Por
Antonio Luiz Carlini – 04/05/1981
Éramos quatro irmãos, mais mamãe e o repugnante padrasto, totalizando seis pobres naquele lar sobrevivendo com dificuldades, perante a crise econômica atravessada pelo País, depois dos investimentos homéricos e inconsequentes de Juscelino Kubitschek, o que resultou nas confusões contemplando o estúpido Jânio Quadros e o incauto João Goulart. Entretanto já eram mil novecentos e sessenta e cinco e, a agrura com as necessidades inadiáveis, a cada dia, vestir-se e alimentar-se, tornava-se muito mais penoso, onde algumas famílias sobreviveram à fome, até concorrendo com os porcos, no compartilhamento de banana verde, inhame, mandioca, palmito, por que ao menos chovia mais, o que permitia tê-los no caldeirão de ferro para os suínos e para si, no acompanhamento com o feijão e a polenta, estes que raramente faltaram. Porcos e galinhas, vendiam-nos pelo sal, a vestimenta, material didático, açúcar branco caríssimo, quando a rapadura escasseava na entre safra da cana, também ingrediente na alimentação dos animais, quando não ceifada para a produção do açúcar mascavo, -rapadura- que deixava o café ralo, com gosto horrível, enquanto farinha de trigo sempre artigo de luxo, uma vez por ano, na ocasião de Natal e Ano Novo, três meses depois de ter visto um caminhão de cana ir, para só retornar dez litros de cachaça, - tesouro valioso. – A erradicação dos cafezais, foi como se tivéssemos matado a Galinha dos Ovos de Ouro, ou sacrificado a vaca de leite, outra consequência de má gestão do Governo Federal, combatendo com estupidez, a crise do café, demandando seis anos para recuperar seu preço no mercado internacional!
Lembramos
bem que algumas famílias de Várzea Alegre e entorno, depois do monopólio das
lavras, onde estavam aquelas jazidas de “Águas Marinhas e as Ametistas”,
usufruíam de conforto e comodidade, para nos deixar de “queixo caído”, com as
regalias a que se premiavam, no que concerne, ter dinheiro e poder comprar tudo
o que para nós só aparecia em sonho! Víamos o ônibus da foto ao lado, passar
diante de nossa choupana/tapera, trazendo de Colatina ou Santa Teresa,
mercadorias de toda a sorte, das quais só usufruiríamos, quando se completasse
nossa magreza, tão extrema, que nos permitiria passar pelo buraco da agulha,
rumo ao paraíso, onde os adquirentes daquelas mercadorias não passariam com
seus Camelos, conforme a Metáfora da Parábola, professada no Evangelho.
Entrementes, aos quatro de setembro daquele ano fatídico como outros tantos,
vimos passar diante de nossa humilde moradia, um automóvel azul, uma Mercedes
de Luxo. Seguia na direção de Várzea Alegre, com dois ocupantes, lento pela
estrada de terra, mas com velocidade a não nos permitir lavar a poeira de sua
fuselagem, com nossa saliva, dado o montante desta, que nos escorreu ao ver tão
bela preciosidade. Porém, no dia seguinte, a mando de mamãe fui à Sede do
Distrito e novamente vi a Mercedes. Fofoqueiros de porta de Bar informavam que
o proprietário da máquina, fizera de um quarto da Pensão da Dona Rosa Badke, um
escritório para comprar gemas, priorizando águas marinhas. Que ali já realizara
muitas aquisições, mas ainda tinha na mala de dinheiro, quantia para comprar
todas as terras em torno do Arraial. Não vi dinheiro, apenas os burburinhos
sobre aquela inusitada visita, do homem do Rio de Janeiro, onde o carro era
licenciado, que apresentava sotaque turco, não desmerecendo ninguém com o
desdém comum aos empresários milionários. Depois reconheci que em minha humilde
insignificância aos dez anos, conhecera um joalheiro carioca, de origem sírio
libanesa, tratando com sutileza e educação, qualquer maltrapilho cidadão.
Nada de importante para mim, mas muita negatividade para formação de minha personalidade e a de meus colegas de escola, ao vermos as roupas e os sapatos do filho daquele rico, que o acompanhou na viagem ao interior de nosso Estado. Pois, em sua trivialidade, à qual estava acostumado, ostentava de forma natural, roupa e calçado que jamais veríamos, senão em recortes de Revistas.
Imagem daquilo ficou gravada na memória. Veio o dia sete, feriado nacional, no Rio de Janeiro ou noutras cidades, mas não na roça, onde apenas os dias Santos eram feriados. Mais ou menos quinze horas e aquele automóvel apresenta necessidade de completar o Radiador, tendo o homem, o estacionado em frente do acesso à nossa pinguela sobre o Rio Santa Maria do Rio Doce, ainda com muita água e para nossa salvação, piscoso.
Aquele sírio libanês sugere ao filho: - Dino desce um pouco, pegue pão e seu Grapete* ou crush*, faça um lanche, aproveite a parada e alimente-se! Apesar de gorduchinho, aquele menino de talvez uns treze anos, depois de descer da Mercedes, respondeu: - Pai, não “extou” com fome! Maix vou ali ver se oix peixex dexte rio goixtam de pão!
Observação: O menino era carioca e eu capixaba do interior, onde prevalecia o dialeto italiano interiorano, ouvindo um carioca pela primeira vez. Notei que o s do paulista ou do mineiro ali era trocado pelo X.
Uma sacola com muitos pães nas mãos, sapatos caros sobre a pinguela e, sem os migalhar, os atirou ao rio, um a um. Contei vinte e cinco arremessos. Depois de ter os olhos esbugalhados vendo aquele tesouro sendo jogado no Rio, que flutuando era levado na direção da cachoeira, me apavorando com o desperdício, tomei da peneira de banar feijão, enquanto ouvia o homem chamar o Dino para prosseguirem. Entrei no rio, já quase às dezesseis horas e pesquei vinte pães franceses encharcados, prestes a submergir. Cheguei em casa com os pães e minha irmã questionou dizendo que eu havia dito serem vinte e cinco. Retornei lá com a peneira e resgatei os cinco que haviam parado mais acima, encostados na “Cataia*” que avançava rio adentro nos períodos de estiagem, onde o rio tinha uma espécie de mini enseada.
Aquilo foi o nosso MANÁ! Um presente vindo do céu! Pão francês! Farinha de trigo sem misturas, raríssimo lá em casa! Mamãe os colocou em um tabuleiro de assar BROAS de FUBÁ ou as mironhas* de inhame, aipim ou batata doce. No dia seguinte, ou seja, aos oito de setembro de mil novecentos e sessenta e cinco, tivemos pão torrado com café de rapadura em nosso desjejum, repetindo-se no dia nove!
*Cataia= arbusto de folhas dicotiledôneas e hastes longas que crescem nas margens de rios.
*Crusch= Refrigerante daquela época.
*Grapete= Refrigerante contemporâneo ao Crusch
*Mironha= espécie de bolo/broa a partir de farinhas, contemplando tubérculos como aipim, batata ou inhame, em sua receita.
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Dag Vulpi