Não sei se vocês sabem, mas muito
antes da Revolução Russa já existia, no século 19, um socialismo cristão,
inclusive nos Estados Unidos, embora rejeitado pela igreja católica –em 1931, o
papa Pio XI chegou a publicar que “ninguém pode ao mesmo tempo ser bom católico
e um socialista verdadeiro”. A admoestação papal não foi suficiente, no
entanto, para impedir o surgimento da Teologia da Libertação e de padres e
bispos abertamente simpáticos ao socialismo, sobretudo na América Latina.
Existem muitos cristãos que vêem
Jesus como socialista –Hugo Chávez, por exemplo, que costumava dizer: “Jesus
Cristo foi o primeiro socialista da História: dividiu o pão e o vinho. E Judas
foi o primeiro capitalista: vendeu Jesus por trinta moedas”. No Novo
Testamento, o discurso de Cristo sempre em favor dos pobres e radicalmente
contra os ricos colabora para esta percepção.
Esta semana, o papa Francisco
publicou sua primeira exortação apostólica,Evangelii Gaudium, em que faz
severas críticas ao capitalismo, ao consumismo e à cultura do dinheiro. Não é a
primeira vez. Em setembro, o argentino já tinha pronunciado um discurso
anti-capitalista na ilha da Sardenha, na Itália. “Neste sistema sem ética,
no centro, há um ídolo, e o mundo tornou-se idólatra do dinheiro”, disse então.
No texto divulgado agora, Francisco
aprofunda este sentimento contra a idolatria do dinheiro. E cita são João
Crisóstomo (o “sábio da antiguidade” que menciona), perseguido e desterrado
pelo clero e pelo império romano no século 5 por seu combate à ambição, à
avareza e à corrupção moral. Grande orador, Crisóstomo atacava continuamente os
ricos, e o trecho citado pelo papa é claro ao se referir à exploração dos
pobres por eles.
Os alvos de Francisco são não só os
ricos como também os apóstolos do livre mercado: “Alguns defendem (…) que todo
o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo
produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi
confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade
daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema
econômico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar.”
Parece até Pepe Mujica falando…
Será que o papa Francisco, ao contrário do antecessor Pio XI, aprova o socialismo
cristão? Nos Estados Unidos, a direita está espumando pela boca e apontando
“marxismo puro” nas palavras do papa (aqui).
Leiam abaixo os trechos onde Francisco critica a desigualdade social e a
economia da exclusão (“uma economia que mata”) e julguem vocês mesmos. A
íntegra do texto está aqui.
***
EVANGELII GAUDIUM
Papa Francisco
1. Alguns desafios do mundo atual
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica, que
podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São
louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo,
no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos esquecer
que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia
precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o
desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países
ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de
respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É
preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta
mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos,
velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações
tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da
vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum
poder muitas vezes anônimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro para
assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer “não a uma
economia da exclusão e da desigualdade social”. Esta economia mata. Não é
possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia,
enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode
tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam
fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e
da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco.
Em consequência desta situação,
grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho,
sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo,
como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início
a cultura do “descartável”, que aliás chega a ser promovida. Já não se trata
simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com
a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois
quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora.
Os excluídos não são “explorados”, mas resíduos, “sobras”.
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da “recaída
favorável” que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo
livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social
no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma
confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos
mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. Entretanto, os excluídos
continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os
outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma
globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de
nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama
dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma
responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar
anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que
ainda não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de
possibilidades nos parecem um mero espetáculo que não nos incomoda de forma
alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com
o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas
sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua
origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser
humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex
32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na
ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. A
crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus
próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência de uma orientação
antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades:
O consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da
maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal
desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos
mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos
Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova
tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos
juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os
cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção
ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A
ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a
fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil,
como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta.
Não a um dinheiro que governa em vez de servir
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a
recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo
sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza
o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e
degradação da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma
resposta comprometida que está fora das categorias do mercado. Para estas, se
absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na
medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de
qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite
criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os
peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as
palavras de um sábio da antiguidade: “Não fazer os pobres participar dos seus
próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens
que aferrolhamos”.
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria
uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem
exorto a enfrentar este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer
naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não
governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de
Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e
promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da
economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
Não à desigualdade social que gera violência
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas,
enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e
entre os vários povos será impossível desarraigar a violência. Acusam-se da
violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de
oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno
fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de provocar a explosão. Quando a
sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si
mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que
possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas
porque a desigualdade social provoca a reação violenta de quantos são excluídos
do sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto na sua raiz.
Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a
injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as
bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se
cada ação tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade
sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas
estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro
melhor. Estamos longe do chamado “fim da história”, já que as condições de um
desenvolvimento sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente
implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da economia atual promovem uma exacerbação do
consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade
social, é duplamente daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou mais
tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas
não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar
aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas
e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores
conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os
pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar
a solução numa “educação” que os tranquilize e transforme em seres domesticados
e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos vêem
crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos
países – nos seus Governos, empresários e instituições – seja qual for a
ideologia política dos governantes.
Do site da Carta capital
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Dag Vulpi