Por Luis Nassif no Jornal GGN
Em sua sabatina no Senado, o jurista Luiz Roberto Barroso considerou o
julgamento do chamado mensalão “ponto fora da curva”.
Barroso é
considerado o maior constitucionalista brasileira, unanimidade, saudado tanto
pela direita quanto pela esquerda. Sua opinião foi corroborada pelo Ministro
Marco Aurélio de Mello, um dos julgadores mais implacáveis.
Externou o que
todo o meio jurídico comenta à boca pequena desde aquela época: foi um
julgamento de exceção. E não apenas pelo rigor inédito (para crimes de colarinho
branco) das condenações, mas pela excepcional seletividade na escolha das
provas, sonegando informações essenciais para a apuração completa do episódio.
Houve o
pagamento de despesas de campanha dos novos aliados do PT. Utilizaram-se
recursos de caixa dois para tal. Havia o intermediário das transações – o
publicitário Marcos Valério e a agência DNA. Na outra ponta, os beneficiários.
E, no começo do circuito, os financiadores.
Se poderia ter
se obtido a condenação fazendo o certo, qual a razão para tantas
irregularidades processuais anotadas? Não se tratou apenas dos atropelos à
presunção da inocência e outros princípios clássicos do ordenamento jurídico
brasileiro. Há também a suspeita de ocultação deliberada de provas.
1. Ignorou-se
laudo comprovando a aplicação dos recursos da Visanet.
2.
Esconderam-se evidências de que o contrato da DNA com a Visanet era anterior a
2003.
3.
Desmembrou-se o processo para que outros diretores do Banco do Brasil - que
compartilharam decisões com o diretor de marketing Antonio Pizolato e assumiram
responsabilidades maiores - não entrassem na AP 470.
4.
Ignoraram-se evidências nítidas de que a parte mais substancial dos fundos do
DNA foi garantida pelas empresas de telefonia de Daniel Dantas.
O
contrato de Antonio Fernando
Aparentemente,
desde o começo, a prioridade dos Procuradores Gerais da República Antônio
Fernando (que iniciou as investigações), de Roberto Gurgel (que deu
prosseguimento) e do Ministro do STF Joaquim Barbosa (que relatou a ação)
parece ter sido a de apagar os rastros do principal financiador do mensalão: o
banqueiro Daniel Dantas. Inexplicavelmente, ele foi excluído do processo e seu
caso remetido para um tribunal de primeira instância.
Excluindo
Dantas, não haveria como justificar o fluxo de pagamentos aos mensaleiros.
Todos os absurdos posteriores decorrem dessa falha inicial, de tapar o buraco
do financiamento, depois que Dantas foi excluído do inquérito.
Responsável
pelas investigações, o procurador geral Antônio Fernando de Souza tomou duas
decisões que beneficiaram diretamente Dantas. A primeira, a de ignorar um
enorme conjunto de evidências e excluir Dantas do inquérito - posição
mantida por seu sucessor, Roberto Gurgel e pelo relator Ministro Joaquim
Barbosa. A segunda, a de incluir no inquérito o principal adversário de Dantas
no governo: Luiz Gushiken. Aliás, com o concurso de Antonio Pizolatto - que
acabou tornando-se vítima, depois de diversas decisões atrabiliárias dos PGRs.
Foi
tal a falta de provas para incriminar Gushiken, que o PGR seguinte, Roberto
Gurgel, acabou excluindo-o do inquérito.
Pouco depois
de se aposentar, Antônio Fernando tornou-se sócio de um escritório de advocacia
de Brasília - Antônio Fernando de Souza e Garcia de Souza Advogados -, que tem
como principal contrato a administração da carteira de processos da Brasil
Telecom, hoje Oi, um dos braços de Dantas no financiamento do mensalão. O
contrato é o sonho de todo escritório de advocacia: recebimento de soma mensal
vultosa para acompanhar os milhares de processos de acionistas e consumidores
contra a companhia, que correm nos tribunais estaduais e federais.
Os
sinais de Dantas
Qualquer
jornalista que acompanhou os episódios, na época, sabia que a grande fonte de
financiamento do chamado “valerioduto” eram as empresas de telefonia
controladas por Dantas, a Brasil Telecom e a Telemig Celular. Reportagens da
época comprovavam – com riqueza de detalhes – que a ida de Marcos Valério a
Portugal, para negociar a Telemig com a Portugal Telecom, foi a mando de
Dantas.
Dantas possuía
parcela ínfima do capital das empresas Telemig, Amazônia Celular e Brasil
Telecom. O valor de suas ações residia em um acordo “guarda-chuva”, firmado com
fundos de pensão no governo FHC, que lhe assegurava o controle das companhias.
Tentou manter o acordo fechando aliança com setores do PT – que foram
cooptados, sim. Quando o acordo começou a ser derrubado na Justiça, ele se
apressou em tentar vender o controle da Telemig, antes que sua participação
virasse pó.
No livro “A
Outra Historia do Mensalão”, Paulo Moreira Leite conta que a Polícia Federal
apurou um conjunto de operações entre a Brasil Telecom e a DNA. A executiva
Carla Cicco, presidente da BT, encomendou à DNA uma pesquisa de opinião no
valor de R$ 3,7 milhões. Houve outro contrato, de R$ 50 milhões, a ser pago em
três vezes. Era dinheiro direto no caixa da DNA - e nao apenas uma comissão de
agenciamento convencional, como foi no caso da Visanet.. Pagaram-se as
duas primeiras. A terceira não foi paga devido às denúncias de Roberto
Jefferson que deflagraram o mensalão.
Apesar de
constar em inquérito da Polícia Federal – fato confirmado por policiais a Paulo
Moreira Leite – jamais esse contrato de R$ 50 milhões fez parte da peça de
acusação. Foi ignorado por Antônio Fernando, por seu sucessor Roberto Gurgel e
pelo relator Ministro Joaquim Barbosa. Ignorando-o, livrou Dantas do inquérito.
Livrando-o, permitiu-lhe negociar sua saída da Brasil Telecom, ao preço de
alguns bilhões de reais.
AS
GAMBIARRAS NO INQUÉRITO
Sem Dantas,
como justificar os recursos que financiaram o mensalão? Apelou-se para essa
nonsense de considerar que a totalidade da verba publicitária da Visanet (R$ 75
milhões) foi desviada. Havia comprovação de pagamento de mídia, especialmente a
grandes veículos de comunicação, de eventos, mas tudo foi deixado de lado pelos
PGRs e pelo relator Barbosa.
Em todos os
sentidos, Gurgel foi um continuador da obra de Antonio Fernando. Pertencem ao
mesmo grupo político - os "tuiuius" - que passou a controla o
Ministério Público Federal. Ambos mantiveram sob estrito controle todos os
inquéritos envolvendo autoridades com foro privilegiado. Nas duas gestões,
compartilhavam as decisões com uma única subprocuradora - Cláudia Sampaio Marques,
esposa de Gurgel. Dentre as acusações de engavetamento de inquéritos, há pelos
menos dois episódios controvertidos, que jamais mereceram a atenção nem do
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) nem da Associação Nacional dos
Procuradores da República (ANPR) - esta, também, dominada pelos
"tuiuius": os casos do ex-senador Demóstenes Torres e do
ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda.
Tanto na parte
conduzida por Antonio Fernando, quanto na de Gurgel, todas as decisões pareceram
ter como objetivo esconder o banqueiro.
É o caso da
“delação premiada” oferecida a Marcos Valério. O ponto central – proposto
na negociação – seria imputar a Lula a iniciativa das negociações com a
Portugal Telecom. Sendo bem sucedido, livraria Dantas das suspeitas de ter sido
o verdadeiro articulador das negociações. A "delação premiada"
não foi adiante porque, mesmo com toda sua discricionariedade,
Gurgel não tinha condições de oferecer o que Valério queria: redução das penas
em todas as condenações.
Quando
iniciaram-se as investigações que culminaram na ação, Antônio Fernando foi
criticado por colegas por não ter proposto a delação premiada a Marcos Valério.
Acusaram-no de pretender blindar Lula. A explicação dada na época é que não se
iria avançar a ponto de derrubar o presidente da República, pelas inevitáveis
manifestações populares que a decisão acarretaria. Pode ser. Mas,
na verdade, na época, sua decisão blindou Daniel Dantas, a quem
Valério servia. Agora, na proposta de "delação" aceita por Gurgel não
entrava Dantas - a salvo dos processos - mas apenas Lula.
O inquérito dá
margem a muitas inteerpretaçòes, decisões, linhas de investigação. Mas como
explicar que TODAS as decisões, todas as análises de provas tenham sido a favor
do banqueiro?
OS
MOTIVOS AINDA NÃO EXPLICADOS
Com o tempo
aparecerão os motivos efetivos que levaram o Procurador Geral Roberto Gurgel e
o relator Joaquim Barbosa a endossar a posição de Antonio Fernando e se
tornarem também avalistas desse jogo.
Pode ter sido
motivação política. Quando explodiu a Operação Satiagraha – que acusou Daniel
Dantas de corrupção -, Fernando Henrique Cardoso comentou que tratava-se de uma
“disputa pelo controle do Estado”.
De fato,
Dantas não é apenas o banqueiro ambicioso, mas representa uma longa teia de
interesses que passava pelo PT, sim, mas cujas ligações mais fortes são com o
PSDB de Fernando Henrique e principalmente de José Serra.
Uma disputa
pelo poder não poderia expor Dantas, porque aí se revelaria a extensão de seus
métodos e deixaria claro que práticas como as do mensalão fazem parte dos
(péssimos) usos e costumes da política brasileira. E, se comprometesse também o
principal partido da oposição, como vencer a guerra pelo controle do Estado? Ou
como justificar um julgamento de exceção.
Vem daí a
impressionante blindagem proposta pela mídia e pela Justiça. É, também, o que
pode explicar a postura de alguns Ministros do STF, endossando amplamente a
mudança de conduta do órgão no julgamento. Outros se deixaram conduzir pelo
espírito de manada. Nenhum deles engrandece o Supremo.
Poderia haver
outros motivos? Talvez. Climas de guerra santa, como o que cercaram o episódio,
abrem espaço para toda sorte de aventureirismo, porque geram a solidariedade na
guerra, garantindo a blindagem dos principais personagens. No caso de temas
complexos - como os jurídicos - o formalismo e a complexidade dos temas
facilitam o uso da discricionariedade. Qualquer suspeita a respeito do
comportamento dos agentes pode ser debitada a uma suposta campanha difamatória
dos “inimigos”. E com a mídia majoritariamente a favor, reduz a possibilidade
de denúncias ou escândalos sobre as posições pró-Dantas.
É o que
explica os contratos de Antonio Fernando com a Brasil Telecom jamais terem
recebido a devida cobertura da mídia. Não foi denunciado pelo PT, para não
expor ainda mais suas ligações com o banqueiro. Foi poupado pela mídia - que se
alinhou pesadamente a Dantas. E foi blindado amplamente pela ala Serra dentro
do PSDB.
Com a anulação
completa dos freios e contrapesos, Antonio Fernando viu-se à vontade para
negociar com a Brasil Telecom.
De seu lado,
todas as últimas atitudes de Gurgel de alguma forma vão ao encontro dos
interesses do banqueiro. Foi assim na tentativa de convencer Valério a envolver
Lula nos negócios com a Portugal Telecom. E também na decisão recente de
solicitar a quebra de sigilo do delegado Protógenes Queiroz – que conduziu a
Satiagraha – e do empresário Luiz Roberto Demarco – bancado pela Telecom Itália
para combater Dantas, mudando completamente em relação à sua posição anterior.
A quebra do
sigilo será relevante para colocar os pingos nos iis, comprovar se houve de
fato a compra de jornalistas e de policiais e, caso tenha ocorrido, revelar os
nomes ou interromper de vez esse jogo de ameaças. Mas é evidente que o o
resultado maior foi fortalecer as teses de Dantas junto ao STF, de
que a Satiagraha não passou de um instrumento dos adversários comerciais. Foi
um advogado de Dantas - o ex-Procurador Geral Aristisdes Junqueira - quem
convenceu Gurgel a mudar de posição.
Com seu gesto,
Gurgel coloca sob suspeitas os próprios procuradores que atuaram não apenas na
Satiagraha como na Operação Chacal, que apurava envolvimento de Dantas com
grampos ilegais.
Em seu parecer
pela quebra do sigilo, Gurgel mencionou insistentemente um inquérito italiano
que teria apurado irregularidades da Telecom Itália no Brasil. Na época da
Satiagraha, dois procuradores da República – Anamara Osório (que tocava a ação
da Operação Chacal na qual Dantas era acusado de espionagem) e Rodrigo De
Grandis – diziam claramente que a tentativa de inserir o relatório italiano nos
processos visava sua anulação.. Referiam-se expressamente à tentativa do
colunista de Veja, Diogo Mainardi, de levar o inquérito ao juiz do processo.
Anamara acusou a defesa de Dantas de tentar ilegalmente incluir o CD do
relatório no processo.
Dizia
a nota do MPF de São Paulo:
"Para as
procuradoras brasileiras, a denúncia na Itália é normal e só confirma o que já
havia sido dito nos autos inúmeras vezes pelo MPF que, a despeito dos crimes
cometidos no Brasil por Dantas e seus aliados e pela TIM, na Itália, "a
investigação privada parecia ser comum entre todos, acusados e seus adversários
comerciais". Além disso, o MPF não pode se manifestar sobre uma
investigação em outro país, por não poder investigar no exterior, e vice-versa.
Para o MPF, as
alusões da defesa de que a prova estaria "contaminada" não passam de
"meras insinuações", pois a prova dos autos brasileiros foi colhida
com autorização judicial para interceptações telefônicas e telemáticas, bem
como, busca e apreensão. Tanto é assim que outro CD entregue à PF, em julho de
2004, por Angelo Jannone, ex-diretor da TIM, também foi excluído dos autos como
prova após manifestação do MPF, atendendo pedido da defesa de Dantas".
Agora, é o
próprio PGR quem tenta colocar o inquérito no processo que corre no
Supremo e, automaticamente, colocando sob suspeição seus próprios
procuradores.. E não se vê um movimento em defesa de seus membros por parte da
ANPR.
Quando a
Satiagraha foi anulada no STJ (Superior Tribunal de Justiça), o Ministério
Público Federal recorreu, tanto em Brasília quanto em São Paulo. Na
cúpula, porém, Dantas conseguiu o feito inédito de sensibilizar quatro dos
mais expressivos nomes do MInistério Público Federal pós-constituinte: os
ex-procuradores gerais Antonio Fernando e Aristides Junqueira (que ele
contratou para atuar junto a Roberto Gurgel), o atual PGR e o ex-procurador e
atual presidente do STF Joaquim Barbosa.
Levará algum
tempo para que a poeira baixe, a penumbra ceda e se conheçam, em toda sua
extensão, as razões objetivas que levaram a esse alinhamento inédito em favor
de Dantas.
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