Por
Dagmar Vulpi - junho de 2012
Tentarei
com esta postagem amenizar a inquietação de um amigo. Ele publicou,
indignado, no grupo Consciência Política e Razão
Social, manifestando-se completamente contrário ao
Auxílio-Reclusão — e, além disso, demonstrando desconhecer a
realidade da aplicação dessa lei.
Antes de julgarmos, é
preciso compreender do que realmente se trata.
O
que diz a lei
O
advogado Guilherme Fernando Ferreira da Silva
explica:
O
Auxílio-Reclusão é um benefício devido aos
dependentes do segurado do INSS preso em regime fechado
ou semiaberto, encerrando-se quando ele obtém liberdade.
Apenas
têm direito ao benefício os dependentes do segurado que mantém
a condição de segurado da Previdência Social e não
estão empregados ou recebendo salário no momento da
prisão.
O
teto é calculado sobre a média de 80% dos
maiores salários de contribuição do segurado, conforme a
Portaria nº 8, de 13 de janeiro de 2017.
O
valor é dividido entre os dependentes, e não
somado.
Em
caso de falecimento do preso, o auxílio
transforma-se automaticamente em pensão vitalícia.
Tudo
isso está previsto no Artigo 80 da Lei nº 8.213/1991.
A
história do Chico
Agora,
para ilustrar o funcionamento da lei, contemos a história de
Francisco, ou simplesmente Chico —
personagem simbólico de tantas realidades brasileiras.
Chico,
hoje com 30 anos, nunca havia trabalhado com carteira assinada.
Caçula de oito irmãos, viu quatro morrerem, um ser preso, e perdeu
o contato com as duas irmãs que se casaram e sumiram no mundo.
Criado pela avó, uma lavadeira quase octogenária, passou a vida
sustentado por ela. Quando a velha morreu, herdou o barraco — e o
vendeu, decidido a dar um “chute na miséria”.
Apostou
todo o dinheiro num carregamento ilícito e, como era de se esperar,
foi passado para trás. Perdeu tudo. Sem ter a quem recorrer — e
com a consciência de que “todo investimento tem risco” —,
desceu do morro decidido a tentar a sorte como ajudante de obras.
Na
sexta-feira em que conseguiu o emprego, recusou começar de imediato:
“Trabalhar
hoje? Sexta, nesse calor? Dinheiro certo no fim do mês... Melhor
comemorar com umas geladas”, pensou.
E
assim foi. Segunda-feira chegou, ele apareceu, trabalhou seis meses —
entre faltas, atrasos e cochilos no fosso do elevador. Mas Chico não
pensava em construir o futuro com cimento e suor: queria um golpe de
sorte.
Descobriu
que naquele dia o dinheiro dos pagamentos de todos os funcionários
estaria no escritório da obra. Planejou tudo. Entraria, roubaria e
sumiria.
Mas o destino — esse velho roteirista de ironias —
o surpreendeu. No momento exato do assalto, a secretária entrou na
sala. Um tiro, um corpo no chão, e Chico no chão também —
rendido pelos seguranças e entregue à Dona Justiça.
O
benefício entra em cena
Preso,
Chico agora é estatística. E seus cinco filhos,
dependentes.
Pela lei, eles passam a receber o Auxílio-Reclusão.
A mãe, dona Maria, assume o lar e o benefício
mensal, que no início soma R$ 915,05, corrigidos
religiosamente.
O Estado cumpre seu papel: garante o sustento
das crianças que nada têm a ver com o crime do pai.
Com
o tempo, as visitas rareiam. Os meninos crescem e quase não lembram
mais do homem que, em liberdade, bebia e batia neles e na mãe.
A
vida da família muda: roupas novas, dentes reconstruídos, cabelo
alisado e perfume caro. Maria virou “madame do morro”.
E,
ironia das ironias, o pior erro da vida acabou virando o
melhor negócio.
Até
que, certo dia, chega a notícia: Chico se enforcou na
cela.
Ninguém entendeu como. O laudo pericial foi
inconclusivo. Apenas o companheiro de cela, Pedrão,
jurou ter ouvido os últimos gemidos do amigo — e, misteriosamente,
foi solto logo depois, graças a um advogado que surgiu do nada.
Com
o “suicídio” de Chico, o Auxílio-Reclusão
transforma-se em pensão vitalícia.
Agora é oficial:
o homem que nada construiu em vida, garantiu à família uma
estabilidade que nunca teve em liberdade.
Reflexão:
A
história de Chico é caricata, mas retrata uma distorção real de
percepções — mais moral do que legal.
O Auxílio-Reclusão
não é prêmio ao crime, mas proteção social à
inocência dos dependentes. O problema, como quase
sempre, não está na lei, e sim na lente de quem a
observa.
Enquanto
o país insistir em confundir justiça com vingança, continuará
punindo filhos pelo pecado dos pais — e a miséria seguirá sendo o
cárcere mais duradouro do Brasil.