As eleições
nos custam R$ 2 bilhões, é até pouca coisa. Mas a manipulação permitida nos
custa centenas de bilhões por meio dos mecanismos que se tornaram legais ou de
difícil controle judiciário. A deformação do sistema tributário desonera os
muito ricos e fragiliza o setor público, reproduzindo a desigualdade
Por Ladislau
Dowbor
O Brasil não é
pobre. Mas seus recursos são frequentemente mal utilizados, ou desviados,
vazando pelas numerosas brechas, legais ou ilegais, quando poderiam ser
produtivos. E não se trata de, como sempre, culpar o governo: são articulações
públicas e privadas que deformam o processo decisório. Seguir o dinheiro ajuda
a entender a dinâmica tanto deste como das deformações políticas. Cada um de
nós conhece alguns aspectos e suspeita de outros. Mas vale a pena descrever os
principais mecanismos e ver como se articulam.
A
compra das eleições
Os grandes
vazamentos não se dão, de forma geral, por meios ilegais, pois são praticados
por grupos suficientemente poderosos para adaptar a legalidade aos seus
interesses. O ponto de partida, portanto, está na apropriação da máquina que
faz as leis. No Brasil, a lei que libera o financiamento das campanhas por
interesses privados é de 1997.1 Quanto mais cara é a campanha, mais o
processo é dominado por grandes financiamentos corporativos e mais a política
se vê colonizada. O resultado é a erosão da democracia e custos muito mais
elevados para todos, já que os gastos com as campanhas são repassados para o
público por meio dos preços. Nos Estados Unidos, onde um sistema semelhante foi
instalado em 2010, Hazel Henderson comenta: “Temos o melhor Congresso que o
dinheiro pode comprar”.
Os grupos
econômicos podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que representa muito
dinheiro. Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno Speck, respectivamente
da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os recursos empresariais ocupam o
primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais
brasileiras. Em 2010, por exemplo, corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2
bilhões, de todo o dinheiro aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior
Eleitoral).”2
O custo das
campanhas é até, em termos relativos, um mal menor se comparado aos custos de
uma política estruturalmente deformada. Na realidade, é um desencadeador de
deformações. A representação desequilibrada gerou um sistema tributário que
onera proporcionalmente os mais pobres, levando à reprodução da desigualdade.
Criou-se também uma cultura de superfaturamento de obras que a colusão entre
políticos e grandes empreiteiras permite. Mais grave ainda, deforma-se o uso
final dos recursos, por exemplo, com priorização do transporte individual nas
grandes cidades ou do transporte rodoviário para transporte de carga, e assim
por diante. E, em termos políticos, o sistema corrói o processo democrático ao
gerar uma perda de confiança popular na política em geral.
O sistema
gerou sua própria legalidade. Em 1997, transformou-se o poder financeiro em
direito − o direito de influenciar as leis, às quais seremos todos submetidos.
Ético mesmo é reformular o sistema e acompanhar os países que evoluíram para
regras do jogo mais inteligentes e limitaram drasticamente o financiamento
corporativo das campanhas.
A
armadilha da dívida pública
Acostumamo-nos
a que tipicamente 5% de nosso PIB seja desviado via governo para intermediários
financeiros, sem que produzam nada. Pelo contrário, desviam-se os recursos do
investimento produtivo para a aplicação financeira. Para cobrir os juros sobre
a dívida, o governo FHC elevou a carga tributária de 26% para 32% do PIB. De
algum lugar tinha de vir o dinheiro.
No momento em
que Lula assumiu o governo, em 2003, a taxa Selic estava em 24,5%. Em junho de
2002, a dívida pública tinha chegado a 60% do PIB; hoje está mais próxima de
35%, e os juros pagos sobre a dívida baixaram para menos de 10%, mas o estoque
da dívida é maior. Foi fácil abrir a torneira, fechá-la é muito mais
complicado. Em comparação, a taxa oficial de juros praticada internacionalmente
é da ordem de 0,5% a 2%.
A partir do
governo Lula, o sistema foi sendo gradualmente controlado. Ainda assim, é uma
transferência de dinheiro público para não produtores que se conta, como ordem
de grandeza, em algo como R$ 150 bilhões por ano. É um sistema legal conseguido
por meio do apoio político comprado com dinheiro corporativo e repassado ao
consumidor nos preços que paga. Para os grupos que vivem de renda financeira, e
não de produção, em vez de ir contra a lei, é mais prático fazer a lei ir ao
seu encontro.
No braço de
ferro que hoje se desenrola, a cada vez que se baixa meio ponto da Selic, o
mundo financeiro grita na mídia, todos ameaçam com a inflação, pedem
“responsabilidade” ao governo, conseguindo inclusive reverter o processo de
baixa. A evolução é resumida por Amir Khair: “A dívida líquida do setor público
foi marcadamente influenciada pela Selic. No início do governo FHC estava em
28% do PIB e, mesmo com a megavenda de patrimônio público com privatizações, ao
final do governo chegou a 60,4%. A elevada Selic foi a responsável por isso. No
final do governo Lula, tinha baixado para 39,2% e em julho estava em 34,9%.
Caso a Selic continue caindo, é capaz que ao final do governo Dilma seja
possível retornar próximo da que estava no início do governo FHC”.3
Uma monumental
transferência de recursos públicos para rentistas que, além de nos custar muito
dinheiro, desobriga os bancos de fazer investimentos produtivos que gerariam
produto e emprego. É tão mais simples aplicar nos títulos, liquidez total,
risco zero. Realizar investimentos produtivos, financiando, por exemplo, uma
fábrica de sapatos, envolve análise de projetos, acompanhamento, enfim, atividades
que vão além de aplicações financeiras.
A manipulação
dos juros comerciais
Os
intermediários financeiros e rentistas não se contentam com a Selic, taxa de
juros oficial sobre a dívida pública. Recorrem a um segundo mecanismo, que é a
fixação de elevadas taxas de juros ao tomador final por bancos comerciais,
mecanismo diferente da taxa Selic, tanto assim é que a Selic baixou
radicalmente diante dos 25-30% da fase FHC para os 8,5% atuais, sem que
houvesse redução significativa dos juros dos bancos comerciais.
Naturalmente,
os bancos comerciais, como entidades privadas, afirmam que são livres para
praticar os juros que quiserem. A coisa não é assim, por uma razão simples:
como trabalham com dinheiro do público, e não deles, devem seguir regras
definidas pelo Banco Central, e mesmo um banco privado precisa de uma
carta-patente que o autorize a funcionar dentro de certas regras. Estas,
naturalmente, vão depender da capacidade de pressão política.
Como se trata
de dinheiro do público apropriado diretamente pelos intermediários financeiros,
sem mediação do governo, poderíamos achar que não é desvio de dinheiro. De
certa forma, quando tiram nosso dinheiro sem a ajuda de um político, seria por
assim dizer mais limpo. Habilidade de um lado, ingenuidade ou impotência do
outro, mas não corrupção. Essencial para nós é que só se podem sustentar no
Brasil juros tipicamente dez vezes maiores (dez vezes, não 10% a mais) em
relação aos praticados internacionalmente mediante apoio político. E, como
durante longo tempo tivemos banqueiros na presidência do Banco Central,
montou-se mais um sistema impressionante de legalização do desvio de nosso
dinheiro. Essa “ponte” entre o político e o comercial precisa ser explicitada.4
O artigo 170
de nossa Constituição define como princípios da ordem econômica e financeira,
entre outros, a função social da propriedade (III) e a livre concorrência (IV).
O artigo 173, no parágrafo 4o, estipula que “a lei reprimirá o abuso do poder
econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros”. O parágrafo 5o é ainda mais explícito: “A
lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa
jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições
compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e
financeira e contra a economia popular”. Cartel é crime. Lucro exorbitante sem
contribuição correspondente produtiva será “reprimido pela lei” com “punições
compatíveis”.
Estudo do Ipea
mostra que a taxa real de juros para pessoa física (descontada a inflação)
cobrada pelo HSBC no Brasil é de 63,42%; no Reino Unido, é de 6,6% (no mesmo
banco, para a mesma linha de crédito). Para o Santander, as cifras
correspondentes são 55,74% e 10,81%. Para o Citibank, são 55,74% e 7,28%. O
Itaú cobra sólidos 63,5%. Para pessoa jurídica, área vital porque se trataria
de fomento a atividades produtivas, a situação é igualmente absurda. O HSBC,
por exemplo, cobra 40,36% no Brasil e 7,86 no Reino Unido.5
No conjunto,
trata-se de um desvio de dinheiro da economia real, via uma forma institucional
ilegal, que é a “dominação dos mercados, eliminação da concorrência e aumento
arbitrário dos lucros” que a Constituição condena em termos inequívocos. Diante
dos números, há alguma dúvida quanto à ilegalidade? Não há notícias de
julgamento a esse respeito, e sim de muitas denúncias no Procon, Idec e outras
instituições, e milhões de pessoas se debatendo em dificuldades. O
Serasa-Experian, hoje empresa multinacional, guardiã da moralidade financeira,
decreta que brasileiros passam a ter o nome sujo, ou seja, pune quem não
consegue pagar os 238% hoje cobrados no cartão, e não quem os cobra.
Os
paraísos fiscais
Um dos efeitos
indiretos da crise mundial é que há um forte avanço recente no estudo dos
grandes grupos econômicos e das grandes fortunas. Aliás, o imenso esforço de
comunicação destinado a atribuir a crise financeira mundial ao comportamento
irresponsável dos pobres, seja nos Estados Unidos ou na Grécia, é patético. Um estudo
que sobressai, de autoria do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica
(ETH, na sigla alemã), constatou que 147 corporações, das quais 75% são grupos
financeiros, controlam 40% do sistema corporativo mundial. Num círculo um pouco
mais aberto, 737 grupos controlam 80%. Nunca houve, na história da humanidade,
nada de parecido com esse nível de controle planetário por meio de mecanismos
econômicos e financeiros. A apropriação ou no mínimo fragilização das
instituições políticas perante esses gigantes torna-se hoje fato comprovado.6
Corroborando
essa pesquisa, e focando inclusive em grande parte os mesmos bancos, temos hoje
outra pesquisa de grande porte, liderada por James Henry, ex-economista-chefe
da McKinsey, e realizada no quadro da Tax Justice Network. Em termos resumidos,
o estoque de recursos aplicados em paraísos fiscais é hoje da ordem de US$ 21
trilhões, um terço do PIB mundial. O Brasil participa generosamente com cerca
de US$ 520 bilhões, mais de R$ 1 trilhão, cerca de um quarto do nosso PIB. São
dados obtidos por meio de cruzamento de informações dos grandes bancos, do
Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) da Basileia, do
Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, de bancos centrais e de várias
instituições de pesquisa ou de controle. Nada de invenções: trata-se no
essencial de juntar os dados de forma organizada, com metodologia clara e
transparente, e indicações da relativa segurança ou insegurança dos dados a
cada passo. Essa peça informativa fazia muita falta, e passamos agora a ver o
que acontece com tanto dinheiro ilegal que resulta das várias formas de
corrupção.7
A economia
trata da alocação racional de recursos. Aqui há pouca racionalidade, a não ser
que olhemos da perspectiva dos que deles se apropriam. As eleições nos custam
R$ 2 bilhões, é até pouca coisa. Mas a manipulação permitida nos custa centenas
de bilhões por meio dos mecanismos que se tornaram legais ou de difícil
controle judiciário. A deformação do sistema tributário desonera os muito ricos
e fragiliza o setor público, reproduzindo a desigualdade.
A
irracionalidade das infraestruturas custa bilhões e nos atinge a todos, gerando
um país de altos custos. Os cerca de R$ 150 bilhões de juros pagos a rentistas
são um desvio radical de dinheiro que poderia ser transformado em
investimentos. Os imensos recursos que constituem nossas poupanças depositadas
em bancos poderiam servir ao fomento econômico, e não à agiotagem com as taxas
de juros praticadas. O escoamento dos recursos gerados para paraísos fiscais,
cerca de R$ 1 trilhão acumulados no caso do Brasil, nos priva de recursos
necessários ao desenvolvimento, sustenta uma ilegalidade que virou cultura e
deforma profundamente tanto o sistema político como o econômico. São as regras
do jogo que estão viciadas.
Ilustração: Daniel Kondo
Ladislau
Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e
Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP. É autor de A
reprodução social e Democracia economômica - um passeio pelas teorias (contato http://dowbor.org).
1 O financiamento está baseado na Lei n. 9.504, de 1997: “‘As doações podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%, correspondente [à declaração] ao ano anterior’, explicou o juiz Marco Antonio Martin Vargas, assessor da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo”. Citado por Elaine Patricia da Cruz, “Entenda o financiamento de campanha no Brasil”, Exame, São Paulo, 8 jun. 2010.
1 O financiamento está baseado na Lei n. 9.504, de 1997: “‘As doações podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%, correspondente [à declaração] ao ano anterior’, explicou o juiz Marco Antonio Martin Vargas, assessor da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo”. Citado por Elaine Patricia da Cruz, “Entenda o financiamento de campanha no Brasil”, Exame, São Paulo, 8 jun. 2010.
2
“Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum dinheiro”,
comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa “Poder econômico na
política: a influência de financiadores eleitorais sobre a atuação
parlamentar”. Ver mais em Bruna Romão, Agência USP. Disponível em: <http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/investimento-de-empresas-influencia-sucesso-em-eleicoes/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje>.
3 O Estado de
S. Paulo, 9 set. 2012.
4 “A corrupção
foi frequentemente interpretada de maneira estreita, focando excessivamente o
setor público e ignorando o privado. O Banco Mundial tem um approach ainda mais
estreito, definindo corrupção como ‘o abuso do serviço público para ganho
privado’. Esse foco no setor público como a única arena da corrupção não é
apenas arbitrário. É errado e, inclusive, pernicioso.” Tax Justice Network.
Disponível em:
5 Ipea,
“Transformações na indústria bancária brasileira e o cenário de crise”,
Comunicado da
Presidência, abr. 2009, p.15. Disponível em: <www.ipea.gov.br/sites/000/2/pdf/09_04_07_ComunicaPresi_20_Bancos.pdf>.
6 Para uma
análise sumária dos resultados da pesquisa do ETH, ver:
7 “Uma fração
significativa da riqueza financeira privada global – segundo nossas
estimativas, pelo menos de US$ 21 trilhões a US$ 32 trilhões em 2010 – foi
investida praticamente sem impostos através do buraco negro mundial ainda em
expansão de mais de oitenta jurisdições offshore sigilosas. Acreditamos que
estes sejam números conservadores. Nessa escala, a economia em paraísos fiscais
é grande o suficiente para ter vasto impacto nas estimativas de desigualdade de
riqueza e renda, e nas estimativas das rendas nacionais e nos níveis de dívida;
e – mais importante – ter um impacto negativo bastante significativo nas bases
fiscais nacionais de países key source (ou seja, aqueles que têm visto ao longo
do tempo fugas de capital privado não registradas).” Tax Justice Net, p.3.
Disponível em:
Os dados sobre
o Brasil estão no Appendix III (1), p.23.
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