Por Luis Alberto da Costa
A ação penal 470, o “célebre
julgamento do mensalão”, tem mesmo um poder simbólico imensurável. E a
principal questão envolvida nesse simbolismo parece estar na seguinte
indagação: será que, no Brasil, após a condenação dos réus do mensalão,
considerando que a pena de prisão imposta pelo STF seja mesmo cumprida pelos
condenados, os chamados crimes de colarinho branco, incluindo os de corrupção,
lavagem de dinheiro, evasão de divisas, etc., geralmente cometidos por
“honoráveis membros das classes sociais dominantes”, passarão mesmo a resultar
em cadeia? Será que o nosso glorioso Código Penal vai mesmo passar a ser
cumprido no que se refere a esses “crimes de elite”?
Se isso vai acontecer, ou não, se a
Lei passará a ser cumprida para esse tipo de crime, ou se o mensalão não
passará de um caso excepcionalíssimo em nosso Direito, é mesmo muito difícil
afirmar. Mas o que podemos asseverar é que já se nota uma nítida mobilização em
alguns setores da nossa sociedade para o caso de uma resposta afirmativa a esta
indagação. Ou seja, já se começa a buscar novas formas de proteção aos
criminosos de elite. Afinal, como afirma Lenio Streck, em um de seus excelentes
artigos: “vai-que-o-Brasil-mude-mesmo depois do mensalão e, de fato, os crimes
do colarinho branco passem a “dar” cadeia”.
Mas antes de seguir no texto,
façamos uma breve parada para relembrar a lição da eminente Professora Marilena
Chauí:
Além de procurar fixar seu modo de
sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias
ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida
individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Em
sociedades divididas em classes (e também em castas), nas quais uma das classes
explora e domina as outras, essas explicações ou essas ideias e representações
serão produzidas e difundidas pela classe dominante para legitimar e assegurar
seu poder econômico, social e político.
Ora, a classe social dominante
sempre produz, e produzirá, ideias para se manter segura, hegemônica,
inexorável em seus domínios. E, nesse sentido, surge outra indagação: como as
elites pretendem proteger seus “nobres delinquentes” depois do mensalão?
Pois bem, sabe-se que as penas para
os crimes de colarinho branco em nosso país sempre se caracterizaram por um
grau insignificante de efetividade. Isso nem é preciso se discutir. A
quantidade de condenados é irrisória, e a de punidos (efetivamente) menor
ainda.
Mas as penas para tais crimes,
previstas no Código Penal, incluem, via de regra, a reclusão, e, desse modo, se
é tal lei é elaborada pela própria classe dominante (e disso ninguém pode ter
dúvida), porque essa classe iria estabelecer pena de cadeia para os crimes de
elite? Simples, se não há efetividade, ou seja, se as penas para os crimes de
colarinho branco jamais são cumpridas (exceto em casos excepcionalíssimos),
definitivamente, não há (ou não havia até agora) o que temer. Na verdade, a
previsão legal de prisão para esses crimes tem (ou tinha) um importantíssimo
valor ideológico, pois, se “a ideologia é o ocultamento da realidade social”
(Chauí, 2008, p. 24), nada mais perspicaz (para eles) do que prever cadeia para
os criminosos de elite, sabendo que, de fato, tal pena jamais será efetivada.
E justamente por isso nunca se
ouviu mobilização ideológica significativa no sentido de se contestar a pena de
prisão para os crimes de elite. Nunca se viu a preocupação de se sustentar que
para os crimes de colarinho branco a pena de prisão seria um “exagero”, ou que
caberia a aplicação de “penas alternativas”. Claro, as elites não precisavam
dessa proteção. Entretanto, em “tempos de mensalão”, parece que as coisas
começaram a mudar.
O Ministro Dias Toffoli, do STF, no
próprio julgamento do mensalão, ao criticar a “dureza” das penas aplicadas aos
réus, defendeu penas alternativas para este tipo de crime. Para ele, trata-se
de “pessoas que não são violentas, que não agridem o ser humano do ponto de
vista real”. Carlos Velloso, ex-ministro do STF, também sustenta a aplicação
das penas alternativas: "quem não é perigoso, não vai causar dano físico à
sociedade, pode estar sujeito a penas alternativas”, disse ele, e ainda,
Romualdo Sanches Calvo Filho, presidente da Academia Paulista de Direito
Criminal, defende a substituição da prisão pela pena de multa. E no editorial
da Folha de S. Paulo, intitulado “Para quem precisa”, sustenta-se que a pena de
prisão deve ser aplicada somente aos crimes cometidos com violência física ou
grave ameaça, e não para os crimes cometidos mediante fraude. Em suma, a nova
tese é de que só devem ir para a cadeia aqueles criminosos que representariam
um risco para a sociedade, por terem praticado “crimes violentos” (entendido o
termo no sentido mais conveniente à classe dominante, claro).
Os que defendem essa tese alegam
ainda que as condições na maioria das cadeias brasileiras são abjetas (como se
houvesse alguma novidade nisso) e, desse modo, seria “muito cruel” mandar para
cadeia alguém que tenha praticado um crime de colarinho branco. É claro, são
pessoas tão finas, tão “bem-educadas”, de nível tão requintado. Afinal, o
colarinho branco não combina como a sujeira das “masmorras medievais” do nosso
sistema penitenciário.
Numa perspectiva da Teoria dos
Direitos Fundamentais, chega a ser bizarro esse argumento. Será que eles estão
dizendo que nossos presídios são “masmorras”, mas isso ofenderia apenas a
dignidade do delinquente de colarinho branco, enquanto o pobre, o desgraçado, o
miserável, o infeliz que roubou, furtou, traficou, estaria ele num ambiente
adequado (ou quase adequado) à suas condições humanas? Seria um ambiente
adequado à choldra? Será que eles (os defensores dessa tese) estão chegando a
tal cinismo?
Dizem então, por essa tese, que se
um sujeito pratica um roubo, que é, por definição, um crime praticado mediante
violência ou grave ameaça, ele deve ir para a “masmorra”, pois se diz que ele é
um “perigo para a sociedade”. Porém, se um sujeito pratica um delito de
corrupção, desviando milhões de reais da saúde pública, por exemplo, ele não
deveria ir para a cadeia, pois ele não seria, nessa tese, “perigoso para a
sociedade”.
Contudo, a toda evidência, e é
preciso lembrar com ênfase esta observação, os crimes de colarinho branco,
especialmente os crimes de corrupção, consistem, sim, em atos de violência
contra a sociedade, porque o resultado desses crimes produz um grave sofrimento
para toda a comunidade, sobretudo, para os que mais necessitam para as classes
que mais padecem com as nossas extremas desigualdades sociais. Imaginem alguém
que está agora na emergência de um hospital público esperando atendimento e que
não tem nem mesmo onde se deitar. Será que esta pessoa está sofrendo? Será que
desvios de verbas do sistema de saúde pública causam situações de sofrimento
dessa natureza? Nesse sentido, temos opiniões brilhantemente sustentadas, tanto
no meio jurídico, quanto na imprensa em geral, lembrando, por todos, os
excelentes artigos de Lenio Streck (já referido) e de Reinaldo Azevedo. Enfim,
essa violência contra a sociedade é exatamente o que tal ideologia dos crimes
de elite pretende ocultar.
A violência está em toda ação capaz
de causar sofrimento a outrem. A violência do delito está não apenas na
ação de quem pratica a conduta tipificada, mas também no resultado dessa
conduta, isto é, o mandante de um homicídio dá uma ordem ao executor, mas no
resultado da ação do mandante está a violência. Um crime de maus tratos, de
tortura ou até de homicídio, pode ser praticado por omissão, e onde está nesse
caso a violência? Não está na conduta em si, mas no seu resultado. Portanto, o
resultado de um crime de corrupção, por exemplo, também poder ser dotado de um
grau de violência, por vezes, elevado.
Mas, acima de tudo, é preciso
lembrar que no Estado Democrático de Direito não se pune as pessoas por causa
de um suposto perigo que elas representem para a sociedade. Ou seja, querem afirmar
que aqueles que cometem os crimes considerados “violentos”, ou “mais
violentos”, devem ser encarcerados e afastados da vida em sociedade, para que
os demais membros da comunidade vivam em segurança. Ora, fosse assim, se a
gravidade da pena tivesse de ser proporcional ao risco que o delinquente
representa para a sociedade, estaríamos simplesmente punindo alguém por um ato
ainda não praticado, vale dizer, em razão de uma probabilidade de que ele venha
a causar dano à sociedade.
Como afirma o Professor Lenio
Streck, no já referido artigo, pena é prevenção geral e retribuição (não vamos
falar do mito da ressocialização, claro). A punição de um criminoso representa
para a sociedade, além da retribuição, a afirmação para todos os integrantes do
corpo social de que se aquela conduta for praticada o agente sofrerá a
respectiva penalização. A prevenção, portanto, é geral, e não simplesmente
dirigida ao autor do delito. Fosse assim, para prevenir o crime de corrupção
ativa, bastaria proibir o infrator de ocupar cargo ou função pública, e pronto,
ele não cometeria mais tal delito.
A pena também é retributiva. Toda
sanção penal corresponde à prática de um ato criminoso, um fato típico, uma
conduta já praticada, e não se vincula ao risco que o infrator supostamente represente.
Vejamos um exemplo: um sujeito que já tinha praticado roubo sete vezes volta a
praticar o mesmo crime, será que, sendo alta a probabilidade de que este
indivíduo volte a delinquir, a pena mais adequada para ele seria aquela que o
faça permanecer mais tempo encarcerado, “afastado do convívio social”, ou a
mais adequada seria uma pena proporcional à gravidade do delito praticado?
O que quero dizer, portanto, é que
o fundamento da pena é a responsabilização do infrator, na exata
proporcionalidade da gravidade do delito já cometido, e não com base numa
probabilidade de que este infrator possa causar mais danos para a sociedade.
Vamos a outro exemplo: um sujeito
está portando uma arma de fogo com o fim de atentar contra a vida de alguém,
aciona o gatilho, tentando efetuar o disparo, mas a arma falha. Posteriormente,
constata-se que aquela arma estava totalmente inoperante, não tinha qualquer
possibilidade de disparar. Pergunta-se então: existe o risco de que esse
sujeito volte a tentar cometer homicídio? A julgar por sua conduta, sim, existe
um risco considerável. Mas, esse risco fundamenta a aplicação de uma pena?
Claro que não, pois não há responsabilização, já que não houve crime, nem
tentado - hipótese de crime impossível, por ineficácia absoluta do meio, art.
17, CP, isto é, existe o risco, mas não há fundamento para aplicação da pena.
E é assim que as ideologias são
produzidas, distorcendo os fundamentos, distorcendo a realidade, baseando-se em
situações aparentes, em aparências sociais. Mais uma vez com Marilena Chauí: “a
ideologia é ilusão, isto é, abstração e inversão da realidade, ela permanece
sempre no plano imediato do aparecer social”. No caso da ideologia do crime de
elite, essa aparência pode ser facilmente desencoberta, pois se baseia, sobretudo,
em duas falsas premissas: primeira, de que os crimes de colarinho branco não
causam violência contra a sociedade; e segunda, de que o fundamento da
aplicação de uma sanção penal é o suposto risco que o infrator representa para
a sociedade.
Talvez, num futuro não muito
distante, as penas de prisão sejam abolidas, substituídas por outras restrições
de direito. O Direito é um processo adaptativo, conformado pelas condições de
cada contexto histórico. De fato, ninguém precisa, realmente, de prisão, não é
uma necessidade humana, ela é um inconveniente necessário à efetividade do
Direito. Se a Lei prevê pena de prisão para o homicídio, para o roubo, para o
tráfico de drogas e para a corrupção, por exemplo, é porque tal sanção é
necessária à eficácia do preceito que estabelece a proibição dessas condutas,
simples assim. Talvez um dia a sanção necessária seja outra. Mas, sempre,
sempre tem de haver proporcionalidade entre a intensidade da sanção e a
gravidade do delito, e se a gravidade do delito de corrupção é a mesma, ou
maior, que a do crime de roubo, p. ex., tem de haver a mesma proporcionalidade
entre as penas.
Para encerrar: sejamos francos, tem
muito criminoso de colarinho branco começando a considerar a possibilidade de
que um dia, talvez, chegue a sua vez. Afinal, até onde chegará a força
simbólica desse tal mensalão?
Revista Consultor
Jurídico
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