Por Ricardo Mendonça na Folha
UOL
Para o constitucionalista português
José Joaquim Gomes Canotilho, os réus do mensalão julgados e condenados
definitivamente exclusivamente pelo STF (Supremo Tribunal Federal) têm
"alguma razão" em reclamar pelo direito de um julgamento por um
segundo tribunal.
Apesar de ressaltar que não
acompanhou o caso em detalhes, Canotilho também acha "razoável" a
reclamação quanto à atuação institucional do ministro Joaquim Barbosa, que
esteve presente em todas as fases do processo: recebimento da denúncia,
instrução e o próprio julgamento.
Catedrático da Universidade de
Coimbra, J. J. Canotilho, como é conhecido, é tido como um dos
constitucionalistas estrangeiros mais influentes no Brasil. Na seção de
jurisprudência do site do STF, seu nome aparece como referência citada em 550
acórdãos, decisões monocráticas ou decisões da presidência da corte. No STJ (Superior
Tribunal de Justiça) há outras 144 citações. Nas 8.405 páginas do acórdão do
mensalão, ele é citado sete vezes.
Para o jurista, o STF é hoje um dos
tribunais mais poderosos do mundo. Tem atribuições bem mais amplas que a
Suprema Corte dos Estados Unidos, lembra, e também é "muito mais
poderoso" que qualquer tribunal europeu.
Canotilho veio ao Brasil para o
lançamento do livro "Comentários à Constituição do Brasil" (2.384
páginas, vendido por R$ 280), obra cuja produção envolveu 130 autores ao longo
de cinco anos. Na coordenação técnica, ele contou com a ajuda do ministro
Gilmar Mendes, do juiz Ingo Wolfgang Sarlet e do procurador Lenio Luiz Streck.
O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, no Brasil para lançamento de um livro - Sérgio Lima-21.nov.13/Folhapress
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Folha - O
senhor acompanhou o julgamento do mensalão? Que balanço faz?
J. J. Canotilho - Eu estava aqui [no Brasil] quando ocorreu a primeira
audiência. E fiquei com a ideia de que a política é a arte mais nobre dos
homens, desde que colocada a serviço das pessoas e da humanidade. Mas a
política também tem mãos sujas, como dizia Albert Camus. Há mãos sujas porque a
política implica, muitas vezes, a cumplicidade com atos abjetos, com programas
que nós nem sempre consideramos os melhores em termos de moralidade, em termos
de valores republicanos. E por isso é uma atividade que tanto pode ser criadora
de confiança, quanto pode ser criadora de desconfiança. E aqui no Brasil, o que
se cimentava era a desconfiança, relativamente à política, relativamente aos
políticos. Então, de certo modo, o tribunal tinha ali uma obrigação de julgar
bem. [O STF] Não é só um tribunal constitucional, é um tribunal de recursos, o
que o torna mais visível. É sempre certo que, em casos desses, há sempre uma
publicidade multiplicada. Não só pelo estatuto das pessoas [que estavam sendo
julgadas], mas porque há sempre uma certa opinião pública que pretende, em
muitos momentos da vida coletiva, uma catarse, no sentido de alguma
purificação. São esses os fatos suficientemente demonstrados: o Brasil tem
necessidade da catarse, da purificação, da honradez, da justificação da
legitimação do próprio poder político. Mas não acompanhei sistematicamente
[todo o julgamento]. Acompanhei à distância.
Como o senhor
disse, é uma corte constitucional. Mas tratou-se de um caso penal. O que pensa
desse acúmulo de funções?
Esse é um dos
tópicos que eu tenho algumas dúvidas, de um tribunal com tanto poder. O
tribunal brasileiro é dos tribunais com mais poderes no mundo.
O senhor
compara com quais?
Primeiro, é
mais poderoso que o dos Estados Unidos. Porque tem um conjunto de
fiscalizações, que não é apenas a fiscalização concreta, que não existe nos
EUA. Depois, articula as dimensões de tribunal de revisão, de última palavra,
com as funções constitucionais. E daí vai criando o direito constitucional e,
ao mesmo tempo, julgando casos. É o que eu tenho dito: o Brasil tem uma outra
Constituição feita pela jurisprudência, sobretudo do Supremo Tribunal Federal.
Os tribunais constitucionais [de outros países] não têm essas funções, de serem
tribunais penais. E por isso é que eu digo que [o STF] é o tribunal com mais
força. E, por outro lado, através de suas decisões, é um tribunal que consegue
estar em sintonia com a opinião pública. Eu recordo do problema da desfiliação
partidária [fidelidade], do problema dos índios [Terra Indígena Raposa Serra do
Sol], do problema das algemas [limitação no uso]. Podemos não concordar. Mas o
povo estava em tendência de sintonia com o sentido dessas decisões.
E em relação aos
tribunais da Europa?
É muito mais
poderoso, muito mais. Não há nenhum tribunal por lá parecido com o Supremo
Tribunal Federal. Como tribunal, [o STF] acumula competências e poderes que a
maior parte dos tribunais não tem, pois só são tribunais constitucionais. Ou,
por outro lado, são só supremos tribunais que não têm as funções que tem o
tribunal constitucional.
É comum a
avaliação de que o STF foi muito rigoroso no julgamento do mensalão. Na sua
opinião, que risco pode correr se, nos próximos casos envolvendo políticos
importantes, não trabalhar com o mesmo rigor?
Eu acho que o
tribunal depende muito dos juízes, dos protagonistas que estão no tribunal. Ele
é formado por pessoas, elas têm suas pré-compreensões, sua formação. Agora, eu
entendo que o tribunal tem assinalado patamares que os vinculam a ele próprio.
Portanto, a medida que vai criando precedentes, vincula-se a ele próprio. E
ainda tem outra característica: aquilo que era uma norma concreta desconecta-se
do caso concreto e passa a ser uma norma geral que vincula o tribunal e vincula
o poder político. O que o tribunal já decidiu, vamos vincular como precedente,
mas em termos abstratos. Por outro lado, o poder político também vai se sentir
vinculado.
Os réus
reclamam que foram julgados já originalmente no STF e agora não têm um segundo
tribunal para recorrer. É uma violação?
Há um pouco de
verdade nisso. Quando a gente diz que tem de ter sempre direito a recurso por
uma segunda instância, para estar mais informado, é, em geral, nas questões
penais. Ou seja, o duplo grau de jurisdição. Nós consideramos isso como um dado
constitucional em questões penais. Isso é verdade.
E qual seria a
solução nesse caso?
É... Não tem
muita solução. Porque, por um lado, nós exigimos que pessoas com estatuto de
deputado não sejam julgadas por juiz de primeira instância. E acabamos por
dizer: não têm de ser julgados [só] por juízes de última instância, pois
afronta a dignidade. Então não tenho segurança de dizer [o que seria o melhor].
Não há recursos sobre todas as coisas. Agora, na questão penal, é também dado
como certo que o duplo grau de jurisdição é quase uma dimensão material do
direito ao direito de ir aos tribunais. Há alguma razão [dos réus] aí.
Outra
reclamação muito repetida é que o mesmo ministro, Joaquim Barbosa, cuidou de
todas as etapas do processo. Do recebimento da denúncia ao julgamento. Foi
relator e ainda atuou como presidente da corte ao longo do mesmo julgamento.
Não conheço. De
qualquer modo, o que eu tenho defendido sobre a Constituição portuguesa, mesmo
contra meus colegas criminalistas, é que, num processo justo em direito penal
--essa é uma opinião minoritária-- quem investiga não acusa, quem acusa não
julga. São sempre órgãos diferentes. Portanto, se quem investiga é a polícia judiciária
ou se é o Ministério Público, este, se investigou, não acusa. O Ministério
Público que acusar e o juiz que acusar, não julga. Isso para não transportar as
pré-compreensões adquiridas em outros momentos do processo ao momento do
julgamento. Eu tenho defendido essa ideia para a Constituição portuguesa. Os
meus colegas penais dizem que isso é quase impraticável, porque exigiria um
juiz para investigar, depois exigiria o juiz da acusação, e depois um outro
juiz para a audiência e julgamento. Mas [defendo] essa coisa simples: quem
investiga não acusa, quem acusa não julga. Então é razoável questionarmos.
Nunca um
julgamento foi tão divulgado quanto este do mensalão. Além disso, há a TV
Justiça, que transmitiu tudo ao vivo. Que avaliação faz dessa novidade?
Eu tenho uma
visão conservadora quanto a isso. Os trabalhos do Supremo consagram audiência
pública, a não ser quando há questões de reserva, de dignidade e segurança. Mas
os tribunais sempre foram locais de publicidade crítica. Me custa mais a aceitar
os novos tempos, aquilo ser transmitido para o mundo. Não sou das pessoas mais
entusiasmadas com a TV Justiça. Eu não gosto muito.
Por quê? O
senhor acha que interfere no comportamento do magistrado?
Pode não
interferir. E acho que não podemos pôr assim as questões. Que perturba a
espontaneidade do argumento e do contra-argumento, isso parece-me que sim. Por
outro lado, as discussões que às vezes temos nos júris, elas ficam menos à
vontade, pois estamos ali, não com a câmera escondida, mas com a câmera aberta.
Quanto aos resultados em termos de justiça, não tenho argumentos para dizer que
processo [transmitido pela TV] não seja justo. Possivelmente é um processo
adaptado a um outro esquema, o sistema de publicidade crítica, que não apenas o
da publicidade dentro da sala da audiência. Mas não gosto, não.
A Constituição
brasileira fez 25 anos. O que a distingue das outras positivamente?
É uma
característica que tem sido apontada nas constituições programáticas. As
constituições programáticas são aquelas que, pelas suas próprias
características, regulam aspectos da vida econômica, da vida social, da vida
cultural. A medida que esses domínios da vida se tornam domínios de bastante
sensibilidade política, evidentemente que esses ruídos políticos transferem-se
também para as normas constitucionais; e a Constituição acaba por sofrer a
mesma contestação que sofrem outras leis. Não está, portanto, acima do
cotidiano, dos projetos políticos, das políticas públicas. Eu penso que a
Constituição respondeu, em termos de contemporaneidade, a alguns desafios: o
problema do ambiente, da comunicação social, sobretudo do acesso aos dados. Uma
Constituição que foi feita depois de um período autoritário e que se proclamou
defensora dos direitos, liberdades e garantias.
E o aspecto
negativo?
Teve exageros.
Os juros, os salários, ou seja, tão detalhada que acaba ultrapassada. Isso
também aconteceu com a Constituição portuguesa. Nesse aspecto, é uma
Constituição que pecou pelo excesso. Em outros casos, foi o contexto, estava lá
o Centão, os constitucionalismos que existem em qualquer uma. Mas hoje vê-se
que não foi uma Constituição que impediu o progresso, apesar das críticas.
Muitos entendem que é uma Constituição que tem muitos custos, fui a um
congresso sobre isso. O que eu entendo é que uma Constituição que já tem todos
esses anos, 25 anos, não aprofundou as divergências, os dissensos no Brasil.
Houve muita contestação, mas não podemos dizer que ela dividiu o Brasil. Já teve
uma revisão. E ela tem se adaptado, na medida em que surgem os problemas. O
grande êxito é que depois de muitas convulsões, acabou por ser um instrumento
de pacificação. E já há uma outra Constituição, muito rica em termos de
sugestões, o ativismo judiciário, completada pela jurisprudência rica dos
tribunais. É uma Constituição que está viva. E está provado que o cidadão gosta
do amparo no plano político e social.
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