“Conheces
o marinheiro, quando vem a tempestade”
Sabedoria
popular portuguesa
“Mais
vale ficar vermelho cinco minutos, que amarelo toda a vida”
Sabedoria
popular brasileira
Por Valério
Arcary* no Correio da Cidadania
Eis a questão
metodológica central em uma análise marxista: a análise da transformação na
correlação de forças social deve orientar a interpretação da mudança nas
relações de força eleitorais, e não o contrário.
A correlação
de forças não evoluiu, desfavoravelmente, para a classe trabalhadora e os seus
aliados depois de junho, embora o resultado das eleições, mesmo com a reeleição
de Dilma, tenha sido um castigo para o PT. O reformismo anêmico quase foi
derrotado. Confundir os dois processos só pode conduzir a conclusões
unilaterais, como aquela que insiste na versão da “onda conservadora”.
A crise do
lulismo está revelando um descontentamento crescente de parcelas cada vez mais
amplas da classe trabalhadora com os governos de coalizão. A decadência do PT
poderá evoluir para uma ruína de toda a esquerda? Sim, pode. Mas está colocada,
também, outra possibilidade, muito menos pessimista. A fadiga de frações do
proletariado com os limites do lulismo pode favorecer a reorganização da
oposição de esquerda.
Uma mudança na
relação de forças entre as classes
Esta mudança
nas relações de força tem muitas refrações diferentes, e com peso social
diverso: maior divisão burguesa sob a pressão da desaceleração econômica, com
frações reposicionando-se por um ajuste fiscal severo, enquanto outras insistem
na defesa de um papel regulador mais forte do Estado para defesa da indústria;
fortes deslocamentos das classes médias que tendem à polarização, tanto à
direita como à esquerda, com o enfraquecimento das posições mais moderadas ao
centro; gigantesco desgaste institucional provocado por escândalos de dimensões
bíblicas; um relançamento de ativismo sindical que vinha de 2012 e, segundo o
DIEESE, se manteve com o maior número de greves desde os anos 1980; um aumento
de escala na capacidade de impacto de ocupações de movimentos populares; um
relançamento com base de massas ampliada do movimento de mulheres etc.
Uma mudança na
relação de forças eleitorais
Já em termos
eleitorais, se compararmos o mapa eleitoral de 1989 com o de 2014, a votação do
PT se inverte: desta vez o PT perde em 15 das 27 capitais do país e na maioria
das grandes e médias cidades, incluindo importantes cidades operárias. O PT
perdeu em todas as capitais do Sul: Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba.
Perdeu em quase todas do Sudeste. Ganhou raspando no Rio (50,79% - PT/ 49,21% -
PSDB) e perdeu em São Paulo; Belo Horizonte, Vitória. Perdeu nas capitais do
Centro-Oeste: Brasília, Goiânia, Cuiabá, Campo Grande. No Norte, perdeu em
Belém, Rio Branco, Porto Velho, Palmas e Boa Vista. Em São Paulo, o PT perdeu
não apenas na capital, mas também na maioria das grandes cidades, como
Campinas, Santos e São José dos Campos e também no antes chamado cinturão
vermelho, ou seja, em quase toda a Grande São Paulo (Santo André, São Bernardo,
Guarulhos, Osasco). O PT ganhou em todas as capitais do Nordeste e também
cidades importantes do Rio, como na Baixada Fluminense (Caxias e Nova Iguaçu) e
São Gonçalo. Mas, no resultado geral, o PT ganhou nas cidades menores: 2.528
municípios dos 3.879 com até 15 mil eleitores. Também ganhou nos municípios pequenos
(entre 15 e 75 mil eleitores) – 882 dos 1.418. E perdeu em 100 das 179 cidades
médias com mais de 75 mil eleitores, em 46 das 77 cidades entre 200 mil e 900
mil eleitores; e em 7 das 12 maiores cidades do Brasil.
Junho de 2013
é a chave para uma interpretação marxista
Qual deve ser
a principal conclusão da conquista, muito apertada, de um quarto mandato pelo
PT? É possível discernir um vínculo entre junho de 2013 e outubro de 2014?
Junho desafiou a estabilidade político-social ao colocar nas ruas milhões de
jovens, pela primeira vez nos últimos doze anos, e isso foi grandioso.
Mesmo se
avaliada a intervenção manipuladora dos meios de comunicação. Mesmo quando
considerada a ação de provocadores de extrema-direita. Mesmo que ponderada a
ação ultra-esquerdista dos black blocks. As aspirações democráticas (denúncia
do papel repressivo da polícia e denúncia da corrupção) e a reivindicação de
direitos sociais como a educação, a saúde e o transporte públicos eram justas e
necessárias.
O mais
importante, contudo, é que parece estar em curso uma transformação essencial na
relação dos batalhões mais concentrados da classe trabalhadora com o lulismo e
o governo. Iniciou-se uma ruptura de massas, na escala de muitas dezenas de
milhões, de setores do proletariado com o PT. Essa relação de confiança
prevaleceu por trinta anos, ou seja, o intervalo de uma geração. Chamamos a
este processo o princípio do fim do lulismo. Aqueles que caracterizam este
processo como onda conservadora, impressionados pela votação de Aécio em
grandes centros operários, estão sobrevalorizando um dos aspectos da nova
situação.
Este processo
de ruptura com o PT está sendo, como seria previsível, muito desigual, porque
muito maior no Sul e Sudeste do que no Norte e Nordeste do país. Mas pode ser
muito progressivo, se vier a confirmar-se uma maior disposição de luta e
resistência do proletariado. Sem o desmoronamento do velho, o novo não pode
surgir. Os ritmos dos dois processos não são os mesmos. Mas a crise da
autoridade do PT abre a possibilidade de fortalecimento de novos instrumentos
de luta, para ir além da CUT e da Força Sindical, nos grandes sindicatos ainda
sob influência da burocracia sindical. E favorece a aceleração da reorganização
da esquerda.
O processo de
crise do lulismo poderá ser revertido em um quarto mandato do governo de
coalizão liderado pelo PT? Ou se aprofundará, em consequência das medidas de
ajuste e austeridade previstas? Qual das dinâmicas político-sociais
prevalecerá? Maior ativismo sindical e resistência política da classe
trabalhadora? Desgaste do lulismo diante das concessões do segundo governo
Dilma às pressões da classe dominante? Fortalecimento da oposição de esquerda?
Ou um realinhamento político face ao governo, como no giro anti-Aécio que
assistimos no segundo turno de 2014?
A crise do
lulismo
A crise do
lulismo está condicionada, como todo fenômeno complexo, por muitos fatores.
Entre muitos outros, a estagnação econômica, a inflação crescente, a corrosão
da corrupção endêmica, a ruína de mais de uma década de políticas
social-liberais, a transição demográfica (uma nova geração adulta que não viveu
os anos 80), além da impotência diante de uma agenda de reivindicações amplas
contra as opressões (legalização do aborto, criminalização da homofobia, equidade
para afrodescendentes). Dependerá, por exemplo, dos posicionamentos que o
novo governo venha a ter diante dos ultimatos de frações burguesas que exigem
um superávit primário mais alto, a redução de gastos públicos, a contenção
salarial etc. Mas dependerá, também, da capacidade da oposição de esquerda de
responder ao processo de reorganização por baixo que já começou nos locais de
trabalho.
A hipótese
central deste artigo é que o mais determinante, de junho de 2013 a outubro de
2014, parece ter sido o efeito síntese de uma lenta acumulação de mal estar
social: a mudança da relação social de forças entre as classes. Maior
inquietação burguesa, oscilações febris da classe média e o nível mais elevado
de atividade grevista são indicadores consistentes. É na estrutura da sociedade
que encontraremos a chave para a análise dos deslocamentos na superestrutura. A
temperatura político-social do país está mais alta, porque aumentou a
ansiedade, a apreensão, a aflição de todas as classes, inseguras diante do futuro,
e preocupadas em não perder as posições anteriores. Esta dinâmica explica o
início de uma polarização mais intensa que apareceu na campanha eleitoral.
O governo
Dilma já tinha sido atingido pelas ondas de choque de junho de 2013 e saiu mais
frágil das eleições de 2014. A estabilidade do regime democrático, uma das
principais conquistas da solidez da dominação política desde 1994/95, foi
desequilibrada por junho de 2013. As eleições de 2014 foram uma confirmação de
que uma nova situação se abriu: o tsunami da candidatura Marina Silva; a
recuperação da oposição burguesa com Aécio; o impacto da audiência minoritária,
porém, importante das candidaturas da esquerda socialista, especialmente, de
Luciana Genro pelo PSOL; a reação de massas aos discursos homofóbicos e
machistas das candidaturas da extrema-direita; e a montanha russa do segundo
turno.
Se a crise do
lulismo favorecerá ou não uma reorganização pela esquerda é algo ainda incerto,
que será decidido pela luta de classes, mas é possível. Os quase dois milhões
de votos na esquerda socialista através do PSOL, PSTU e PCB não são senão uma
pequena parcela da audiência que foi conquistada entre a juventude e o
proletariado. Mas é isso que esteve em disputa, tanto em junho de 2013 quanto
em 2014.
O que está em
disputa não é o destino do governo Dilma
É isso que
esteve e permanecerá em disputa, não o destino do governo Dilma. A nomeação de
Joaquim Levy para a Fazenda, de Nelson Barbosa para o Planejamento, e a
permanência de Tombini no Banco Central, com a missão de tranquilizar os
investidores, não permite qualquer dúvida de que a orientação do governo Dilma
para o quarto mandato do governo do PT será de austeridade contra os
trabalhadores. Ainda assim, a classe dominante elevará o tom de exigências sobre
Brasília.
O que não
significa concluir que a crise do lulismo será uma evolução linear, e à
esquerda, da consciência média dos trabalhadores, como ficou claro pelo papel
de Marina Silva no primeiro turno de 2014, e pelo fortalecimento do PSDB e
crescimento de Aécio Neves durante o segundo turno. Mesmo que deformadamente, a
votação sinaliza a fadiga de uma parcela ampla da classe trabalhadora com o
lulismo. A votação não permite concluir que prevaleceu o desejo de
continuidade.
Dilma se
apresentou como a protagonista de um novo governo para poder vencer. Tampouco
autoriza conclusões sobre o arraste de uma “onda conservadora”. Aécio precisou
se mascarar, e defendeu até o fim do fator previdenciário que atormenta e adia
a aposentadoria dos trabalhadores. Mesmo se é verdade que a oposição de direita
saiu reforçada das eleições, também é significativo um fenômeno novo: ainda que
minoritária, a extrema-direita “saiu do armário”, mais desafiadora que em junho
de 2013.
Diretas já,
Fora Collor, Junho de 2013
Um pouco de
perspectiva histórica nos ajuda a compreender as relações entre junho de 2013 e
outubro de 2014. Não se deve julgar um processo de luta pelos seus resultados
imediatos. Em 1984, quando das Diretas Já, na fase final da luta contra a
ditadura militar, a campanha mobilizou algo em torno de oito milhões de
pessoas, que correspondiam a 20% da população economicamente ativa. Foi a maior
mobilização política da história da nação, mas dirigida pelo PMDB de Tancredo,
Ulysses e Montoro, e o PDT de Brizola.
O resultado
das Diretas Já foi paradoxal: derrotou o governo Figueiredo, mas não foi capaz
de derrubar a ditadura. José Sarney, o último presidente da Arena/PDS, acabou
sendo o primeiro presidente do regime democrático, sem que tivessem ocorrido
eleições. O programa das Diretas Já era estritamente democrático-liberal, e os
trabalhadores estiveram nas ruas sem uma plataforma de reivindicações próprias.
O PT ocupou um papel de codireção, subordinado à liderança burguesa, mas foi
nesse processo que Lula e o PT se consolidaram como a referência nacional de
esquerda.
Relembrar
as Diretas Já pode ser útil para contextualizarmos o hiato, a defasagem,
ou a discrepância, muito comum na história, entre as enormes energias liberadas
em processos de luta de massas e as esperanças por elas despertadas, e os seus
resultados. As Diretas Já foram uma campanha progressiva, porque colocaram
em movimento milhões de pessoas, até então politicamente inativas, em choque
direto contra a ditadura militar no poder por vinte anos.
Já a eleição
da chapa Tancredo Neves/José Sarney no Colégio Eleitoral foi uma usurpação
reacionária, mas efêmera, das ilusões populares. O prestígio inicial do governo
Sarney, que se proclamou, ostensivamente, como Nova República foi como fogo de
palha: brilhou intensamente, mas por pouco tempo. Entre 1987 e 1989, o Brasil
conheceu a onda grevista mais importante de toda a sua história. E Lula foi
para o segundo turno nas primeiras eleições presidenciais, derrotando Brizola,
para terminar sendo vencido por Collor.
Em junho de
2013, depois de mais de dez anos de governos liderados pelo PT, uma explosão
espontânea levou algo em torno a pelo menos dois milhões de pessoas às ruas em
protestos com reivindicações, essencialmente ou somente democráticas, mas que
merecem ser comparados com as mobilizações de 1984. Ou, também, com as
mobilizações pelo Fora Collor em 1992, que culminaram com o impeachment de
Collor.
Entretanto, ao
contrário de 1984 e 1992, desta vez, em 2013, nenhum aparelho político teve
papel significativo. Por serem acéfalas, as mobilizações de 2013 não foram
menos significativas. Ao contrário, foram, talvez, mais impressionantes, por
isso mesmo. No intervalo de poucas semanas, todos os governos e instituições do
regime passaram, em graus diferentes de desconfiança, por um sério
questionamento.
Em 2013, as
ruas foram ocupadas pela juventude assalariada com maior instrução, em sua
maioria precarizada em empregos de salários baixos. Os batalhões mais maduros
do proletariado estiveram ausentes, embora apoiassem. As tentativas de unir
junho com o movimento organizado dos trabalhadores em dois dias de greve
nacional sob um programa de reivindicações com um corte de classe mais
definido, embora fossem a perspectiva mais animadora, foram insatisfatórias.
Dilma Rousseff venceu as eleições, apesar de junho. Mas as eleições de 2014
confirmaram o desgaste do governo de coalizão nas grandes cidades do país, onde
se concentra o proletariado. Se 1984 marcou a ascensão do PT à força política
nacional, 2013 sinalizou a decadência do lulismo, confirmada nas urnas de 2014.
A classe
trabalhadora não é a mesma de trinta anos atrás
O que nos
remete à análise do que mudou. O Brasil de 2014 é um país muito diferente do
Brasil de trinta anos atrás. Nunca o país conheceu um intervalo histórico de
regime democrático-liberal tão longo. Poucas sociedades contemporâneas viveram,
em intervalo histórico tão breve, transformações tão significativas. O Brasil
duplicou o seu PIB e a sua população nesses trinta anos. Mas esses dois
indicadores, que evoluíam nas décadas anteriores aos anos 1980, aceleradamente,
passaram a ter dinâmicas muito mais lentas.
O Brasil da
alvorada do século 21 é agora uma nação com crescimento lento, que caiu da
média histórica em torno de 7% ao ano para algo inferior a 2,5%, e a taxa de
fecundidade desabou de mais de 5% para menos de 2%. A desaceleração econômica
foi compensada, parcialmente, pela transição demográfica, mas isso não impediu
que a desigualdade social, embora tenha sofrido oscilações nesses trinta anos,
já que aumentou nos anos 1990 e caiu nos anos 2000, não tenha diminuído de
forma significativa. O Brasil permaneceu, essencialmente, depois de três
décadas de regime democrático-eleitoral, um país ainda entre os mais injustos.
Essa
perspectiva histórica é indispensável para atribuir sentido à avalanche de
mobilizações de junho de 2013, e aos resultados eleitorais de 2014. Sem
compreendê-los, será impossível interpretar as transformações que o país viveu
nesses trinta anos. A hipótese central deste texto é que estes dois processos
estão relacionados, e revelam que os limites políticos da influência do
lulismo, ou seja, a corrente político eleitoral que governa o Brasil nos
últimos doze anos, são hoje muito grandes. O PT perdeu as eleições nas maiores
cidades do país, onde se concentra a maioria dos trabalhadores. Essa massa
assalariada, que votava em esmagadora maioria no lulismo até 2010 e não o fez
em 2014, mudou, também, em muitas outras dimensões. Há uma nova classe
trabalhadora no Brasil. Ela nunca foi, proporcionalmente à população
economicamente ativa, tão grande, tão concentrada e tão instruída.
Este
proletariado pode ir além do lulismo. Sua disposição de luta poderá favorecer
uma reorganização pela esquerda. Se encontrar uma esquerda capaz de responder
ao desafio histórico de ir além do eleitoralismo. Porque as lutas decisivas são
aquelas que o futuro nos reserva, não as que ficaram para trás.
Nota:
Foram
contabilizadas 86,9 mil horas paradas em 2012. Há, neste indicador, a
confirmação de uma tendência de aumento nas horas paradas que vem sendo
percebida mais claramente desde 2009. A série histórica também revela que o
total anual de horas não trabalhadas em 2012 é o maior desde 1991 - www.dieese.org.br/balancodasgreves,
consulta em outubro 2014.
*Valério
Arcary é professor titular aposentado do IFSP.
Originalmente
publicado em Marxismo 21 - http://marxismo21.org