A historiadora
Dulce Pandolfi e a cineasta Lúcia Murat emocionaram os integrantes da Comissão
Estadual da Verdade e as pessoas que acompanharam seus depoimentos hoje (28) na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Durante cerca de uma hora, elas
relataram as agressões sofridas em quartéis e prisões no período da ditadura
militar (1964-1985) e foram aplaudidas de pé pelos ouvintes. Dulce contou,
inclusive, que seu corpo foi usado em uma aula de interrogatório que teve
demonstração de choques elétricos e simulação de fuzilamento.
Primeira a
falar, Dulce Pandolfi emocionou-se em diversos momentos e precisou fazer
pausas. Atualmente pesquisadora da Fundação Getulio Vargas, Dulce tinha 21 anos
e era membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL) quando foi presa em 20 de
agosto de 1970. Ela passou um ano e quatro meses em poder dos militares e disse
que foi torturada psicológica e fisicament durante três meses no quartel da
Polícia do Exército, onde funcionava o Destacamento de Operações de Informações
- Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). "Quando entrei, ouvi
uma frase que até hoje ecoa nos meus ouvidos: 'Aqui não existe Deus, nem
pátria, nem família'".
No quarto mês
de prisão, Dulce ficou no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no
centro do Rio, e, nos seis meses seguintes, foi mantida no presídio Talavera
Bruce, em Bangu, até ser transferida para o presídio Bom Pastor, em Recife, sua
terra natal.
A historiadora
lembrou que o período mais severo foi o início, na primeira sessão de tortura,
quando os militares tentaram obter o maior número possível de informações antes
que seu desaparecimento fosse constatado pela ANL e por familiares. O método mais
usado foi o choque elétrico, com o corpo molhado e preso ao pau-de-arara,
contou Dulce, que foi também espancada e teve um jacaré colocado sobre seu
corpo nu. A "aula de tortura", para demonstrar a eficácia dos choques
elétricos em cada parte do corpo, foi quando ela completou dois meses de
prisão. Ela não resistiu, precisou ser socorrida, mas a "aula"
continuou momentos depois, com respaldo médico, no pátio do quartel. Foi aí que
houve a simulação de fuzilamento, com militares apontando para ela um revólver
com apenas uma bala.
"Essas
coisas não podem ser naturalizadas. É como a miséria, é como ver uma pessoa
caída no chão e achar normal. Esse é o grande ponto", disse Dulce Pandolfi
após o depoimento.
A cineasta
Lúcia Murat também foi espancada e sofreu choques elétricos e até abuso sexual
por parte dos militares. Ela foi presa pela primeira vez em outubro de 1968, em
um congresso estudantil, mas ficou apenas uma semana detida. Com a publicação
do Ato Institucional 5 (AI-5), em dezembro daquele ano, com medo da prisão,
Lúcia passou a viver na clandestinidade, mas foi encontrada e levada em 1971
para o mesmo quartel em que Dulce foi presa, e ficou detida três anos e meio.
Lúcia contou
que as primeiras horas de tortura foram as mais intensas e que chegou a perder
os movimentos das pernas por algum tempo. Na tentativa de se suicidar, ela
chegou a enganar os militares para ser levada a uma varanda, fazendo-os
acreditar que daria sinal para militantes, mas uma substituta encenou no lugar
dela: "Foi a pior sensação da minha vida. A de não poder morrer".
Lúcia chegou a ser levada para Salvador, onde foi apenas interrogada, e trazida
de volta ao Rio de Janeiro. Em outra ocasião, ao participar de uma auditoria na
Marinha, denunciou a tortura perante juízes militares, que a mandaram de volta
para o DOI-Codi, onde sofreu deboche e mais sessões de tortura.
Tanto Dulce
Pandolfi quanto Lúcia Murat destacaram o sadismo dos militares durante as
sessões de tortura, embora lembrassem que foram tratadas de forma "mais
humana" por outros. As duas contaram que um soldado se ofereceu para levar
bilhetes para seus parentes e que as mensagens chegaram aos destinatários.
O coordenador
da comissão e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de
Janeiro, Wadih Damous, disse que o objetivo das sessões é sensibilizar a
população: "É preciso mostrar, sobretudo aos mais jovens, que a tortura
foi uma política de Estado e que pessoas corriam risco de vida por pensar [de
maneira] diferente". Ele informou que estão previstos outros depoimentos,
inclusive de agentes civis e militares da época.
Diretor
executivo da Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque considerou fortes os
depoimentos e disse que eles são uma forma de olhar para problemas atuais:
"Foi o relato de um momento histórico em que o governo foi carrasco, foi
algoz. Esses trabalhos são também para convidar a sociedade e os jovens a
refletir sobre essa história e a enfrentar os problemas que ainda persistem
hoje. No momento em que estamos ouvindo esses relatos, há pessoas sendo
torturadas nas prisões."
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