Por Paulo Kliass, no sítio Carta
Maior:
Desde o início do ano, a pauta de discussão a respeito da política econômica
vem sendo dominada, em grande parte, por dois pontos.
Em primeiro lugar, pelas expectativas em torno da necessidade ou não de elevação da taxa de juros oficial nas reuniões do Copom. Em segundo lugar, pelo aparente paradoxo da paralisia dos investimentos, não obstante todo o esforço realizado pelo governo para que o setor privado caminhe na direção da retomada de novos projetos de ampliação da capacidade produtiva do Brasil.
Em primeiro lugar, pelas expectativas em torno da necessidade ou não de elevação da taxa de juros oficial nas reuniões do Copom. Em segundo lugar, pelo aparente paradoxo da paralisia dos investimentos, não obstante todo o esforço realizado pelo governo para que o setor privado caminhe na direção da retomada de novos projetos de ampliação da capacidade produtiva do Brasil.
Apesar da importância desse tipo de debate relativo a questões
de natureza conjuntural, o fato é que os elementos estruturais e de longo prazo
acabam sendo relegados a um segundo plano. É claro que não se pode negligenciar
os prejuízos causados por eventual retomada da trajetória de alta da Selic na
reunião da semana que vem, e considero essencial que a crítica da tendência
conservadora deva ser feita sem concessões. Mas é necessário, também, que se
alargue o horizonte de análise para que se obtenha uma visão de conjunto das
mudanças mais gerais que estão a ocorrer no modelo social e econômico de forma
mais ampla.
Primeira fase do desmonte: venda das
empresas estatais
Desse ponto de vista, o fato relevante é que
as medidas adotadas até o momento pela Presidenta Dilma correm o sério risco de
se converterem em mais uma etapa no longo processo de desmonte do Estado
brasileiro.
Infelizmente, tudo indica que a agenda apresentada pelos representantes do
capital tenha sido, em grande parte, incorporada pelo governo. A pretexto de
oferecer alternativas para a retomada do crescimento do PIB e para buscar a
superação da falta de musculatura da atividade econômica, as entidades
empresariais acabaram por convencer setores expressivos da Esplanada a respeito
da necessidade de se reduzir o papel do Estado nas atividades vinculadas à
economia.
Passada a etapa da transferência pura e simples do patrimônio público, por meio
da venda de empresas estatais federais ao capital privado, o processo de
privatização continuou avançando com estratégias mais inteligentes, sutis e
sofisticadas. Durante as décadas de supremacia do pensamento neoliberal, nossos
dirigentes políticos orgulhavam-se de participar de leilões em que as empresas
construídas, ao longo de décadas, com recursos públicos eram cedidas a preços
irrisórios e pagas com moedas podres. Bastava uma martelada simbólica em algum
leilão, geralmente realizado em salas imponentes do financismo, e a negociata
estava concluída. Porém, a partir do início desse novo milênio algumas coisas
mudaram. Houve alterações importantes na composição político-ideológica em
vários governos de nosso continente e o mundo desenvolvido foi, logo na
seqüência, tomado pela crise iniciada em 2008 nos Estados Unidos.
Ampliação do capital privado sobre o setor
público
Face à incapacidade do antigo receituário
neoliberal em oferecer respostas e soluções para a retomada do crescimento, a
estratégia de desmonte do Estado sofreu algumas redefinições. Hoje em dia, por
exemplo, pouca gente tem a coragem política de defender abertamente a venda de
empresas como a Petrobrás, o Banco do Brasil ou a Caixa Econômica Federal. A
agenda de redução do espaço do Estado foi sendo dilatada no tempo e o mais
importante, de acordo com a lógica do capital privado, passou a ser a defesa de
sua porção conquistada e o avanço paulatino em direção a outros setores ainda
sob influência da esfera pública.
Assim, houve um recuo inequívoco, se comparado a posturas mais ofensivas, como
na época em que foram vendidas integralmente as empresas estatais de
siderurgia, de petroquímica, de mineração, os bancos estaduais, as empresas de
eletricidade e de saneamento, as empresas de transporte urbano e ferroviário,
entre tantos outros processos polêmicos. Porém, permaneceu latente e sem
interrupção o discurso ferrenhamente liberal, contra a presença do Estado na
economia, em razão da suposta ineficiência implícita e inerente ao setor
público, face à correspondente superioridade “inquestionável” do capital
privado. Na verdade, a coisa é bem mais complexa, pois o empresariado
tupiniquim adora bater no ente estatal, mas não perde a chance de pedir
recursos no BNDES a custo zero ou outras benesses públicas de todo tipo.
Liberal sim, “ma non troppo”...
Concessões de serviços públicos, saúde e
educação
Atualmente, a grande oportunidade que se abre
para o avanço privado sobre as possibilidades de acumulação no âmbito do setor
público, em nosso País, é representada pelas concessões de serviços públicos.
Trata-se de um enorme potencial de atividades vinculadas aos setores de
infra-estrutura, com ramos econômicos que têm sua demanda assegurada – oh,
flagrante contradição! - pela própria ação do Estado. Ferrovias, portos,
rodovias, aeroportos, sistemas de transportes urbanos, eis aqui alguns dos
principais focos de acumulação de capital que passam (ou continuam) a ser
explorados pelo capital privado nacional e estrangeiro. O serviço público tem
sua atividade sob supervisão da respectiva agência pública reguladora, tem suas
condições e tarifas determinadas por algum ato do poder público e os contratos
oferecem exclusividade de exploração comercial e econômica por prazos que
variam entre 20 e 35 anos. Um verdadeiro “filet mignon” oferecido graciosamente
para o capital privado, ainda mais se adicionarmos os recursos públicos a custo
irrisório, oferecidos para realização dos investimentos necessários e mesmo
para a manutenção do sistema concedido.
Nas áreas da educação e da saúde, a estratégia do sucateamento do setor público
também avança a olhos vistos. O ensino universitário privado continuou
recebendo os recursos públicos por intermédio do Prouni - ou seja, as mesmas
verbas orçamentárias negadas à rede de universidades públicas federais, mas que
o Estado repassa aos caixas dos conglomerados do “unibusiness”. Um verdadeiro jogo
de “me engana que eu gosto”, onde o lucro de instituições que oferecem péssimo
serviço de ensino universitário é assegurado pelas bolsas de estudo oferecidas
a estudantes de baixa renda, que vão sair dos estabelecimentos com a ilusão de
um diploma debaixo do braço. A exemplo do fenômeno ocorrido com o ensino
fundamental, a criação de um sub-setor privado, apoiado politicamente pelas
chamadas classes médias, pode significar a redução do espaço para o ensino
universitário público e de qualidade.
Desoneração tributária e a redução da
capacidade do Estado
Por outro lado, o desmonte do Estado conta o
apoio substantivo oferecido pela utilização generalizada da prática das
desonerações tributárias. É mais do que sabido que a redução dos impostos
diminui a capacidade do Estado em cumprir com suas funções básicas e de ampliar
seus investimentos. Lançar mão desse tipo de instrumento fiscal é recomendado,
sempre de forma temporária, em momentos bem específicos do ciclo econômico. É o
caso de risco de recessão e desemprego, como o vivido a partir da crise
financeira internacional, onde medidas localizadas de desoneração podem servir
como estímulo à retomada da produção e do consumo. Porém, a estratégia adotada
em nossas terras se assemelha a apenas mais uma, dentre as inúmeras bondades
oferecidas pelo Estado ao capital privado.
O governo proporcionou a desoneração da folha de pagamentos para efeitos de
recolhimento de tributos para o custeio da previdência social. A medida se
amplia a novos setores a cada nova Medida Provisória editada e a postura
irresponsável das autoridades monta uma verdadeira bomba de efeito retardado
para o nosso sistema de previdência pública e universal. O governo isentou de
parte da carga tributária a venda de um conjunto amplo de bens, como a linha
branca (geladeiras, máquinas de lavar, fogões, etc) e o setor automobilístico.
As medidas mais recentes foram na área de energia elétrica e dos produtos da
cesta básica. Porém, o fato é que apesar do benefício oferecido, os
consumidores nem sempre são contemplados com a mesma redução no preço de
aquisição dos bens e serviços. Em resumo, o principal beneficiário é sempre o
empresário, que paga menos imposto e aumenta seu lucro.
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