quarta-feira, 5 de março de 2014

O silêncio das instituições sobre as violações do STF


No texto publicado na semana passada, nesta coluna, sustentei que não existe um direito fundamental à prática do preconceito.

Essa frase gera algumas dúvidas. Afinal, sabe-se que nossa Constituição Federal é excessivamente abrangente, cuidando de praticamente todos os aspectos da vida das pessoas, não se cingindo apenas ao modo como se portam com o Estado, mas, também, no Estado.
Seria natural supor, assim, que nada há na vida que esteja alheio à Constituição.[1] Isso é um erro. Evidentemente, nada no sistema jurídico escapa da norma constitucional — ou, se se preferir, qualquer texto legal infraconstitucional deve ser “testado” à luz da Constituição, por ocasião de sua interpretação/aplicação.[2] Mas o mesmo não vale para os demais aspectos da vida. O fato de se sustentar que o direito à busca da felicidade, por exemplo, encontra-se na Constituição não autoriza dizer que qualquer infortúnio de nossas vidas é inconstitucional. Ou, olhando-se de outro modo, nem tudo que as pessoas desejam fazer está previsto na Constituição como direito fundamental — inclusive o direito de fazer piadas preconceituosas, como antes afirmei nesta coluna.
Isso vale para os direitos fundamentais, como também para aquilo que se convencionou chamar de “judicialização da política”. É certo que os atos da Administração não escapam do controle do Poder Judiciário. Isso não significa, contudo, que quaisquer escolhas realizadas pelo administrador sempre poderão ser reprovadas por um juiz. Uma escolha política pode não ter sido tão boa, mas nem por isso será, necessariamente, inconstitucional.
A Constituição não nos garante o direito de fazer qualquer bobagem, e também não considera qualquer estupidez inconstitucional. Parafraseando o que disse Antonin Scalia, um dos justices da Suprema Corte norte-americana, é possível dizer que muitas coisas estúpidas não são inconstitucionais.
O uso banal da norma constitucional só serve para enfraquecê-la, o que, ao fim e ao cabo, acaba fazendo com que ela não seja aplicada aos casos em que, realmente, deveria sê-lo.
Veja-se, por exemplo, a possibilidade de o juiz, ao julgar determinado ato criminoso, aumentar a pena com o intuito de evitar a prescrição. A questão foi recentemente suscitada em julgamento realizado pelo Supremo (cf. debate realizado entre os ministros aqui, a partir de 50m26s).
As balizas a serem observadas pelo magistrado na fixação da pena, acorde com o artigo 5º, XLVI da Constituição, encontram-se no artigo 59 do Código Penal, que não prevê que o juiz a aumente para evitar a prescrição.
Ainda que sua prescrição seja indesejável, não se admite que, para evitá-la, recorra o magistrado à exacerbação da pena.[3]
Voltamos, aqui, a tema recorrente nesta coluna: a facilidade que temos em justificar práticas erradas, encontrando argumentos para que sejam consideradas “corretas” ou “toleradas” (cf. aqui e aqui). Ora, se levamos a sério a Constituição, não podemos agravar a pena com o intuito de evitar a prescrição.
É preocupante que a possibilidade de se fazer uso de tal estratégia esteja sendo, de algum modo, afirmada no Supremo Tribunal Federal como uma prática que seria legítima.[4] Preocupa-me sobremaneira, contudo, o silêncio das instituições que deveriam criticar tal prática — talvez seja efeito do Carnaval...
Em casos assim, em que elementos essenciais da democracia são colocados em risco, cumpre não apenas à doutrina fazer o exame severo dos rumos seguidos pela jurisprudência, mas também, individualmente ou por suas associações, a advogados, membros do Ministério Público e também aos magistrados, a começar pelos próprios Ministros do Supremo.
Nossa facilidade em defender qualquer bobagem à luz da Constituição só é superada por nossa indolência diante dos casos em que ela é violada. 

[1] Lembro-me de, há poucos anos, durante um desses jantares realizados após congressos jurídicos, um dos palestrantes ter afirmado, após notar que o prato que lhe fora servido não se encontrava a contento: “Isso fere a dignidade da pessoa humana!” Todos riram. Evidentemente, o autor da frase não acreditava nisso. Mas a brincadeira sintetiza muito do que se passa entre nós: é disseminada a idéia de que tudo está na Constituição, e de que qualquer fato sempre estará de acordo ou contra a norma constitucional, mas nunca será alheio à Constituição.
[2] Ocupo-me da temática na obra Constituição Federal comentada, Ed. Revista dos Tribunais, 3.ª ed. no prelo.
[3] Nesse sentido: “É certo que todas as funções processuais penais são de inescondível relevância, mas a de denunciar, a de aceitar a denúncia, a de restringir prematuramente a liberdade da pessoa, a de julgar a lide penal e a de dosimetrar a sanção imposta exigem específico trabalho intelectivo de esmerada elaboração, por não se tratar de atos burocráticos de simples ou fácil exercício, mas sim de atividade complexa, em razão de percutirem altos valores morais e culturais subjetivos a que o sistema de Direito confere incontornável proteção. Não se mostra aceitável que para se evitar a indesejável incidência da prescrição penal se adote, sem pertinente e objetiva fundamentação (art. 59 do CPB), a exacerbação para além do mínimo legal da quantidade da pena imposta ao réu primário, de bons antecedentes e sem registro de qualquer nota desfavorável à sua conduta social, como expressamente proclamado na sentença condenatória e no acórdão que a confirmou. Ao dosimetrar a sanção, o Juiz exerce atividade em que se exige incontornavelmente exaustiva e específica demonstração das razões pelas quais o piso quantitativo da pena aplicada deve ser ultrapassado; essas razões têm de ser objetivas e diretamente decorrentes da prova contextualizada no processo, não as substituindo as ponderações judiciais – por mais legítimas ou relevantes que sejam – sobre a necessidade de se reprimir a prática de ilícitos e afastar a extinção da punibilidade por força da prescrição” (STJ, HC 115611/CE, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, j. 05/05/2009).

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Dag Vulpi

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