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terça-feira, 28 de outubro de 2025

Meu Último Duelo com Django

Por Dag Vulpi

Naquele tempo, o medo tinha nome, rosto e chapéu de abas largas. Crescer nos anos 70, em um bairro recém-nascido e cheio de personagens improváveis, era viver entre a inocência das brincadeiras e o susto dos monstros reais — aqueles que não saíam da televisão, mas dobravam a esquina.

O maior terror da meninada daqueles dias não vinha dos filmes de faroeste nem das histórias de assombração.
Nossos vilões eram de carne e osso, moradores das mesmas ruas, frequentadores das mesmas esquinas.
E havia muitos deles.

Vivíamos em plena década de 1970 — tempo de ditadura, êxodo e esperanças empacotadas em carrocerias de caminhão.

Gente de todo canto do Brasil partia rumo às cidades grandes em busca de um futuro mais promissor.
Cada mudança que chegava trazia não apenas móveis e sonhos, mas também um novo personagem para o nosso catálogo de curiosidades humanas.

Minha família estava entre as que decidiram mudar o rumo da própria história.
Viemos do interior do Espírito Santo, de uma grande fazenda de café que pertencia ao meu avô materno.
Mas ser neto do dono não significava fartura: meus pais eram meeiros, e o pouco que se colhia dividia-se em partes iguais.

Essa, porém, é outra história — prometo contá-la em postagem futura.
Hoje, quero falar de alguns personagens do Soteco dos anos 70.

O bairro já fervilhava de figuras “diferentes” — aos nossos olhos infantis, qualquer detalhe bastava para distinguir alguém: um penteado, um jeito de falar, um andar desajeitado.
Bastava uma frase fora de lugar para que o recém-chegado ganhasse um apelido e fosse eternizado como personagem.

Naquela época, ainda não existia o “politicamente correto” nem a palavra bullying.
Éramos apenas crianças rindo de nossas próprias crueldades ingênuas.

Tínhamos um elenco invejável: Patronzinho, Maria Sujinha, Gabiroba, Maria Taroira, Galerão, Índio, Paulinho Caveirinha... e o mais temido de todos: Django.

Django era um homem alto, forte, calado e sempre de chapéu preto.
Passava os dias vagando pelo bairro em silêncio, e a molecada não lhe dava trégua.
Aos poucos, ele passou a nos odiar com razão — e nós, a temê-lo com o mesmo fervor.

Por algum motivo, Django começou a aparecer nos arredores do Colégio Cândido Marinho — o único da região, portanto, o centro nervoso da infância sotequense.
Ele surgia nos horários exatos das entradas, recreios e saídas.
Parecia ter decidido enfrentar a criançada, e isso causava pânico em pais, alunos e até em Dona Glórinha, a temida diretora.

Mas nós, os “veteranos” de oito a dez anos, não recuávamos.
Armados de nossas pistolas de madeira enfiadas no cós do short, transformávamos cada esquina num cenário de faroeste.
O som de nossas bocas imitava os tiros, e Django corria atrás de nós, desengonçado, espumando de raiva.
Era o terror em forma humana — e, de certo modo, também parte do espetáculo.

Até que um dia, o inevitável aconteceu.

Um de nós teve de sair sozinho.
A mãe mandou o menino à mercearia Sipolatti, e ele tentou argumentar, mas não teve apelo.
A rua estava deserta.
Chamou pelo amigo da casa em frente — silêncio.

Sem opção, foi.
E foi de fininho, colado nas cercas, coração disparado.
Chegou são e salvo.
Comprou o que precisava, o Tio Severino anotou na caderneta, e lá foi ele de volta.

Mas a sorte havia ficado na mercearia.
Na primeira esquina, lá estava Django, à espreita, como se esperasse aquele momento há anos.

O menino — eu — paralisou.
Senti o calor de um líquido escorrendo pelas pernas.
Sim, aquele medo tinha cheiro e temperatura.

Pela primeira vez, olhei fundo nos olhos vermelhos do homem que assombrava meus dias.
E, surpreendentemente, ele sorriu.

Um sorriso amarelo, vacilante, mas humano.
Moveu-se para o lado e me deixou passar.

Não disse palavra.
Nem eu.
Apenas corri — e corri como nunca.

Aquele foi o meu último duelo com Django.
E, como nos faroestes do cinema, o verdadeiro artista da história era ele.

Reflexão:

O tempo transforma os monstros em memórias e os medos em metáforas.
Talvez Django nunca tenha sido o vilão que imaginávamos, mas apenas mais um errante tentando encontrar seu lugar no mundo — assim como nós, crianças armadas de inocência e coragem de faz-de-conta.

Nota do autor

Muitos amigos de Soteco me lembraram, com carinho, que o personagem chamado D’Jango nesta crônica era, na verdade, o nosso conhecido Ringo — figura marcante daqueles tempos e dono de muitas histórias que atravessaram gerações.

Mantive o nome D’Jango como surgiu na lembrança, porque a memória também tem dessas liberdades: às vezes mistura o que foi real com o que ficou simbólico. O importante é que o espírito da recordação permanece o mesmo — a saudade de um tempo em que até os “vilões” do bairro tinham seu lugar nas aventuras da infância.

Fica aqui o meu agradecimento a todos que ajudaram a corrigir e a completar essa lembrança coletiva. No fundo, cada um de nós carrega um pedaço dessas histórias — e é bonito quando elas voltam a se encontrar.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

A Morte Lenta do Pensar: por que estamos perdendo a lucidez?

 

Dag Vulpi 09/10/25

Vivemos na era das respostas instantâneas — e, paradoxalmente, das mentes preguiçosas. Em meio à enxurrada de dados e opiniões, confundimos informação com sabedoria e barulho com pensamento. O resultado? Um mundo cheio de certezas, mas vazio de reflexão.

O pensamento crítico está desaparecendo — não por falta de conhecimento, mas por excesso de distração.
A cada toque na tela, uma dúvida se dissolve antes mesmo de amadurecer. O que antes exigia contemplação, agora se perde em segundos.

De Sócrates a Descartes, de Kant a Hannah Arendt, os grandes pensadores ensinaram que pensar é duvidar, e duvidar é um ato de coragem. Mas hoje, questionar parece incômodo demais — é mais fácil aceitar a opinião pronta, a manchete moldada, o algoritmo que decide o que “merece” nossa atenção.

O “efeito Google” nos deu o conforto da resposta imediata, mas roubou o hábito da busca.
Vivemos em câmaras de eco, onde cada clique reforça o que já acreditamos.
O perigo é silencioso: deixamos de pensar com a própria mente e passamos a reagir com os reflexos do sistema.

Nietzsche alertou que “quem tem por que viver, suporta quase qualquer como.”
Mas e quem já não pensa sobre o porquê?
Sem reflexão, a vida se reduz à repetição — e a inteligência, a uma lembrança romântica de uma era que acreditava no diálogo e na dúvida.

Talvez ainda haja tempo.
Talvez o primeiro passo seja desaprender o automatismo e reaprender o espanto.
Porque pensar, no fim das contas, é o último ato de resistência.

 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Quando o Humano Deixa de Servir

 

Dag Vulpi 09/10/25

Essa é a pergunta que Franz Kafka transforma em pesadelo silencioso em A Metamorfose.
Mas o livro não é sobre um homem que vira inseto.
É sobre como nós — todos nós — transformamos pessoas em coisas quando deixam de servir.

Gregor Samsa acorda um dia e descobre que não é mais visto como filho, irmão ou trabalhador — apenas como um incômodo. E é nesse instante que sua metamorfose se completa: não quando seu corpo muda, mas quando os outros param de vê-lo como humano.

Kafka apenas dramatizou o que fazemos todos os dias em escala menor:
quando deixamos de atender uma expectativa e somos descartados;
quando o valor de alguém é medido pelo que produz, não pelo que é;
quando o afeto se torna utilitário e o olhar se transforma em indiferença.

A verdadeira metamorfose não está em Gregor, mas nos que o cercam.
Eles é que se transformam — em máquinas de conveniência, em olhos cegos, em silêncios confortáveis.

E talvez esse seja o horror kafkiano:
perceber que o monstro nunca esteve preso no quarto.
Ele sempre esteve do lado de fora da porta.

Sugestão de leitura: "A Metamorfose" - por Franz Kafka

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