Por Davi Carvalho*
Junto
com a reforma política, a reforma tributária é a condição para a qualificação e
ampliação da democracia Brasileira. As duas “reformas irmãs” são
imprescindíveis para o enfrentamento às mais profundas desigualdades existentes
no país. A manutenção das conquistas das últimas décadas passa pela construção,
pactuação e implementação de um reforma progressiva, que tire o foco da
tributação do consumo, produtos básicos e investimentos produtivos e passe a
incidir mais diretamente sobre renda e patrimônio. Essa proposta poderia
parecer atraente e civilizada à maioria da população, mas, na prática, envolve
inúmeros interesses e está na agenda das pautas negativas da grande mídia e dos
setores conservadores da sociedade. Aliás, com o Congresso mais conservador e
milionário que assume em Janeiro, uma reforma que vá por este caminho entra na
lista dos sonhos. Para tratar da reforma tributária que o Brasil precisa, as
dificuldades em realizá-la e a importância dela para ampliar as conquistas
sociais, a Plataforma ouviu o economista Fabrício Augusto de Oliveira, doutor
pelo Instituto de Economia da Unicamp, ex-professor da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e membro da rede Plataforma Política Social.
A carga tributária no Brasil é, de fato, elevada
como reclama uma parcela importante da sociedade brasileira? O que há de
errado com ela?
Fabrício
Augusto de Oliveira: Se compararmos a dimensão da carga tributária no Brasil,
hoje em torno de 36-37% do PIB, com a dos países da América Latina, das
economias emergentes e também com a de alguns países desenvolvidos, com nível
de renda per capita superior, como Estados Unidos e Japão, por exemplo, não há
dúvidas de ser ela bem elevada. Em termos do tamanho da carga tributária, o
Brasil só perde para alguns países europeus e para os países escandinavos, que,
no entanto, possuem níveis de renda per capita bem mais elevados e um welfare
state (Estado de bem estar social) mais abrangente e consolidado.
Considerando,
no entanto, de um lado, as grandes desigualdades sociais do país e os ainda
elevados níveis de pobreza da população, e, de outro, que cabe idealmente ao
Estado, por meio dos impostos, manejá-los para encurtar as distâncias entre ricos
e pobres, até mesmo para garantir maior coesão social, essa crítica ao tamanho
da carga tributária comparando-o ao de outros países, é superficial, pois não
leva em conta a maior ou menor complexidade de suas estruturas econômicas e
sociais e o papel atribuído ao Estado pela própria sociedade para atuar na
mitigação ou mesmo na correção destes problemas, o que exige financiamento
adequado.
Para
mim, os maiores problemas da carga tributária residem não tanto na sua
dimensão, que não deixa de ter efeitos nocivos para a competitividade da
produção nacional, mas, de um lado, na sua composição, e, de outro, no retorno
destes impostos para a sociedade na forma de políticas públicas.
Quanto
à sua composição, a estrutura tributária brasileira conta com um peso muito
elevado de impostos de má qualidade e com uma distribuição de seu ônus entre os
membros da sociedade muito desigual. Ambos os aspectos são altamente
prejudiciais para o crescimento econômico. Impostos cumulativos, de incidência
em cascata, caso da COFINS e do PIS, ainda que parcialmente, e de outras
contribuições sociais, e também do ISS e até mesmo do ICMS, não só porque
cobrado “por dentro”, mas também pelos créditos dos produtores que não são
compensados, aumentam muito o custo-Brasil e reduzem a competitividade do país.
Já a tributação iníqua da carga tributária, além de ir contra um princípio
fundamental da tributação – o da equidade – enfraquece o mercado interno ao
lançar o maior ônus dos impostos sobre os contribuintes de menor renda, que têm
maior propensão a consumir.
No
que diz respeito ao retorno dos tributos, sabidamente o Estado atualmente
continua em dívida com a população, dada a insuficiente e, em muitas áreas,
precária, oferta de políticas públicas, especialmente quando se considera o tamanho
da carga tributária. De um lado, parte significativa dos impostos (ou dessa
carga) é esterilizada com o pagamento de juros e encargos da dívida pública
(que representa atualmente cerca de 5-6% do PIB); de outro, parte importante se
perde nos caminhos tortuosos e desconhecidos da burocracia e na ineficiência na
gestão das políticas públicas. O resultado de tudo isso não e nenhuma novidade:
uma carga tributária de países desenvolvidos e uma oferta de políticas públicas
de países do terceiro mundo.
A reforma tributária é tema de partidos de direita e
esquerda no Brasil. Os primeiros pensam em redução de impostos com apelo
estritamente econômico. Já os movimentos sociais e partidos progressistas
defendem uma reforma tributária que contribua com a redução da desigualdade e
aprofundamento das conquistas dos últimos anos. Que reforma tributária o Brasil
precisa e por que ela é tão urgente?
Fabrício
Augusto de Oliveira: Os dois lados têm razão de acordo com o seu ponto de
vista e os seus objetivos deveriam ser conciliados numa eventual reforma. Tal
como se encontra estruturado, o sistema tributário brasileiro é prejudicial
tanto para um como para outro objetivo. De ponto de vista estritamente
econômico, ele onera demasiadamente o custo-Brasil, reduzindo a competitividade
da produção nacional e operando como trava do crescimento econômico. Do ponto
de vista social, é um dos sistemas mais iníquos do mundo, à medida que lança o
maior peso da tributação sobre os ombros mais fracos, ignorando uma máxima
importante da tributação (atualmente desprezada pelo pensamento econômico
dominante) de que se deve “cobrar mais de quem mais ganha”. Ora, isso só
contribui para agravar ainda mais a ainda gritante desigualdade de renda
existente no país e a manter em estado latente os conflitos sociais.
Creio
que uma reforma tributária no Brasil deve se preocupar em dar uma solução para
estes dois objetivos. Para isso, é necessário deixar de considerar o sistema
tributário como um mero instrumento voltado para a produção de superávits primários
para o pagamento da dívida, como manda o pensamento conservador, e recuperá-lo
como instrumento de política econômica e social que o Estado dispõe para
cumprir o seu papel, qual seja, de contribuir para o desenvolvimento econômico
e para a redução das desigualdades sociais e regionais. Como tal, não pode
funcionar como óbice para a produção e os investimentos, como acontece
atualmente, o que exige uma limpeza de sua estrutura dos impostos de má
qualidade; e nem ser um instrumento de agravamento da distribuição de renda, o
que implica deslocar as bases da tributação, dando mais ênfase à renda e ao
patrimônio. Um equilíbrio desejável e necessário para o reencontro do país com
o crescimento econômico e com a inclusão social.
Apesar da necessidade de uma reforma ser consenso, por
que não se avança?
Fabrício
Augusto de Oliveira: Acredito não haver maior consenso no Brasil sobre a
necessidade de uma reforma tributária. É um tema que entrou na agenda já no
início da década de 1990, logo após a Constituição Federal de 1988 e que, de lá
para cá, vem sendo empurrado com a barriga por todos os governos que o país
teve, sem avanços importantes.
A
verdade é que cada um dos agentes que podem ser por ela afetados tem a sua
própria reforma tributária “ideal”, com propostas de mudanças raramente
coincidentes. Empresas, contribuintes pessoas físicas, governos municipais,
estaduais, federal, representantes de políticas sociais em geral são unânimes
em concordar com a necessidade de uma reforma, mas sem prejuízos para seus
interesses e recursos.
Como
os contribuintes nunca são consultados ou ouvidos sobre este tema, embora sejam
os pagadores de impostos, em minha opinião os maiores oponentes de sua
realização são os próprios governos, a quem cabe viabilizá-las e aprová-las no
Congresso. O governo federal, porque prisioneiro dos interesses do capital
financeiro e do comprometimento com políticas de austeridade fiscal, não se
dispõe a abrir mão de receitas para garantir o pagamento dos juros e encargos
da dívida. Os governos estaduais e municipais, diante da desconstrução
federativa que vem sendo realizada no Brasil desde a década de 1990, porque
temem, com razão, que as iniciativas apresentadas e encaminhadas pelo governo
federal para o Congresso, diminuam ainda mais sua autonomia e destrocem ainda
mais suas finanças, não têm se mostrado dispostos a sancionar mesmo as tímidas
propostas feitas para sua revisão. Sem se chegar a um acordo confiável entre
estes níveis de governo sobre o conteúdo e resultados da reforma, o que não
será nada fácil dada a desconfiança que predomina sobre as reais intenções do
governo federal, não se pode esperar que a mesma prospere de forma desejável e
necessária.
O que é preciso para essa reforma tributária
mencionada seja feita?
Fabrício
Augusto de Oliveira: É preciso conciliar os interesses dos diversos
agentes e governos envolvidos na questão. Isso significa mapear conflitos,
negociar alternativas e sinalizar que a sociedade como um todo sairá
beneficiada com as mudanças. Por isso, a reforma deveria ser abrangente,
tratando o conjunto dos problemas do sistema, pois só assim, se tornará
possível vislumbrar que eventuais perdas em que pode incorrer um ou outro setor
poderão ser compensadas por outros ganhos. Cite-se, como exemplo, uma revisão
do modelo federativo, uma questão que tem sistematicamente abortado as
propostas de reforma. Se realizada, o governo federal poderia até perder
receitas, o que hoje não se admite pelos compromissos assumidos com políticas
de austeridade fiscal. Por outro lado, contudo, o fortalecimento financeiro de
estados e municípios os capacitaria a aumentar sua contribuição na provisão de
políticas públicas e mesmo cooperativamente na implementação de políticas
anticíclicas, desafogando financeiramente o governo federal sem comprometer
essas políticas de austeridade. Eventual redução de receitas que pode ocorrer
com a extinção ou diminuição dos impostos cumulativos pode ser compensada, por
exemplo, com crescimento econômico mais vigoroso, dados os ganhos de
competitividade que serão obtidos, gerando, consequentemente, maior
arrecadação, e maior cobrança sobre a renda e o patrimônio, atualmente
subtaxados. Melhorias na distribuição do ônus tributário, além de tornar o
sistema mais justo socialmente, representaria uma injeção poderosa no
crescimento econômico.
Creio,
no entanto, que nada disso ocorrerá se no país não se construir um projeto de
sociedade, no qual esteja claro para onde se pretende rumar, qual o papel que
caberá ao Estado, o tipo de federalismo que se pretende ter, os objetivos
econômicos e sociais que se quer atingir. À luz deste é que se contará com
condições para moldar o sistema, enquanto instrumento manejado pelo Estado,
para viabilizar estes objetivos. Sem este projeto, as mudanças no sistema devem
continuar ocorrendo de forma episódica e casuística, ao sabor dos problemas
conjunturais e financeiros, divorciadas de uma visão estratégica do futuro para
a sociedade.
Propostas como redução do número de tributos e imposto
único são alternativas viáveis para as necessidade e especificidades do Brasil?
Fabrício
Augusto de Oliveira: Reduzir o número de tributos é importante para a
simplificação do sistema, mas essa simplificação por si não resolve seus
maiores problemas, devendo ser acompanhada das mudanças necessárias para sua
modernização. Atualmente, há vários impostos, seja sobre o patrimônio ou
sobre o consumo, que incidem sobre as mesmas bases. COFINS, PIS, ISS, CIMS, IPI
e outras contribuições (sociais e econômicas) são exemplos disso entre os
impostos indiretos, o que torna o sistema tributário muito complexo e altamente
rentável a atividade do planejamento tributário, aumentando os custos para o
contribuinte. De outro lado, os impostos sobre o patrimônio, que geram baixa
arrecadação (pouco mais de 1% do PIB), apesar de em grande número (seis) não
cumprem o papel de contribuir para refrear o avanço da concentração de renda no
país.
Tanto
a tributação indireta como os impostos sobre o patrimônio podem ser alvos desta
simplificação, ao mesmo tempo em que se avança em sua modernização. No primeiro
caso, com a criação de um imposto mais amplo incidente sobre o valor agregado,
um IVA, e essa tem sido uma mudança importante que tem figurado em várias
propostas de reforma do sistema. No segundo, com a criação de um imposto mais
amplo e mais poderoso cobrado sobre o patrimônio líquido, na linha do que foi
apresentado nos trabalhos constituintes de 1988, mas que terminou ali sendo
rejeitado, pois contrário aos interesses das classes proprietárias ali
representadas.
Claro
que essas mudanças pressupõem negociações nada fáceis com várias áreas e níveis
de governos, à medida que mudam a equação do financiamento tanto dos governos
subnacionais como das políticas sociais. Para isso, é indispensável a criação
de mecanismos que constitucionalmente preservem suas fontes de receitas, o que
deve ser devidamente contemplado no projeto de sociedade anteriormente
mencionado.
No
que diz respeito ao imposto único, embora sedutora para alguns setores da
sociedade, representa uma proposta, felizmente até a atualidade desconsiderada,
de mentes que não compreendem nem a natureza e o papel do Estado na economia
capitalista, nem a dos impostos enquanto instrumentos de política econômica e
social. A ideia do imposto único tem por trás a visão neoliberal do imposto
como um instrumento meramente arrecadatório para um Estado que desempenhe
funções bastante restritas (o Estado “mínimo”), sem interferir na vida
econômica e social do país. Em sua essência, o imposto único (na linha de um
imposto incidente sobre transações financeiras, tal como proposto) nada mais é
que um imposto antiEstado, anticrescimento, antiequidade, antifederação e
muitos outros anti. Um imposto sobre transações dessa natureza só se justifica
como instrumento complementar de uma estrutura tributária com o objetivo de
auxiliar a fiscalização para identificar, por meio de operações financeiras
realizadas por contribuintes, atividades ilícitas e práticas de sonegação,
papel que a nossa ex-CPMF cumpria, para o qual não se necessita de contar com
uma alíquota superior a 0,01% para não prejudicar a economia e a sociedade.
Fora isso, não é o imposto que a sociedade necessita para enfrentar seus
problemas, desigualdades e desafios do crescimento econômico. Tanto isso é
verdade, que nenhum país do mundo abriu mão dos demais impostos para adotá-lo.
A experiência do Brasil é de fatiar questões
estruturais e realiza-las aos poucos. Um reforma tributária progressiva que
contribua com a consolidação das conquistas nos últimos doze anos pode ser
feita dessa maneira?
Fabrício
Augusto de Oliveira: A falta de ousadia e de vontade política do governo
de enfrentar essa questão vem levando-o a realizar apenas mudanças pontuais no
sistema, às vezes verdadeiros remendos, sem que os seus problemas sejam
resolvidos. Pelo contrário, alguns até têm se agravado com essas mudanças. O
fatiamento das questões até poderia se justificar, diante das dificuldades
enfrentadas para a realização de uma reforma mais abrangente, se tivesse como
farol uma proposta global e seguisse um calendário previamente negociado e
acertado. Não é o caso. Nas tímidas propostas que são apresentadas termina
ocorrendo um “fatiamento do fatiamento”, por falta de acordo entre os agentes
que as negociam, ampliando as mazelas do sistema, ao contrário do pretendido.
Para
mim, a consolidação das conquistas dos últimos doze anos, exige, primeiramente,
que se recupere a trajetória de crescimento econômico do país, que tem sido o
fator mais fundamental para a redução das desigualdades sociais de que tanto se
fala, e mesmo para a manutenção e até mesmo ampliação dos programas
redistributivistas de renda, para o que se deve contar com níveis de
arrecadação do governo robustos, que dependem deste mesmo crescimento. Além
disso, mudanças na estrutura tributária, dando maior ênfase aos impostos
incidentes sobre a renda e o patrimônio, para adequá-la a estes objetivos e
reforçar os instrumentos redistributivos, são essenciais. Não será com medidas
pontuais e nem com propostas que, via de regra, não contemplam essas mudanças
que se conseguirá preservar essas conquistas e resgatar o sistema como um
instrumento de crescimento e de inclusão social.
Alguns analistas da mídia e especialistas no
tema apontam a carga tributária do país como um fator que diminui a
competitividade da indústria brasileira e encarece produtos e serviços
internamente. Reduzir impostos para os mais ricos, pontualmente, esperando uma
compensação através da geração de empregos, aumento da produtividade e elevação
dos salários é uma alternativa?
Fabrício
Augusto de Oliveira: Embora estes analistas tenham razão sobre os efeitos
nocivos da carga tributária brasileira sobre a competitividade da indústria
brasileira e consequentemente sobre o crescimento econômico, não é reduzindo os
impostos dos mais ricos que se vai corrigir este problema.
A
ideia de subtaxar o capital e as altas rendas, ou mesmo de torná-los infensos
ao ônus da tributação, apoia-se na recomendação teórica equivocada, que vem lá
das escolas clássica e neoclássica da economia, de que são estes que podem
“poupar” e contribuir com investimentos para a economia, à medida que tinham o
Estado como mero dissipador da riqueza produzida, e que ganhou nova expressão
na vertente neoliberal da década de 1980 com o Governo Reagan, para quem o
corte de impostos dos mais ricos irradiaria efeitos benéficos para a produção
(teoria da economia pelo lado da oferta). Trata-se apenas de teorias
convenientes para as classes dominantes para justificarem taxações mais suaves
ou mesmo isenções para sua renda e riqueza.
Contrariamente
a essas teorias, o economista John Maynard Keynes demonstrou, em sua obra-prima
de 1936, A Teoria Geral, o importante papel do investimento e do gasto público
para o crescimento econômico, e, portanto, a falácia da tese do Estado improdutivo,
assim como a importância de políticas redistributivas, por meio de impostos
mais progressivos, tanto para o seu financiamento como para o fortalecimento da
demanda agregada e para a atenuação das flutuações cíclicas da economia de
mercado, dada a maior propensão ao consumo das classes de menor renda.
Vista
deste prisma, a redução da tributação sobre os mais ricos, o que se comprovou
com o malogro das políticas norte-americanas do Governo Reagan nos Estados
Unidos, ao invés de fortalecer, enfraquece tanto os investimentos necessários
para a economia, reduzindo a atividade econômica e minando as bases da
arrecadação e a capacidade financeira do Estado, como a demanda por consumo,
prejudicando, ao contrário do que se pretende, o crescimento econômico. Não é
este o caminho que o Brasil está precisando trilhar.
O cenário econômico brasileiro atual permite avançar
nas discussões sobre uma reforma tributária progressiva? Ela pode ajudar o
país na retomada do crescimento e na inauguração de um novo ciclo de
desenvolvimento?
Fabrício
Augusto de Oliveira: Não tenho a menor dúvida de que, no cenário econômico
atual, a reforma tributária progressiva será essencial para ajudar a pavimentar
o caminho em direção a um crescimento mais robusto e sustentado, necessário
para continuar avançando o objetivo de redução das desigualdades sociais. Mesmo
que a economia seja submetida a ajustes mais severos e amargos nos dois
próximos anos para corrigir algumas variáveis econômicas que estão fora do
horizonte e das expectativas do mercado – contas públicas, contas externas e
até mesmo a inflação -, como resultado da política anticíclica implementada, e
que são fontes de incertezas, sua solução não abre naturalmente as portas do
crescimento econômico, como o pensamento conservador apregoa.
É
preciso deixar claro que o que é chamado atualmente de modelo econômico, o tal
do tripé macroeconômico, composto pela geração de superávits primários, câmbio
flutuante e regime de metas inflacionárias, nada mais é que um modelo de
estabilidade monetária e de sustentabilidade intertemporal da dívida. E que, se
seu equilíbrio acalma e satisfaz o mercado, isso não significa que as portas do
crescimento se abram naturalmente. No caso do Brasil, há muitas pedras – e problemas
estruturais – no caminho deste crescimento e o papel do Estado é fundamental
para enfrentar o desafio de removê-las, razão por que não se pode simplesmente
descartar suas ações, considerando-as prejudiciais para o sistema econômico.
Ora,
para dar condições ao Estado de cumprir este papel e enfrentar problemas
cruciais nas áreas da educação, com melhor qualificação da mão de obra, da
saúde, da infraestrutura econômica, para ficar com algumas que oneram o
custo-Brasil, e contribuir para o fortalecimento da demanda agregada, por meio
de políticas redistributivas, é necessário reorientar suas bases de
financiamento e, neste aspecto, a reforma progressiva é essencial, deslocando a
tributação ou dando maior ênfase à cobrança de impostos sobre a renda e o patrimônio.
Sabidamente, e o livro de Thomas Piketty, O Capital no século XXI, revela isso,
um Estado de bem-estar não pode se sustentar apenas com impostos sobre os
salários e renda fixa, como manda atualmente a norma superior da tributação da
competitividade, nestes tempos de globalização. Tal norma, além de insuficiente
para dotá-lo de recursos para suas ações equalizadoras e inclusivas, essenciais
para a coesão social e para a própria reprodução do sistema no longo prazo,
agrava ainda mais as desigualdades existentes e enfraquece a demanda efetiva e
a atividade econômica, enquanto as grandes rendas e o patrimônio, crescentes e
concentrados no tempo, não se revertem necessariamente em investimentos
produtivos.
Se
a ancoragem da economia é necessária nos termos atuais do novo consenso
macroeconômico, sem uma ação deliberada do Estado de construir uma ponte para o
futuro, com um projeto de crescimento com inclusão social, o país continuará
prisioneiro do capital financeiro, para quem, na sua irracionalidade, a
desigualdade é simplesmente uma questão de mercado, e sem condições de
descortinar um futuro de maior esperança para a população.
O Congresso que assume em janeiro terá condições de
conduzir um processo tão complexo? De necessária, a reforma pode entrar na
lista das propostas dos sonhos e ser transformada num tema intocável?
Fabrício
Augusto de Oliveira: Infelizmente, isso pode acontecer. Mesmo em outras
oportunidades em que a correlação das forças políticas no Congresso se
apresentou mais favorável para mudanças nessa direção, propostas dessa natureza
não foram aprovadas. Isso aconteceu na constituinte de 1987/88, que, mesmo
influenciada por demandas da sociedade por mais equidade e políticas sociais,
depois de mais de vinte anos de arbítrio de um regime autoritário, rejeitou a
criação de um imposto sobre o patrimônio líquido (e deu em troca o imposto
sobre grandes fortunas, que nunca foi criado) e remeteu para o campo
infraconstitucional a definição de um imposto de renda mais justo, o que acabou
não ocorrendo. A primeira proposta de reforma tributária do Governo Lula, de
2003, também continha alguns pontos, embora tímidos, que poderiam contribuir
para melhorar a progressividade (ou atenuar a regressividade) do sistema de
impostos, mas o projeto final que acabou sendo aprovado terminou restrito a
mudanças necessárias apenas para a preservação do ajuste fiscal.
Isso
não significa que o governo federal deva lançar a toalha no chão e desistir de
apresentar uma proposta de reforma mais abrangente que enfrente não somente o
problema da alta regressividade do sistema como também do distorcido sistema
federativo no país. Afinal, o Executivo federal tem forte influência nessas
decisões, mas será necessário mapear os conflitos, negociar e convencer os
agentes afetados por essas mudanças e também os envolvidos nessa tarefa, de sua
importância para o futuro do país, para que ela possa finalmente sair da lista
dos sonhos e tornar-se uma realidade. Uma tarefa sabe-se, nada fácil. Mas, se
continuar se restringindo a apresentar propostas de mudanças pontuais, como vem
acontecendo, o sistema tributário brasileiro não somente continuará operando
como trava do crescimento, mas também como antípoda de maior equidade na
distribuição de seu ônus. Por isso, é preciso ousar mais. Desenhar mais
claramente um projeto de sociedade que efetivamente combine crescimento com
inclusão social, visando atrair maior apoio às mudanças que são necessárias no
sistema tributário, entendido como instrumento essencial para a viabilização e
materialização destes objetivos. Caso contrário, essa reforma continuará, de
fato, apenas figurando na lista dos sonhos.
* –
Davi Carvalho é jornalista e economista, membro da Plataforma.