aécio
Neves, pré-candidato doPSDB à Presidência da República.
Uma das raras unanimidades entre os
economistas mais iluminados da oposição e do PT é a conclusão de que será
necessário mudar o foco da política social. Nos últimos anos, o Brasil
conseguiu progredir por uma feliz conjunção de fatores. Milhões de jovens
chegaram ao mercado de trabalho com o diploma do ensino médio.
Seguindo a lei de oferta e demanda,
eles acabaram baixando a diferença salarial em relação aos que só terminaram o
fundamental. Ao mesmo tempo, o crescimento do setor de serviços elevou a
procura por trabalhadores menos qualificados, o que aumentou os salários. Bem
na base da pirâmide social, o Bolsa
Família foi
importante para combater a pobreza extrema.
Com crescimento econômico, as empresas
conseguiram absorver o aumento do salário mínimo sem provocar demissão em
massa. De 1995 a 2012, o valor, descontada a inflação, dobrou.
Agora, com a economia rodando numa
velocidade menor, a situação do mercado de trabalho deverá mudar. O país
continua com uma taxa de desocupação próxima do pleno emprego (4,9% em abril),
mas ninguém arrisca dizer quanto tempo isso vai durar.
“O salário
mínimo não
pode seguir subindo de forma indefinida sem que se tenha sustentação em ganhos
de produtividade”, diz o economista Ricardo Paes de Barros, o maior
especialista brasileiro em questões sociais e subsecretário da Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência.
Produtividade é um daqueles conceitos com várias facetas. Quando refere-se à
economia como um todo, inclui temas como melhoria da infraestrutura e do
ambiente de negócios, duas áreas em que é possível avançar em pouco tempo (mas
nas quais o país tem andado a passos de tartaruga).
Voltada ao trabalhador, o aumento da
produtividade envolve qualificação, o que costuma demorar mais a maturar. “Se
não melhorarmos a qualidade da educação pública de uma vez por todas, daqui a
duas décadas estaremos discutindo os mesmos temas de hoje”, diz Naercio Menezes
Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas da escola de negócios
Insper, de São Paulo.
Foco na primeira infância
O conceito do que se entende por
educação tem, felizmente, se ampliado no Brasil. As ideias do americano James
Heckman, Prêmio Nobel de Economia, estão ganhando cada vez
mais seguidores.
Heckman mostra que a melhor arma contra
a desigualdade social e a baixa produtividade é investir maciçamente em
crianças já nos três primeiros anos de vida, período crucial para melhorar as
habilidades cognitivas e socioemocionais. Educação infantil não se resume à
construção de creches.
Inclui o trabalho de agentes que
visitam as famílias e dão orientação aos pais, como já acontece em 260 cidades
do Rio Grande do Sul. “É preciso reduzir a defasagem que crianças mais pobres
apresentam quando chegam ao ensino fundamental”, diz Marcos Lisboa,
vice-presidente do Insper.
De certa forma, o Brasil está longe da
polêmica criada por Piketty. O francês defende o combate da desigualdade pelo
lado dos impostos. A visão que parece predominar no Brasil é a necessidade de
melhorar a distribuição da renda focando gastos públicos.
As chances de sucesso de Pietro, filho
de Dora, não mudariam com o aumento do imposto sobre heranças, uma medida de
apelo populista de difícil aplicação. Seu futuro depende da capacidade do
Estado brasileiro de garantir uma educação pública de altíssima qualidade. Uma
última observação a pedido de Dora: ela quer colocar Pietro numa creche. Mas
não encontra vaga.
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