Diferente do que
escrevem os novelistas da televisão, que pelo poder do veículo levam o Brasil a
crer em seus, perdoem os adjetivos, mas não vejo outros: irresponsáveis e
levianos delírios, diferente disso, o escritor e operário Valter Fernandes
escreveu uma vida de doméstica que não se vê nas personagens de Cheias de
Chame.
É claro, ele não está
na Rede Globo, nem tampouco entrou no mainstream. Melhor então trazer para
estas linhas uma apresentação que fiz dele e do seu livro Joana.
Valter Fernandes é de
profissão eletricista. Além de cuidar como poucos, como raros trabalhadores, de
automóveis, porque é um profissional competente e honesto, Valter cultiva e ama
a literatura. Em outro livro ele assim se apresentou: “Nasceu em 27 de setembro
de 1960, no Recife. É filho de Josefa Maria da Silva e de pai ignorado”.
Já se notava ali que
ele não escrevia por brincadeira ou vaidade oca. Já ali pude notar que a
devoção de Valter Fernandes ao ofício literário era e tem sido um estímulo a
todos os demais poetas, eletricistas, trabalhadores de todas as oficinas. Até
mesmo dos trabalhadores das oficinas que se julgam mais altas, as bancadas e
oficinas literárias. Pois o que ele faz da sua vida, as conexões que esse autor
realiza entre o positivo e o negativo nos serve a todos, eternos meninos,
eternos aprendizes, poetas e escritores que todos somos em construção.
Na quarta capa do
livro Joana, ele nos fala:
“Esta é mais uma obra
de Valter Fernandes. Desta vez, uma novela, na qual o autor relata a vida de
uma ex-empregada doméstica, que saiu de casa ainda quando criança para
trabalhar no que se dizia então ser ‘trabalho em casa de família’... Uma
trajetória de luta e sobrevivência, de amores mal resolvidos, enganos e
esperanças. Um mundo traiçoeiro, egoísta, místico e machista, onde sobrevivia
dignamente quem fosse capaz de enfrentar as adversidades sem olhar para trás”.
E com razão, como
veremos. Olhem o capítulo segundo, por exemplo.
“Alaíde conseguiu um
emprego em uma casa de família. Porém não dura muito tempo, porque tem um surto
de loucura. A expulsão de casa por seu pai, a covardia do namorado e a vida nas
ruas mexeram com a cabeça daquela pobre mulher. Achava que o sobrenatural
invadira seu mundo. Sentia-se tocada, porém não via quem a tocava, sentia-se
perseguida, tinha alucinações constantes”...
“Era comum, naquela
época, famílias que tinham melhor poder aquisitivo admitir crianças como
empregadas em suas residências, alegando que iriam cuidar delas como se fossem
suas filhas. No entanto, elas trabalhavam duro, sendo tratadas como verdadeiras
escravas, raro era o lar que cuidasse delas com dignidade”.
Joana é uma novela em
que Valter Fernandes conta a vida de empregadas domésticas, a partir do ponto
de vista das empregadas domésticas. Este é um mérito incomum, que eu nunca vi
em qualquer outro livro da literatura mais culta, nem mesmo em Flaubert,
em "Um coração simples". No entanto, essa magnífica novela, quando
comparada ao relato de Valter Fernandes, nos chega como obra de
um déspota esclarecido.
um déspota esclarecido.
O livro Joana extrai o
seu maior valor da verdade que conta. E o mais importante: há um mundo, no
escrito pelo autor, que jamais foi visto. Eu quero dizer: o mundo
visto a partir dos olhos das empregadas domésticas. Notem: não é questão
do tema, do assunto, de uma criada ou empregada doméstica. Na literatura,
grandes escritores já escreveram sobre as empregadas domésticas.
A questão não é de
tema. Os escritores que se ocuparam até hoje sobre o mundo das empregadas
falaram sem os olhos das empregadas - eles falaram a partir dos olhos de
pessoas que não são empregadas. Esta é a maior e melhor qualidade de
Joana. Valter Fernandes desentranha a violência, as barbaridades que se
cometeram e se cometem até hoje contra as domésticas, que são as novas
escravas, que continuam a escravidão.
Essas mulheres ninguém
vê. E quando foram notadas pela literatura, foram sempre observadas pelos olhos
de pessoas que se compadeciam da sua sorte. Piedosos e bem intencionados
corações. No caso de Joana, há uma informação nova: aqui está o
depoimento de um irmão, de um filho de uma empregada, que sofreu o que
elas sofrem e sofreram. Isso é fundamental. Dizer mais o quê, leitor? Neste
livro conheci coisas que eu ainda não sabia.
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Dag Vulpi