Por Carlos Costa*
“No dia em que iam matá-lo, Santiago
Nasar levantou-se às 5 e 30 da manhã para esperar o barco em que chegava o
bispo.” Com essa frase de impacto o jornalista e romancista colombiano Gabriel
García Márquez abre sua novelaCrônica de uma morte anunciada. E a lembrança
desse título veio à memória quando soube da catástrofe de Santa Maria, no
coração do Rio Grande do Sul, na madrugada deste domingo. Até o momento em que
escrevo estão contabilizadas 235 mortes, mas o número certamente aumentará com
a evolução da situação de alguns dos 74 feridos em estado altamente crítico,
com extensas e profundas queimaduras ou sequelas da intoxicação pelos gases
emanados do incêndio.
As conexões trazem lembranças de
outras tragédias, como a do incêndio da boate República Cromagñon, em Buenos
Aires, em 2004, que matou mais de 200 adolescentes e jovens, incluindo alguns
bebês (estavam numa espécie de creche improvisada no interior da discoteca,
enquanto as mães adolescentes dançavam).
E indo mais longe, para meus tempos
de criança, a catástrofe do circo de Niterói na tarde do dia 17 de dezembro de
1961, no que foi o incêndio com o maior número de mortes no Brasil até hoje:
503 adultos e crianças asfixiados pelo plástico das lonas ou pisoteados na
confusão armada após o incêndio provocado também por um sinalizador usado pelo
trapezista. A tragédia do circo teve sua história recuperada 50 anos depois no
soberbo livro reportagem O Espetáculo Mais Triste da Terra: o Incêndio do
Gran Circo Norte-Americano, escrito pelo jornalista Mauro Ventura (autor
da trilogia sobre Getulio Vargas de que saiu o primeiro volume) e publicado em
2011.
Num balanço muito geral, ouso
afirmar que a única providência concreta tomada na tragédia foi a da Nestlé. No
caso, me refiro não à “fatalidade” de agora em Santa Maria ou à de 6 de abril
de 2000 em que 256 pessoas morreram no ...
deslizamento do morro do Bumba, um
antigo lixão da cidade de Niterói, após as fortes chuvas. Ou aos 911 mortos na
Região Serrana do Rio de Janeiro, no janeiro sinistro de 2011. De acordo com as
prefeituras dos municípios mais afetados pelas chuvas, foram 382 mortos em
Teresópolis; 428 em Nova Friburgo; 72 em Petrópolis...
Após aquele incêndio do Gran Circo
Norte-Americano em 1961, a Nestlé retirou do ar a campanha radiofônica que
afirmava que “Nescau é tão gostoso como uma tarde no circo”.
Leio esta semana no site do
jornal O Globo que por causa da chuva que atinge o estado do Rio, o
Instituto Estadual do Ambiente colocou em alerta máximo diversos rios da região
serrana, deixando em atenção também a Baixada Fluminense. De acordo com o
Sistema de Alerta de Cheias, estão em alerta máximo o Rio Grande, em Bom
Jardim; o Rio Paquequer, em Teresópolis; O Rio Quitandinha, em Petrópolis; e os
Rios Cônego e Córredo D’Antas, em Nova Friburgo. Na Baixada, o Rio Sarapuí, que
passa pelos municípios como Duque de Caxias, Mesquita, Nilópolis e Belford
Roxo, também está na iminência de transbordar se as chuvas continuarem.
O que de concreto fez recentemente o
governador do estado do Rio e os prefeitos das cidades serranas fluminenses
anualmente afetadas pelas chuvas e enchentes do verão? Destes, pode-se dizer
que muito pouco ou nada, além de decretar estado de emergência e pedir verbas
que serão desviadas de suas finalidades, pois nem cuidam das sirenes de
alertas, roubadas pela população. Do governador Sérgio Cabral (PMDB) sabe-se
muito mais. Como as festas promovidas em Paris e Mônaco, à custa do erário
público e com vulgaridades como a dança com os guardanapos em forma de bandanas
na cabeça, de que participaram alguns de seus mais privilegiados secretários de
governo e o empresário Fernando Cavendish, ex-dono da Construtora Delta.
A imagem, divulgada no auge das denúncias
de ligação de Cavendish com o contraventor Carlos Augusto Ramos, o Cachoeira,
objeto de duas operações da Polícia Federal por comandar um esquema de jogos
ilegais envolvendo servidores públicos, veio se somar, no currículo do
governador fluminense, à desastrada viagem feita em um avião do empresário Eike
Batista para ir ao sul da Bahia, participar de outra festa. Por acaso, festa do
mesmo empresário Fernando Cavendish.
E o que faz o governador do estado
do Rio? Pede blindagem ao colega Cândido Elpídio de Souza Vaccarezza
(PT-SP), ex-líder do governo na Câmara, flagrado em maio do ano passado
trocando mensagens de texto pelo celular com Sérgio Cabral, prometendo que o PT
lhe asseguraria proteção na decantada CPI do Cachoeira: “A relação com o PMDB vai
azedar na CPI, mas não se preocupe, você é nosso e nós somos teu (sic)”, dizia
o sms. Afinal, não é apenas Paris que é uma festa, com administradores desse
calibre.
Mas voltemos a Santa Maria, o palco
da “fatalidade” que nos ocupa no momento. Num livro lançado em meados do ano
passado (a edição portuguesa da Quetzal é de outubro), A Civilização do
Espetáculo, o escritor peruano Mario Vargas Llosa volta a um tema
conhecido, o de um mundo em que o primeiro lugar na tábua de valores
vigente é ocupado pelo entretenimento e em que se divertir, fugir do
aborrecimento, é a paixão universal.
Escreve Vargas Llosa (e a
contraposição com García Márquez neste texto é intencional): “Na civilização
dos nossos dias é normal e quase obrigatório que a cozinha e a moda ocupem uma
boa parte das seções dedicadas à cultura e que os ‘chefs’ e os ‘costureiros’ e
‘costureiras’ tenham agora o protagonismo que antes tinham os cientistas, os
compositores e os filósofos. Os fornos, os fogões e as passarelas confundem-se
dentro das coordenadas culturais da época com os livros, os concertos, os
laboratórios e as óperas, assim como as estrelas da televisão e os grandes
futebolistas exercem sobre os costumes, os gostos e as modas a influência que
antes tinham os professores, os pensadores e, mais anteriormente, os teólogos.
Há meio século, provavelmente nos Estados Unidos era um Edmund Wilson, nos seus
artigos de The New Yorker ou The New Republic, quem decidia o
fracasso ou o êxito de um livro de poemas, um romance ou um ensaio. Hoje são os
programas televisivos de Oprah Winfrey. Não digo que esteja mal o ser assim.
Digo, simplesmente, que é assim.”
Não há novidade nessa obra de Vargas
Llosa em que sobra preconceito e certo ressentimento. Mas a abordagem da
vulgarização da vida e da cultura (estão aí os guardanapos-bandana para nos
lembrar disso) vale pela contextualização panorâmica. E passamos à segunda
parte da reflexão, um pouco mais delicada. Até que ponto a tragédia que ceifou
a vida os jovens estudantes de Santa Maria acaba sendo uma iguaria nessa
espetacularização da vida?
A cobertura da mídia foi rápida, com
destaque para reportagens televisivas como a do Fantástico no
domingo, quando a tragédia veio a público. Telhado de vidro para tantas
pedradas, a TV Globo é altamente competente. Seu comercial de fim de ano (“Hoje
é um novo dia, um novo tempo que começou”), mostrando em poucos minutos tanta
gente que compõe seu elenco — escritores, cinegrafistas, dramaturgos, atores,
jornalistas, apresentadores, maquiadores, aderecistas, contra-regras — é uma
prova cabal dessa potência. Na cobertura do desastre da Boate Kiss de Santa
Maria houve muita informação, bem dosada e com boa edição, mostrando,
contextualizando, explicando até o que é pneumonia química.
Houve, claro, algumas derrapadas,
como a de Fátima Bernardes na manhã desta terça-feira (29/1), adotando um tom
de rispidez com um dos responsáveis pelo Corpo de Bombeiros da cidade gaúcha —
esquecendo que a missão a imprensa é informar, não a de condenar e criar
responsáveis. Essa tarefa cabe às autoridades policiais, ao Ministério Público.
Mas no geral o balanço é altamente favorável. Talvez porque o incêndio não foi
um fato prolongado no tempo, como o sequestro da adolescente Eloá Pimentel,
para ficar num exemplo marcante, em que o suspense fez parte do circo que a
imprensa gosta de armar e alimentar.
Por ser tema delicado, uso certa
contenção. Mas não considero que a presença física de William Bonner no “palco
da tragédia” fosse necessária. Como não foi sua presença em outros incidentes,
como a cobertura dos ataques do PCC em São Paulo no tenebroso 18 de maio de
2006, entrevistando ao vivo o então governador em exercício Claudio Lembo (e a
infeliz postura do jornalista em exigir o exército nas ruas, um tema que já
tratamos aqui; naquele episódio quem conseguiu a melhor declaração foi a
repórter Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, que arrancou do jurista
a famosa frase sobre a elite branca, dominadora, escravocrata,
perversa). A presença do apresentador em frente à Boate Kiss reforçou a
espetacularização, tanto que levou o Jornal Nacionalbater recordes de
audiência.
Nesse tipo de cobertura há de um
lado a busca de bandidos e heróis, a necessidade de encontrar os responsáveis
imediatos pela tragédia (daí a contrariedade de Fátima Bernardes com o bombeiro
que afirmava que nem tudo estava tão errado com as instalações da boate). Claro
que houve uma sucessão de falhas explicando o ocorrido, como falta de
treinamento dos seguranças, a incomensurável estupidez dos “bedéis” que
tentaram impedir a saída dos jovens por não terem pago a comanda, a estupidez
do uso de fogos de artifício num ambiente fechado. Mas e depois? Como sempre,
troca-se a fechadura após o assalto. Quando o importante seria maior seriedade
na fiscalização e rigor na punição cabível. Se de fato os proprietários da
Santo Entretenimento Ltda., os donos da Boate Kiss, enfrentarem as
consequências legais pelo descuido que não foi “fatalidade” como declararam,
mas desleixo, outros donos de boates colocarão as barbas de molho. Caso
contrário, após essa catarse, estaremos esperando por novas tragédias, como o
Santiago no dia em que iam matá-lo, na Crônica de uma morte anunciada.
Carlos
Costa* é jornalista, professor da Faculdade
Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.
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