quinta-feira, 6 de julho de 2017

Uma noite conjecturável


Por Antonio Luiz Carlini

Estava frio, era setembro, muitos já sabiam sobre o Concílio Vaticano II, pois, uns souberam pelo rádio, outros por alguém que leu jornais ou revistas e transmitiu a informação, onde que a normatização da Santa Sé, ao certo seria mais bem explicada pelo Padre quando viesse na Comunidade. Conjecturações sobre o que iria ser, estar em uma MISSA com o Sacerdote lendo ou falando o Ofício Sagrado em Português e não mais em Latim conforme nossos avós estavam acostumados. A Igreja seria totalmente diferente, “pecadores” poderiam ler a Bíblia e realizar cultos substituindo o Padre, diferente da proibição anterior pelos Dogmas Canônicos.

No interior desta casa, mais precisamente no anexo, por dentro da varanda, a cozinha, onde ficava o enorme fogão, este com chapa de ferro contendo seis buracos, diâmetro com dezoito centímetros de raio. Permitindo caber ali, aquela panela de ferro gusa para fazer uma polenta de três litros de fubá. Fogão que passando o dia inteiro aceso, fazia da cozinha, um ambiente aquecido para, pelos menos por umas duas horas, a família, nunca com menos de dez membros, ficar reunida ali, todas as tardes, quando não fosse o dia de rezar o terço, o que era certo, ao menos uma vez por semana. Também contemplava a cozinha, uma enorme mesa de peroba, pesada igual os seus dois bancos, onde em cada lado, cabiam no mínimo nove pessoas.  Foram muitas as “Béstias” jogadas naquela mesa de jantar, onde acomodávamos para ouvir os “Nonno” experientes narrarem histórias. Mencionavam provérbios e suas sempre filosóficas “moral da história”. Fazendo delas, ferramentas didáticas, para uma formação dos filhos, netos, sobrinhos netos da vizinhança, feitos parentes, dada a endogâmica tendência, quando dos matrimônios. O que fazia da comunidade, todos serem parentes.

Naquela noite de segunda feira, lá estava Ângelo Sipolatti, na casa dos primos, Ângelo Scalzer e Augusta Carlini Scalzer. Fazia-se hóspede para pernoite, retornando de Santo Antônio do Canãa, com destino a Alto Caldeirão, onde residia. Consigo pesando sobre o cavalo trouxera algumas armas de fogo e certa quantidade de munição, cujo intuito era negociar, vendendo ou barganhando, com exímia fidelidade ao que tinha sido seu pai Basílio Sipolatti.

Argumentava com entusiasmo, entre um “ANTI DIO” e outro, a importância de toda casa ter ao menos uma garrucha, além das espingardas de caça, pois, sempre havia o perigo de aparecer algum forasteiro querendo lograr perigo à família. O que com um revólver, ou uma garrucha 380, carregada de cartuchos recicláveis, poderia ser prévia defesa em um inoportuno ataque de mau elemento forasteiro, como os que circulavam pelas estradas. Narrava fatos de ocorrências onde uma arma de cano curto já havia evitado assaltos, conquanto outros onde um pai de muitas moças, poderia afugentar um pretenso genro indesejável, tal aqueles mais atrevidos, que se aproximavam das donzelas sem antes falar com os pais das ditas cujas.

Quando fomos para a cozinha, abandonando as BELISCAS, por que um primo adolescente queria ver as armas, estas foram guardadas naquele pacová (picuá, para os italianos) de lona, também feito alforje, pois, não queriam que tais objetos perigosos ficassem sob o olhar das crianças, muito menos dos púberes meninos, atraídos pelo anelo de ostentar posse de uma!

Nonno e Nonna Scalzer tomaram de um tiçãozinho cada e, acenderam seus cachimbos, enquanto o Sipolatti, como bom vendedor, agora tentava lhes vender o cavalo, que já estava em seu pasto, inicialmente para o pernoite, mas que por certa quantia, poderia ser para sempre. Porém, os Scalzer não queriam cavalo, argumentando ser mais útil um burro, pois, servia de montaria, além de cargueiro, quando necessário. Entretanto, um burro e, não uma mula, já que os adolescentes da comunidade poderiam criar historinhas sobre a fêmea de muar, com seus hormônios efervescentes! Muitas gargalhadas sucederam ao comentário, mas nós, infantes inocentes, não entendemos o porquê daquele riso!

 Nonno Ângelo Scalzer, com a palavra, argumenta, perante uma assembleia de crianças e adolescentes curiosos, que uma arma em casa nem sempre evita uma tragédia, se a sorte, junto com o devido treinamento, não for possível de serem colocados em prática... Narrou:

- Lá para as bandas de Vinte e Cinco, quando eu era criança em Nova Valsugana, onde nasci, um dono de terras, muitas terras, morador de uma linda casa de fazenda, com muitos quartos e obviamente, muitas janelas, por muitas vezes, estas ficavam abertas à noite, já que nem sempre havia tempo ou lembrança de fechar todas. Em um daqueles inúmeros quartos, tinha aquele fazendeiro, escrivaninha importada e baú com joias e outros objetos de valor, além de estar sempre ali, quando estivesse em casa, seu alforje contendo sempre muito dinheiro, seja para pagar empregados, seja para aquisição de mais animais ou terras. Porém, aquele quarto era muito longe da cozinha, na qual ele e esposa cuidavam do bebê, enquanto os outros filhos, já dormiam em outros quartos longe daquele da escrivaninha, também depositário das armas da fazenda, inclusive winchester e mosquete, (cravinocci para os italianos) além de revolver e garrucha.  Da cozinha ouviram um barulho lá no quarto dos valores. Ela tomou o bebê nos braços e ele, sem levar lamparina ou lampião, correu corredor adentro, na direção daquele quarto. Chegou até lá e viu um vulto de homem mulato já escalando a janela para fugir. Percebeu não haver tempo de pegar em armas, então agarrou o ladrão pelo meio, para evitar sua fuga, enquanto gritava para a esposa tomar de um revólver e chegar para atirar à queima roupa no invasor que passava o alforje surrupiado para a mão esquerda. Ele mais pesado e com os dedos entrelaçados, com os braços, circundando o abdome do assaltante, o impedia de sair. Da porta, com o bebê no colo, a claridade da janela permitia a mulher ver a cena e o ladrão pedindo aos gritos: - Me largue óchent! Me solte óchent! Me largue, cabra da peste! Ô homi pesado da gôta!  Trinta segundos de terror, para aquela mulher, sucedidos por outros piores, depois que viu seu marido caindo ao chão, aquele vulto saindo pela janela, levando o alforje com o dinheiro e um revolver. Saiu ela correndo, indo buscar o lampião para tentar entender o que se passara.

Na casa dos Scalzer, da janela da cozinha, por onde se alcançava a pia, (foto), por uma fresta entrou uma pequena barata d’água que entrou em minha boca. Esta que estava aberta, pois, olhava eu, para aquele patriarca, com uma expectativa neurótica pelo desfecho da estória. Teve alvoroço no ambiente com meu escândalo para evitar engolir a barata, uma daquelas comuns nos córregos, mas vítima da luz, quando foge dos morcegos em sua tentativa de deslocar-se para mais longe nos córregos em que vivem. Muitos vieram em meu socorro. Ângelo Sipolatti me deu uma tapa nas costas que dói até hoje. Cuspi a barata depois de abrir a porta do lado oposto da casa e, cobrava o fim da narrativa do Tio Nonno Angelim, quando Ida Rochesso, a nora dos Nonno, comentou que uma de suas meninas, havia derramado água onde esteve sentada no chão. Entretanto a menina confessou dizendo que ao final da estória, iria ao quarto trocar a calcinha, porque o líquido no chão não era água, outrossim, emoção com a narrativa... Alguns riram da emoção, enquanto eu cobrava a conclusão, pois, sabia que aos meus oito anos, eu iria para casa passar mais uma noite de pesadelos, só que desta vez, com personagens diferentes, pois, em minha cabeça havia entrado a informação de que algum “cangaceiro”, personagem dos livretos de “Literatura de Cordel”, poderia estar zanzando em nosso Município.  - Exato! Bem pensado! Aos oito anos já tinha lido ao menos quatro impressos da Literatura do Sertão Nordestino! -. Mesmo com medo dos pesadelos, quis o final da estória. Cobrei, outros cobraram. Portanto, aquele ancião calmo, que seria excelente GRIÔ, se vivesse em cidade histórica com turistas. Encantava-nos com seus rodeios e preâmbulos, ilustrando em nossos pensamentos, até a mais fabulosa das possíveis estórias!

- Então, meninos e meninas, a mulher chegou ao quarto com o lampião, enquanto o bebê, deixado lá na cozinha chorava muito alto, ele viu o marido agonizante. Muito sangue no chão do quarto. – Mas como seria possível, se nenhum tiro foi disparado? Entre um e outro grito daquela mulher, a dita cuja ouviu o homem balbuciar suas últimas frases em vida: - Cuide das crianças! Venda tudo e se mude para longe! O ladrão me esfaqueooooou!  Desfaleceu! Fez a passagem, golpeado por uma faca dentro de um quarto onde havia várias armas de fogo!


“Não vos esqueceis, meus filhos, netos e sobrinhos que a melhor arma é a fé, por que armas de fogo servem para atacar o semelhante, mas muito pouco servem, para nos defender do ataque, proveniente de um semelhante desprovido da fé no Ser Supremo!”

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