Júlio Sameiro
A teoria ética
de Kant oferece-nos um princípio da moral que deve poder ser aplicado a todas
as questões morais. Kant enuncia-o de diferentes maneiras com o objetivo de
esclarecer as suas implicações. Partiremos de um caso simples, de senso comum,
para esclarecer essas diferentes formulações:
O Silva
reparou que uma pessoa que saía da sua pequena loja deixou cair uma nota de 50
€. Apanhou-a e... que fez?
Avaliemos três
decisões possíveis de Silva
Ficou com os
50 €.
Devolveu os 50
€ para ficar bem visto e ganhar reputação de honesto.
Devolveu os 50
€ pelo simples facto de pertencerem ao cliente.
O princípio do
desinteresse
A ação 1 é
claramente imoral. O Silva ficou com os 50 € devido ao seu interesse.
Quanto à ação 2, o senso comum diria que é hipócrita ou interesseira, pois o
Silva devolveu os 50 € apenas porque isso é do seu interesse. De
facto, o princípio da decisão em 2 foi o mesmo que em 1 — o interesse. Pôr
o seu interesse acima de tudo, como princípio das ações, é imoral. Assim, só a
ação 3 é moralmente correta, já que o Silva ultrapassou os seus interesses e
agiu de forma desinteressada.
O nosso juízo
sobre cada uma das possíveis decisões do Silva foi guiado pelo princípio do
desinteresse:
“Age
desinteressadamente.”
A teoria de
Kant não impede que a pessoa satisfaça os seus interesses — afinal também era
do interesse do Silva decidir o que fazer com os 50 € e, apesar de não ter sido
esse o motivo da ação 3, também ganhou a consideração do cliente. O ato deve
ser desinteressado mas se, além disso, satisfizer interesses, tanto melhor para
o agente; se contrariar interesses, paciência.
O princípio da
imparcialidade
Podemos
enunciar o princípio do desinteresse de outra maneira:
“Decide com
imparcialidade.”
Aprovamos
moralmente as decisões e as ações quando o sujeito, como no caso 3, decide como
um juiz imparcial. Nos casos 1 e 2 Silva permitiu que os seus interesses
lhe roubassem a imparcialidade.
É provável que
Kant, neste aspecto, se afaste um pouco do senso comum. O senso comum pode
pensar que a “imparcialidade” será considerar igualmente “cada um dos
interesses envolvidos” ou, então, ajuizar sobre cada caso atendendo ao
“interesse de todos”. Mas os “interesses das partes envolvidas” podem ser
igualmente imorais. Quanto ao “interesse de todos” pode nem existir (afinal é
típico os interesses estarem em conflito...) e, se existir, será, como todos os
interesses, contingente, caprichoso como a humanidade, e a moral não podem
estar sujeita a caprichos. “Imparcialidade”, para Kant, significa decidir
independentemente de quaisquer interesses. De facto, Kant pensava, em parte de
acordo com o senso comum, que o progresso moral também ajuda à felicidade e aos
interesses mais dignos das pessoas. Mas ele sabe que a harmonia entre a moral e
a felicidade não é certa e que se a ação moral gerar felicidade será por
acréscimo ou efeito secundário.
O princípio do
dever
Se a pessoa
não deve agir por interesse, então deve agir por obrigação, por dever. A ação 1
foi em tudo contrária ao dever. A ação 2 está em conformidade com o dever,
porque o Silva fez o que deveria ter feito, mas foi feita por interesse e
não por dever. Só a ação 3, a única a ter toda a nossa aprovação moral,
foi feita por dever. Assim, o princípio da moralidade pode ser enunciado
deste modo:
“Age
apenas por dever e não segundo quaisquer interesses, motivos ou
fins.”
Devemos ter em
mente que falamos de decisões e ações morais. Se um papel inútil na minha
secretária me incomodar, é do meu interesse deitá-lo para a reciclagem e, ao
fazê-lo, não estou a violar o princípio dos deveres; mas se atirar o papel para
o quintal do vizinho, deixo de cumprir o dever de respeitar as pessoas...
Os deveres
morais e as convenções sociais
Os princípios
do desinteresse, da imparcialidade e do dever dizem a mesma coisa e têm as
mesmas implicações. Isto permite esclarecer o que são deveres morais:
O dever é uma
regra estipulada por uma razão desinteressada, imparcial.
Assim, podemos
evitar o erro, bastante difundido, de supor que os deveres morais são criações
ou convenções sociais. Dois argumentos contribuem para este erro. O primeiro
parte do fato de alguns dos “deveres morais” de uma sociedade serem
diferentes dos de outras, para concluir, erradamente, que todos os
deveres são convenções sociais. O segundo argumento parte do facto de muitas
vezes cumprirmos os deveres contrariados, como se fôssemos obrigados por uma
autoridade externa, para concluir que não podem ter origem em nós mas sim numa
autoridade externa.
Ora, a teoria
kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas por quaisquer
autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua razão o critério dos
deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever. O
conflito entre o dever, que é a ordem que damos a nós mesmos (“Sê honesto!” —
ordenou o Silva a si mesmo), e os interesses que nos afastam do dever (“Mas os
50 € davam-me jeito...” — hesitou o Silva), explica por que o dever parece ter
origem numa autoridade exterior que nos contraria.
O princípio da
universalidade
A teoria moral
de Kant concilia a ideia de que os deveres morais são criações dos indivíduos e
a ideia de que a moral é universal, comum a todos. Esta ideia pode
surpreender-nos: não é verdade que “cada cabeça, sua sentença”?
A ação correta
é decidida pelo indivíduo quando adota uma perspectiva universal.
Como? Abstraindo dos seus interesses, a pessoa pensará como qualquer outra que
também faça abstração dos seus interesses adotando, portanto, uma perspectiva
universal.
Regressa ao
exemplo dado e verifica que qualquer pessoa que abstrai dos seus interesses e
pensa imparcialmente faz o mesmo: é honesta e devolve os 50 €. Aplica a mesma
ideia a deveres morais comuns como “Cumpre as promessas”, “Paga o que deves”,
“Sê leal”, “Não roubes” e verifica, com Kant, que só o interesse e a
parcialidade do agente podem levar à violação de tais regras ou deveres morais.
Eliminada a parcialidade, pensamos segundo uma perspectiva universal e
aprovamo-las. Kant exprimiu esta ideia numa fórmula conhecida
por princípio da universalidade:
“Age apenas
segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei
universal.”
Uma máxima é
uma regra que deve valer para certos tipos de ação e será moral ou imoral
consoante esteja ou não de acordo com o princípio moral, que é uma regra que
deve valer para todas as ações. A máxima da ação 1 poderia enunciar-se assim:
“Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro ao seu dono.” Poderia
o Silva querer que ela fosse universalmente acatada? Não, porque a obediência
universal a tal regra criaria um estado de coisas terrível em que mesmo os seus
interesses acabariam por ser lesados... Tenta transformar outras violações dos
deveres em máximas e pergunta se podes querer que todos as cumpram. Pode o
ladrão querer que todos roubem quando a oportunidade surge? Podes querer que todos
façam promessas sem a intenção de cumprir?
O princípio da
autonomia
Se juntares
agora o princípio da universalidade e o esclarecimento da origem dos deveres,
compreenderás a ideia surpreendente de Kant de que nas decisões morais nós
somos legisladores criando regras válidas para todos os seres racionais.
Esta ideia
também pode parecer estranha porque nos parece que os deveres não estiveram à
nossa espera para serem criados. Pensamos que são as tradições que constituem
listas de deveres apoiadas em sistemas de punições e recompensas. Mas, aceitar
esta teoria implica afirmar que a ação 3 é impossível porque, nesse caso, o
Silva só poderia agir devido ao seu interesse em evitar punições ou de ser
recompensado e, em consequência, a nossa aprovação moral de 3 não teria
sentido. Se aceitarmos os princípios já expostos, conclui Kant, aceitamos que
em cada juízo ou decisão moral, o sujeito determina o dever. O facto de esses
deveres coincidirem com alguns dos deveres tradicionais explica-se pela
universalidade da razão. Kant sublinhou esta ideia de autonomia do sujeito em
outras fórmulas do princípio moral:
“Age como se a
máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza.”
“Age [...] de
tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao
mesmo tempo como legisladora universal.”
A fórmula da
universalidade ainda poderia sugerir que quando decide moralmente, o sujeito
escolhe entre máximas que ele não criou mas que já estão disponíveis. A
novidade mais notória destas fórmulas está no facto de acentuarem
a autonomia do sujeito: o sujeito deve obedecer apenas a regras que criou,
ao mesmo tempo, para si mesmo e para todos os seres racionais.
O princípio do
respeito pela pessoa
Perguntemos
como é que, em cada um dos casos 1, 2 e 3, as pessoas são tratadas.
Em 1, o Silva
usou o outro como meio, como se a outra pessoa fosse
uma coisa ou instrumento, para o aumento direto da sua fortuna.
Em 2, o Silva usou a outra pessoa como meio de marketing e
propaganda. Nestes dois casos, ao mesmo tempo em que usou a outra pessoa apenas
como meio, o Silva usou-se como meio, abdicando da sua
autonomia para favorecer impulsos e interesses que o escravizam. Que quer dizer
“usar-se como meio”? Silva é uma pessoa, um ser autónomo. O que constitui esta
pessoalidade ou autonomia é a capacidade de pensar e decidir por si. Mas nos
casos 1 e 2 ele usou estas capacidades para servir fins ditados pelo interesse.
Usar-se como meio é usar a sua autonomia para a perder.
Em 3, o Silva
não tratou a outra pessoa como meio, tratou-a como um fim. Devemos
esclarecer esta ideia.
Se a devolução
dos 50 € não visou servir qualquer interesse, então para quê fazê-lo? Qual é a
sua finalidade? A finalidade, já vimos, foi a de cumprir o dever pelo dever.
Mas isso, também já vimos, é, ao mesmo tempo, definir a única legislação
adequada a qualquer a pessoa, ou seja, a todo o ser racional, capaz de
ultrapassar interesses para pensar e decidir por si. Assim, cumprindo o dever
que deu a si mesmo, o Silva respeita todos os seres racionais, incluindo,
claro, tanto o próprio Silva como a pessoa do seu cliente. O mesmo seria dizer
que respeitando a pessoa do seu cliente, o Silva respeita-se e respeita todos
os seres racionais, tomando-os como fins da sua ação.
Kant
sintetizou o seu pensamento noutra fórmula:
“Age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem,
sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.”
Nota que a
fórmula não proíbe as pessoas de serem meios umas para as outras, porque se o
proibisse, proibiria qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe o
Silva de usar os seus clientes para prosperar, mas se enganar nos preços e não
devolver o dinheiro esquecido pelos clientes, está a
tratá-los apenas como meios, instrumentos ou objetos.
Júlio Sameiro
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