Por Urariano Mota
Quando Filadelfo se promoveu
para morar numa casinha do beco, mudanças fundas vieram daí. Na
recordação de Jimeralto, aqueles foram os anos mais felizes da sua vida. Na sua
imaginação, em um curto intervalo de tempo ali houve o reino e pátria da felicidade.
Em um processo estranho de mistura de momentos e ideias, chegou mesmo a crer
que o céu foram aqueles dias, tão largos e fecundos. Era uma forma de sentir
tão absurda, que chegava a transferir a falta de Maria para a sua presença em
um céu azul que fosse o beco, cheio de nuvens brancas e papagaios empinados,
com uma alegria de domingo de sol em uma praia de Olinda. Ou como um cinema
feliz e fora de lugar, a passar numa tela de sala muito escura. E aqui as
anotações da vida pulam e saltam das margens como felizes e encantadas rãs,
entre grilos e esperanças. Rãs pulam como borboletas que pulassem, ou fossem
pássaros em vÃ? os rasantes no mato verde e cheiroso de seiva. E vêm com aquele
ar de rio, da aproximação da água no nariz, de banho e pulo de flecheiro,
sempre como uma etapa do que virá e viria. Algo como uma pátria impossível,
utópica, que um dia tenha sido realizada. As anotações da margem, marcas
inapagáveis, transbordam.
O beco, dona Maria no beco,
tinha cheiro de tanajura frita na panela com banha de porco. Que felicidade no
cheiro, no antegosto, na prelibação daquelas pretinhas apetitosas com
temperos de só maciez e bondade. Comê-las, antes de ser o fim da festa,
era uma festa contínua que não cansava nem atingia o abarrotamento da exaustão.
As tanajuras fritas se comiam, para o menino, como o justo coroamento de um
trabalho de curumim, como se ele fosse um menino índio e livre, que caçava ao
canto de “cai, cai, tanajura, tua bunda é uma doçura” (a rima era gordura, mas
só queria dizer doçura). Antes, na procura da festa, havia que pegá-las com
cuidado e habilidade para evitar o ferrão nas cabeças, mas que cheiro, que
cheiro elas possuíam ainda cruas, cheiro de sovaco de menina-moça, que cheiro!
Arrancar-lhes as cabeças, cortar-lhes as perninhas, e como um guerreiro
empurrá-las para um caldeirão, imenso na esperança para a quantidade de
tanajuras que pegavam. É verdade, a sua habilidade era pequena, sempre haveria
de desejar mais que as suas toscas mãos conseguiam, mas era bom ainda assim
pela liberdade de errar, tentar e afinal conseguir pelo menos 60 tanajuras para
o jantar. Na mesa eram comidas com farinha
de mandioca ou pão bolachão, num apetitoso e raro sanduíche. Era melhor que
outra iguaria, pão com lingüiça.
O curioso e bom é que antes
da tanajura tinha a chuva, o toró, a pequena tempestade que descia do céu
amplo, cinza, de um cinzento que para os meninos era uma festa, pois
transformava o beco num grande chuveiro, num banho coletivo. Ah, suas mães
permitiam que os moleques de calção ou nus pulassem na chuva, se emporcalhassem
aos gritos “a praia, a praia”. Os meninos escorregavam na lama, que faziam de
areia junto ao mar. Se soubessem então que existia algo de nome piscina,
chamariam os mergulhos na lama de piscina. Ficavam todos molhados até os ossos, mas sem frio, porque brincar debaixo
da chuva era um exercício, uma ginástica entre os pulos e gritos. Debaixo
d’água disputavam um bueiro, um grosso cano que descia de um prédio em
construção. Durante a chuva o bueiro jorrava, e por isso metiam a cabeça sob
esse chuveiro farto, agachados, pa ra melhor desfrute da abundante alegria. O
quanto a felicidade era pobre, miserável e boa. Custava tão pouco, porque a
liberdade distribuída pelas mães fazia do mísero o feliz.
Infância, Jimeralto lembrava
com os olhos úmidos, fechados, com vontade de gritar: Infância, tu eras a
liberdade! Então ele, enquanto dormia sob nome falso em uma pensão de outro
país, porque São Paulo ou Rio para ele era outro país, então ele sob um novo
nome, codinome, batismo forçado de Pedro, rolando no colchão de um cubículo
abafado, lembrava o intervalo curto e feliz da vida de Jimeralto. Tudo era tão
perto e tão longe. Da idade que ia dos 6 aos 8 anos, até o pulo magnífico para
seus 21 anos, uma distância de apenas 13 anos. No entanto, aquele menino de
nome real era como um ser de muito longe, de outro planeta.
*Do romance “O filho renegado de Deus”
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