O maior equívoco do Supremo
Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão,
foi o entendimento firmado na aplicação da Lei de Lavagem de Dinheiro. A
avaliação é do advogado Fabio Tofic, do escritório Tofic e Fingermann
advogados.
Sócio-fundador do Instituto de
Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e formado em Direito pela
PUC-SP, Tofic, de 33 anos, diz que o Supremo antecipou o cometimento da
lavagem para o momento da consumação do crime. “Lavagem é o que se faz com o
dinheiro recebido, e não a forma como o dinheiro é recebido”, defende.
Em entrevista à revista Consultor
Jurídico, o especialista em Direito Penal também falou sobre outras lições que
podem ser tiradas da AP 470. Uma delas refere-se à teoria do domínio do fato.
Segundo Tofic, a doutrina surgiu na Alemanha para evitar que o mandante
recebesse pena menor do que o autor do crime. Como no Brasil essa brecha não
existe, ele diz que por aqui ela passou a ser usada como justificativa para
transformar responsabilidade subjetiva em responsabilidade objetiva. “A teoria
do domínio do fato foi usada como coringa para falta de prova”, afirma.
Tofic teceu comentários sobre o
exercício da advocacia e os desafios que os advogados enfrentam no dia a dia.
Segundo ele, o maior acesso da população à Justiça tem provocado nas cortes
superiores um endurecimento contra garantias conquistadas. “É um pais que está
dizendo o Direito de acordo com o volume de trabalho, e não de acordo com a Constituição”.
Um dos exemplos do problema que
está se criando é a restrição ao Habeas Corpus substitutivo de Recurso
Ordinário no STF. "Melhor seria que se proibisse qualquer tipo de Habeas
Corpus, aí ficaria claro o absurdo que é fazer uma restrição dessas", afirma.
Leia na íntegra a entrevista que o
jurista Fabio Tofic concedeu à revista Consultor Jurídico:
O
que pode ser visto como resultado do julgamento do processo do mensalão?
Uma questão importante é a nova Lei
de Lavagem. Apesar de, no tipo penal, ela ter mudado muito pouco, o julgamento
do mensalão foi um teste. O tipo é exatamente igual: ocultar ou dissimular a
origem, disposição, propriedade ou movimentação financeira oriundos de infração
penal. Antes era só oriundos de crime. Já a infração penal comporta também a
contravenção penal, e isso pode gerar algumas discussões sobre a
proporcionalidade da lei. Faz sentido punir com mais rigor a lavagem do que o
próprio crime principal? Isso pode acontecer no caso da contravenção, por
exemplo, ou em um crime de menor potencial ofensivo.
E
qual a sua opinião sobre isso?
É um absurdo e um erro da lei. É
como se a lavagem tivesse fim em si mesmo. Primeiro porque a lavagem de
dinheiro é uma das coisas mais mal compreendidas do novo Direito Penal.
E
o que é lavagem de dinheiro?
Existe uma definição
fenomenológica, razoavelmente aceita por todos, que diz que é o processo
destinado a conferir aparência de licitude a bens provenientes de crime ou
infração penal, como diz agora a lei. Mas como defino isso na prática? Foi a
grande dificuldade do Supremo no julgamento do mensalão e levou a inúmeros
equívocos. Aí vem a segunda pergunta: o tipo que está na lei corresponde a essa
descrição fenomenológica? Não. O tipo diz: "Ocultar ou dissimular
origem". Então é uma questão que se coloca: o tipo penal dá uma definição
diversa da sociológica? É uma incógnita. Ninguém consegue entender o que esse
tipo significa. No fundo está todo mundo, o Supremo e a doutrina, entrando em
um debate extremamente amplo e complexo, porque, no fundo, o erro é da lei.
Ninguém entende esse tipo penal.
A
lei foi mal redigida?
Ela é fruto da Convençã
o de Viena
[1988], que foi quem primeiro definiu o que seria lavagem e, na época, só se
falava em tráfico. A Convenção de Viena, que eles chamavam de lavagem da
primeira geração, punia só os crimes de lavagem derivados do crime de tráfico.
Existem outros países com tipos parecidos.
O
Brasil fez bem em incorporá-la?
Não é porque veio da Convenção ou
porque outros países fazem igual que a gente deve fazer. O que quer dizer
ocultar ou dissimular? O verbo ocultar já é uma conduta ativa comissiva. Ocultar
não é só sonegar das autoridades a existência. Ocultar é incrementar de alguma
forma com atos efetivos que esconda de uma forma mais sofisticada. É um plus.
Não é apenas uma omissão. Não é esconder em uma gaveta. É criar algo mais
sofisticado.
Com
vários critérios, a lei permite à acusação escolher o que lhe convir?
Exatamente. Se você quiser
interpretar essa lei de forma que o crime corresponda ao fenômeno social da
lavagem, é possível dizer: “Na verdade ocultar a origem é enfiar o bem em um
processo em que ele sai com a aparência de licitude”. Teria como interpretar a
norma conforme o fenômeno social, mas, como o tipo é amplo, quem interpreta
assim é porque quer interpretar dessa maneira. Se eu não quiser interpretar
assim eu não preciso, porque não aplicamos o tipo fenomenológico, nós aplicamos
o tipo penal, e o juiz vai trabalhar com o tipo penal.
É
a verdade dos autos...
É a verdade dos autos. Não importa
o que o sociólogo fala sobre o homicídio, o que me importa é a descrição da
lei. A mesma coisa a lavagem. O tipo se distanciou da sua definição
fenomenológica. O crime da lavagem de dinheiro não é mais a conduta de lavar
dinheiro, ele é aquilo o que o legislador chama de lavagem de dinheiro. E aí a
gente entra na questão: o que o legislador chama de lavagem de dinheiro é
relevante do ponto de vista criminal? É punível do ponto de vista de ofensa a
bens jurídicos? Se ele se distanciou do fenômeno social, no que se apegou
então? De onde ele extraiu essa abrangência a ponto de permitir, por exemplo,
que alguém diga que o recebimento de honorários por um serviço pode configurar
lavagem? No fundo, qual é o valor? Qual o bem jurídico? Qual a finalidade? O
que se quer proteger com a lavagem? Isso se perdeu.
Que
outras implicações ela traz?
O problema é o que mais é punido.
Receber dinheiro sem praticar fraude nenhuma ou dispor do dinheiro, por
exemplo. Se o criminoso tiver esse dinheiro em uma conta bancária, é lavagem?
“Ah, claro que é. Porque está na fase da colocação.” É o que hoje todo mundo
tem dito.
No
caso do mensalão houve até a discussão do caso em que o deputado mandava a
esposa pegar o dinheiro no banco. Pelo julgamento, isso seria uma prova de que
estaria tentando ocultar.
O que para mim é um absurdo. Havia
uma discussão, inclusive no Supremo, sobre o momento em que a lavagem
acontecia, se ela podia se confundir com o exaurimento do crime. É a tal
história: o cara recebeu dinheiro do tráfico ou da corrupção e usa esse dinheiro
para comprar carros ou outras coisas. Em um julgado do Supremo, o ministro
Sepúlveda Pertence disse: “Isso é lavagem.” Mas tem um texto do Celso Vilardi
analisando esse julgado e dizendo: “Não é lavagem. Porque gastar o dinheiro do
crime está na linha de previsibilidade disso.”
E
agora, no Supremo?
A discussão agora no julgamento do
mensalão é pior, porque eles anteciparam o cometimento da lavagem para o
momento da consumação do crime. Independente de consumação ou não, lavagem é o
que fazer com o dinheiro recebido, e não a forma como o dinheiro é recebido.
E não é só no caso do João Paulo Cunha. Numa das sessões, a ministra Rosa
Weber, que é assessorada pelo Sergio Moro (especialista em lavagem de dinheiro
e considerado um juiz rigoroso), divergiu. Ela falou: “Gente, não podemos
confundir a lavagem com o cometimento do crime. Os estratagemas que o cara usa
para receber a propina não têm nada a ver com a lavagem”. Esse é o grande
equivoco do julgamento.
E
sobre a questão do crime antecedente?
Daqui a pouco vão falar que é
lavagem ocultar ou dissimular produtos que não se conhece a procedência. É a
ideia que o ministro Gilson Dipp propôs este ano, de criminalizar o
enriquecimento ilícito. Quando o cara não consegue justificar de onde vem o
dinheiro, ele comete o crime. É como se dissesse "eu quero te acusar de
corrupção, mas não posso, porque existe uma dúvida e prevalece a presunção de
inocência. Só que, como você também não me prova o contrário, eu vou punir o mero
estado anterior, que é a manutenção do dinheiro, ou seja, você ter o
dinheiro".
Há
uma inversão do ônus da prova?
Exatamente. É uma forma de burlar a
presunção de inocência. Você não consegue, pela dúvida, punir por um crime, mas
pune por outro.
O
que pode ser extraído da maneira como o STF aplicou a teoria do domínio do
fato?
A teoria do domínio do fato nasceu
porque na Alemanha havia penas diferentes para o autor e para o partícipe.
Então o cúmplice ou até o mandante tinha pena menor do que a do autor. Aqui no
Brasil, o Código Penal, no artigo 29, não distingue a pena do autor e do
partícipe. Elas são iguais. A teoria do domínio do fato foi criada para igualar
o mandante ao autor e evitar que se aplicasse ao mandante uma pena menor.
Entender isso é de fundamental importância. A teoria surgiu principalmente por
conta dos julgamentos dos crimes do nacional socialismo [nazismo]. Senão, pelo
simples fato de o cara ter sido o mentor, ele recebia uma pena mais leve do que
a do outro, porque o Código alemão assim dispunha.
Não
é por uma questão de provas?
Ela não criou a possibilidade de
condenar alguém por algo que não fez, de que não participou. Era uma questão de
tentar equiparar juridicamente pessoas que estão em situações injustas. Porque
a participação do mentor é muito mais relevante do que a do cara que puxou o
gatilho. O cara que atirou poderia ser substituído por outros 10 mil.
Ele
foi um mero instrumento?
Foi um mero instrumento. Mas aqui
no Brasil não existe essa distinção de pena, que é a mesma para o autor, para o
mandante e para o partícipe. O que importa saber aqui é se foi mandante, se foi
partícipe, se ordenou, se praticou. Há um pouco de fetiche demais, para
enfeitar. Quem surgiu com isso [a teoria do domínio do fato] no processo foi o
Procurador Regional da República. É para mostrar vanguarda internacional na
tese que está sustentando, que, no fundo, é uma questão de prova. O cara
participou? Ordenou? Deu a ordem? Sabia e não fez nada para impedir? É isso.
Então
criaram essa discussão por uma coisa desnecessária?
É. Tem gente que passou a adotar a
teoria do domínio do fato para justificar a responsabilidade objetiva. Essa é a
questão. Não é que pela teoria do domínio do fato não precisa provar a
participação do mandante. Nunca ninguém disse isso, muito menos Claus Roxin. A
teoria do domínio do fato permite que se equipare o mandante ao autor do crime.
O que no Brasil não faz diferença nenhuma.
Se
aqui no Brasil eles já estavam equiparados, ao aplicar essa teoria, o mandante
acaba sendo mais apenado que o executor?
Não. Porque a teoria do domínio do
fato foi usada como se fosse um coringa para falta de prova.
Isso
ocorreu no processo do mensalão?
Nas alegações finais da
Procuradoria-Geral da República. Não sei se tem prova ou não tem, porque não
conheço o processo. Mas o que deu a entender foi que, pela teoria do domínio do
fato, o José Dirceu tem de ser [condenado], porque ele tinha o domínio do fato,
ele era o homem mais poderoso do governo. Isso não é suficiente. Tem de ter
prova que ele participou do fato.
Ouviu-se
muito a seguinte frase: “Não é possível que fulano não sabia que acontecia tais
e tais coisas”.
Se isso é um argumento válido, aí eu estou com as defesas: era caso de quebra de individualização da Ação Penal, porque deixaram de denunciar um dos réus. Se fosse por esse raciocínio você presume que até o mais alto degrau da hierarquia tinha de saber. Enfim, é presumir.
Se isso é um argumento válido, aí eu estou com as defesas: era caso de quebra de individualização da Ação Penal, porque deixaram de denunciar um dos réus. Se fosse por esse raciocínio você presume que até o mais alto degrau da hierarquia tinha de saber. Enfim, é presumir.
O
Márcio Thomas Bastos disse que aqui no Brasil há aqueles que a população julga
como os indignos de defesa. O senhor concorda com isso?
Concordo 100% com ele. Ele sentiu
isso na pele. O que não pode acontecer, e é essa a moda, é o advogado se render
ao politicamente correto. É o que está acontecendo, por exemplo, na Lei de
Lavagem. É o advogado achar que tem algum problema ele receber um dinheiro sem
saber de onde vem. O advogado que não tem consciência de que ele pode receber
honorários desde que pague impostos tem algo errado em sua formação.
Mas
há também as causas que contam com apoio da população.
Se for uma causa simpática à população,
ninguém vai questionar de onde vêm os honorários. Esse questionamento sempre
acontece quando o acusado é odiado e tem dinheiro. Por que ninguém pergunta
quanto ele pagou para o arquiteto fazer a casa em que ele mora? Por que ninguém
pergunta quanto o cirurgião cobrou para fazer a cirurgia do cara? Por que ninguém
pergunta como ele paga a escola dos filhos dele? O problema é receber o
dinheiro ou o problema é quem está recebendo?
Há
confusão entre Justiça e vingança?
Há algumas confusões. A primeira é
de que o advogado é cúmplice do cliente. E o Márcio foi vitima disso. O
advogado não é visto como um ser honesto, decente, com princípios, um homem
íntegro e que aceita a incumbência cristã de ajudar o próximo em uma situação
difícil. Já vi gente em programa de televisão, de jornal, já vi professora de
Direito da USP dizendo que é um absurdo o advogado receber de criminosos. Na
eleição da OAB-SP, usaram contra o Alberto Toron [candidato a presidente da
entidade] o fato de ele ser advogado do João Paulo Cunha. Se isso depõe contra
o candidato, estamos numa crise sem fim da advocacia. Perdemos completamente a
consciência do que somos, do que temos a fazer.
O
que podemos esperar do novo Código Penal?
Um projeto de Código Penal que a
advocacia não gostou, o Ministério Público não gostou e a magistratura não
gostou não pode ser bom.
Mas
isso não provaria o seu equilíbrio, já que não agradou ninguém?
Não. Se fosse num ponto especifico,
tudo bem. Por exemplo, a definição de lavagem a advocacia achou rigorosa
demais, já o MP achou leniente demais. Aí você pode falar que simboliza um
equilíbrio. O problema é que não são em questões pontuais. Cada um tem sua
crítica. Essa coisa de mudança de lei eu nunca vejo qual é a utilidade. Nunca
vi uma lei que entrou em vigor, na área penal pelo menos, que fez as coisas
melhorarem. Principalmente na área do Direito material. Você já tinha ouvido
falar em lavagem de dinheiro antes de 1998? Não. A lei veio e apareceu o crime.
Isso está resolvendo o problema da lavagem de dinheiro?
O
que poderia ser aplicado no lugar da Lei de Lavagem?
O crime de favorecimento real está
no Código desde 1940, e tinha uma pena razoável. Ele não permitia a condenação
do sujeito por esse crime, se ele já era o autor do crime anterior. Ele tinha
toda uma sistemática ótima para esse crime. Para que inventaram a lavagem de
dinheiro? O que melhorou? O que resolveu? Algumas coisas obviamente precisam
ser mudadas, porque são aberrações, e aberrações que geram conseqüências
graves.
Poderia
citá-las?
O artigo 273 do Código Penal. Esse
crime é punido com uma pena mínima com dez anos de prisão. Nesse artigo,
comprar um equipamento ou qualquer coisa sem autorização da Anvisa é o
mesmo crime da falsificação de medicamentos. É um crime que ganhou uma
ampliação tão grande que tem gente que, por uma questão ridícula, está
condenada a dez anos de prisão. É uma excrescência, precisa mudar e é grave.
Isso coloca gente de bem na cadeia para cumprir pena de homicídio qualificado.
Há
quem defenda que o Código Penal precisa de atualização.
Acho ridículo. Nosso Código Penal é
muito bom. A parte geral é muito boa. É claro que há várias coisas que podem
ser melhoradas, mas já se criou uma doutrina, uma jurisprudência em cima do
Código. A reforma de 1984 trouxe inúmeras atualizações importantes. Não entendo
por que mudar.
E
os crimes cibernéticos?
Fábio Tofic — Talvez na
informática um ou dois crimes precisem passar a existir. Não existe no Código o
dano digital. Entrar no sistema de alguém e destruí-lo é gravíssimo. É como, há
100 anos, tocar fogo e incendiar a loja de uma pessoa. Agora, fraude via
internet é fraude, é furto, é estelionato. A jurisprudência arrumou uma forma
de acomodar isso. Só muda o meio. O crime é o mesmo.
Recentemente
foi aprovada uma tese na USP defendendo que o negacionismo não poderia ser
criminalizado. A tese fala de negacionismo histórico, sem citar o Holocausto.
Qual sua opinião sobre isso?
Quando se fala negacionismo, está
muito ligado ao Holocausto. Ao revisionismo. O cara que nega o Holocausto é um
estúpido. Mas se formos prender todo mundo que a gente acha estúpido, vai
sobrar meia dúzia. Estupidez é estupidez, não é crime.
É
uma idéia boa ou ruim tirar do Ministério Público o poder de investigação, como
prevê a Proposta de Emenda Constitucional 37?
Fábio Tofic — Não sei se
sou ovelha negra ou se não entendi algum capitulo da história, mas nunca fui
contra o poder de investigação do Ministério Público.
Por
quê?
Fábio Tofic — Prefiro
colocar meu cliente na frente de um promotor do que na frente de um delegado de
polícia. O problema é que temos um órgão incumbido da investigação penal, que é
a polícia, e um outro órgão que também pode investigar. Na verdade, “pode”
significa "faz quando quer". Se o Ministério Público souber de um
crime e não quiser investigar ele não responde por prevaricação, porque é uma
opção, não um dever. Isso coloca o MP em uma posição confortável demais para
uma instituição. Cria-se o arbítrio. Hoje não, porque temos um Ministério
Público muito sério. Respeito muito seus membros. Temos de pensar na
instituição, e nos homens que um dia podem estar lá daqui 20 ou 30 anos.
O
que deve ser feito?
Fábio Tofic — É razoável
o que o Supremo começou a definir há alguns meses: tentar definir em que casos
o Ministério Público pode e não pode investigar. É evidente que em um caso de
tortura ou corrupção policial, não vai ter ninguém para apurar se o MP não puder
investigar.
Isso
implicaria em que tipo de mudanças nos inquéritos e processos?
No momento em que você permite o MP
investigar, algumas coisas precisam ser observadas. Por exemplo, eu tenho
direito, como advogado, de arrolar o promotor que capitaneou as investigações
como testemunha do processo. Assim como o promotor, eu normalmente intimo o
delegado do flagrante. Se o promotor investiga, oferece a denuncia e atua no
processo, ele os papeis deles ficam confusos, como testemunha, como
pessoa que atuou na fase pré-processual e como a parte contrária. Aí é
complicado.
O
que o MP deveria fazer nesse caso?
Fábio Tofic — O
Ministério Público precisa se organizar para definir melhor os papeis. Já
trabalhei em caso que o MP investigou e deu depoimento pessoal: “O que essa
testemunha falou é verdade mesmo, porque fui eu que colhi o depoimento dela”.
Aí é importante que se dê também a chance de o advogado colher o depoimento no
seu escritório, para ter paridade de armas. É muito comum nos Estados Unidos.
Lá audiência é feita nos escritórios.
Mas
com a presença do juiz, não?
Não necessariamente. Vai um oficial
com um cartorário, para registrar.
Isso
poderia ser feito aqui?
Fábio Tofic — Deveria ser
feito. No momento em que você dá o poder de o Ministério Público investigar,
tem de dar o poder da defesa. É a mesma coisa no casão de cooperação jurídica
internacional. O Estado vai lá no além-mar, busca provas, trás para cá e
processa o seu cliente. Aí, se você quiser produzir uma contraprova arrolando
alguém lá do além-mar, é preciso pagar uma rogatória que custa R$ 50 mil. Se o
acusador tem isso financiado pelo Estado, a defesa tem de ter também.
Isso
é cerceamento de defesa?
Total. Estamos caminhando cada vez
mais para um Direito Processual Penal que valida qualquer coisa que o Estado
acusador queira fazer e coloca todos os obstáculos possíveis ao exercício da
defesa, principalmente por conta dessa questão da cooperação internacional.
Sempre com argumentos de ordem administrativa. Como vou me defender de uma
acusação cuja prova foi colhida na Holanda se eu não puder ir colhê-la na
Holanda?
Mas
pagar por isso não oneraria a sociedade para favorecer um particular?
Você vai me negar o direito de
ouvir o cara que prendeu o meu cliente na fase policial? É a contraprova.
Hoje
pode-se colher depoimentos no escritório?
Fábio Tofic — Não. O que
dá pra fazer, e se assemelha um pouco a isso, é a declaração pública no
cartório. Você leva uma testemunha no cartório, pede para ela fazer uma
declaração, e junta ao processo. Isso tem força de fé pública, quer dizer,
prova que aquela pessoa realmente prestou esse depoimento.
E
isso hoje em dia é usado normalmente?
Fábio Tofic — Razoavelmente
comum. Quando a testemunha está hospitalizada, leva-se o tabelião ao local e
colhe-se o depoimento dela.
Qual
sua opinião sobre essa mudança implantada pelo STF quanto a Habeas Corpus?
Com a redemocratização de
1988, houve uma constitucionalização do Direito Penal e do Direito Processual
Penal. Surgiram inúmeras garantias. Evidentemente as cortes superiores passaram
a exercer um papel muito importante de moldar a Justiça aos novos tempos. Isso
passou a ser feito na maioria das vezes por réus com advogados contratados e o
Superior Tribunal de Justiça e o STF acabaram se tornando os grandes
porta-vozes de um Direito Penal mais garantista. Isso é inegável. Eles podem
ter passado por momentos mais duros, menos duros, mas, sem dúvida nenhuma, eles
foram responsáveis por criar uma jurisprudência garantista, que impede abusos.
E
atualmente?
De alguns anos para cá, duas coisas
importantes aconteceram. A primeira foi a ascensão da classe C, D e E, e, junto
a isso, a possibilidade de contratar um advogado. Ao lado disso criação da
Defensoria Pública do Estado de São Paulo [2006], que responde por uma parcela
enorme de Habeas Corpus nos tribunais.
E
como as cortes superiores reagiram?
O STJ passou nos últimos dois anos
por um movimento de endurecimento absurdo. Teses que antes eram aceitas hoje
não são aceitas. Existe uma argumentação jurídica, mas a razão é de ordem
administrativa. É aquele pensamento: “Eu vou negar, porque, se eu der, vai
chover Habeas Corpus.”
Há
exemplos desse endurecimento?
Em São Paulo, o defensor público
precisa ser intimado pessoalmente para o julgamento do recurso no Tribunal de
Justiça. Não basta sair uma intimação na Imprensa Oficial, tem que ir um
oficial e intimá-lo pessoalmente. A jurisprudência do STJ até dois anos atrás
era praticamente pacifica: se ficou constatado que em algum momento lá atrás
houve um julgamento no tribunal e o defensor dativo ou o defensor público não
foi intimado pessoalmente para o julgamento, anula-se todo o processo.
E
agora?
De uns tempos para cá, no STJ, há
casos flexibilizando esse etendimento, dizendo: “Ele não reclamou logo em
seguida. Tinha que ter sido feito assim”. As questões de Processo Penal e
Direito Penal já não são consideradas pouco graves ou muito graves pelo caso em
si, mas pela repercussão que ele terá no movimento da máquina judiciária, caso
seja deferido ou não. Isso é muito grave. É um pais que está dizendo o Direito
de acordo com o volume de trabalho, e não de acordo com a Constituição.
É
o caso da restrição a Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário?
Foi o tiro de misericórdia, quando
o Supremo disse que não cabe mais Habeas Corpus substitutivos de Recurso
Ordinário. Eu entrei com HC e perdi. Assim que saiu acórdão, eu junto o acórdão
no novo HC, amanhã eu estou no STJ, despachando a liminar com o ministro. O que
significa dizer que não existe mais esse Habeas Corpus substitutivo de Recurso
Ordinário? Significa que você transformou o HC em um recurso. Já temos um monte
de recurso, não precisa HC. Agora, primeiro, eu tenho que esperar a publicação
do acórdão, coisa que no Tribunal de Justiça de São Paulo não coincide com sua
disponibilização. O acórdão é disponibilizado hoje, mas pode ser publicado só
daqui a dois meses. Vou entrar nos autos com o recurso, esse recurso vai ser
processado e remetido a critério da burocracia do tribunal para o STJ. Eu não
poderei mais chegar no dia seguinte no STJ.
No
que isso pode implicar?
Se o sujeito estiver condenado à
forca e a execução estiver marcada, você não pode entrar com o HC? Podem dizer
que em alguns casos vão admitir, mas é ai que mora o maior problema. No próprio
julgamento onde a 1ª Turma do STF entendeu que não cabe mais Habeas Corpus
substitutivo, ela entendeu dar de oficio aquela ordem de HC. No próprio
julgamento onde se decidiu que não cabe mais, coube. E aí eles estão com
entendimento de que se for impetrado antes da mudança de entendimento, eles vão
conhecer e julgar. E mesmo assim, em alguns casos excepcionais cabe. Como no
caso da Súmula 691.
O
que é essa súmula?
Ela diz que não cabe Habeas Corpus
contra decisão monocrática de liminar proferida pelo ministro do tribunal
inferior. Tem uma súmula que diz que não cabe HC nessa situação, mas tem uma
jurisprudência enorme, abundante, que diz que em casos excepcionais é possível.
Havia muitos casos em que se entrava com HC no TJ aqui e perdia a liminar.
Antes de julgar o HC, você já entrava com outro no STJ, outra liminar. Perdia a
liminar, antes de julgar o HC do STJ, você já ia para o Supremo. Você chegava
no STF sem ter nenhum HC julgado, só com liminares. E, dependendo do caso, te
davam liminares lá no Supremo, porque é situação excepcional. Só que não dá
para identificar um critério na jurisprudência para dizer quando cabe ou quando
não cabe a flexibilização dessa súmula. É quando o juiz entende que o caso é
absurdo. O efeito mais deletério dessa sistemática é criar uma Justiça obscura.
O
que isso pode implicar para o jurisdicionado?
Em um país com a tradição de
favorecimento que a gente tem aqui, não é a coisa mais desejada que ter um
instrumento cuja concessão ou denegação depende da decisão daquele juiz naquele
caso. Não tem mais parâmetro. Isso é o mais grave de tudo.
Há
um recurso extraordinário com Repercussão Geral Supremo que discute considerar
ou não os processos criminais em andamento como maus antecedentes no cálculo da
pena base. E tem uma súmula no STJ, a 444, que veda a utilização de inquéritos
policiais e ações penais em curso para agravar a pena base. Como o senhor vê
essa discussão?
É um absurdo agravar a pena base
com base em inquérito ou processo em andamento. Você está considerando de
alguma forma o sujeito culpado por aquele crime que ainda não foi julgado, e
será julgado por outro juiz. Não tem nada que fira mais a presunção de
inocência, e o princípio do juiz natural da causa. O sujeito não julgou o caso,
ele não sabe o que tem no bojo do processo, ele não acompanhou as audiências,
ele não ouviu os argumentos. Como ele pode considerar que aquele fato é capaz
de levar alguém por mais três meses para a prisão?
Revista Consultor Jurídico
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