Por Pedro Valls Feu Rosa* - Via O Porrete
Um dos aviões mais populares do
mundo é o Boeing 737, capaz de carregar entre 124 e 215 passageiros, dependendo
da versão. Um outro avião muito popular é o Airbus A320, que carrega de 145 a
180 passageiros. Pois bem: faça um exercício de imaginação e pense em um avião
destes ocupado exclusivamente por crianças – imagine 200 delas viajando nele.
Agora tente conceber um horrível acidente, que cause a morte de todas estas
crianças. Seria um escândalo, uma comoção nacional.
Em seguida tente imaginar um
acidente desses a cada mês! Sim, é isso mesmo: a cada mês um Airbus ou um
Boeing lotado de crianças se espatifando no chão e causando a morte de todas
elas. Seria um escândalo mundial! Investigações seriam abertas, passeatas pediriam
a punição dos culpados e toda a população manifestaria sua revolta diante deste
descaso para com a vida humana.
Pois é. No Brasil, 20 crianças
morrem a cada dia por falta de esgoto sanitário – são 600 crianças por mês, ou
3 Boeings lotados. No ano passado divulgou-se que diariamente morrem 7 crianças
menores de 5 anos devido a doenças decorrentes da falta de saneamento básico –
são 210 crianças por mês só nesta faixa de idade, ou mais do que um Airbus
lotado. E isto não causa impacto algum! Caiu na rotina! Que diferença faz um
avião!
Realmente não dá para entender: se
estas crianças estivessem morrendo dentro de modernas aeronaves seria um
escândalo de gravíssimas proporções. Mas, como estão morrendo de doenças como
cólera, disenteria, hepatite e gastroenterite, tudo passa a ser ‘um
simples problema social decorrente do processo de desenvolvimento’, e pronto!
E foi assim que, há poucos meses,
divulgou-se que 53% dos brasileiros não têm acesso a saneamento básico.
Concluiu-se, mais, que a ser mantido o ritmo histórico de investimentos nesta
área a rede de esgoto só chegará para a totalidade da população no ano de 2122,
quando o Brasil estiver celebrando seus 300 anos de independência!
A quem estiver supondo que esta é
uma mazela de alguns grotões das regiões Norte ou Nordeste, recomendaria
cautela. Os dados divulgados mostram que em Santa Catarina apenas 10% da
população contam com esgoto, e no Rio Grande do Sul 15%. Seria este um problema
das áreas rurais? Não: em Porto Alegre míseros 10% da população têm acesso a
esgoto, e na média das regiões metropolitanas apenas 63%. Aliás, foram
divulgados os casos de diversas cidades com mais de 100 mil habitantes nas
quais o esgoto não chega nem a 3% dos moradores.
Neste mesmo Brasil, conforme dados
divulgados no ano de 2005, o total de despesas em propaganda dos governos
federal, estaduais e municipais somou quase R$ 1 bilhão. Enquanto isso, a cada
mês caía o avião lotado de crianças. Em 2007 a União gastou R$ 17,4 milhões com
festas, homenagens e solenidades promovidas por órgãos públicos. E continua
caindo o avião com as crianças dentro. Em 2006 constatou-se que a corrupção
abocanha 32% da arrecadação de impostos do Brasil. E lá vai o avião das
crianças se espatifando no chão. Em 2007 o Tribunal de Contas da União
identificou 400 obras paralisadas no país após terem consumido R$ 2 bilhões de
recursos públicos. E eis o avião dos pimpolhos ardendo no chão, carbonizando-as
todas.
O problema é mundial. Segundo a ONU,
falta saneamento básico para 2,6 bilhões de pessoas, ou 41% da população
mundial. Isto causa a morte de 42 mil pessoas por semana, e de uma criança a
cada 20 segundos. Este problema poderia ser solucionado em 20 anos, com
investimentos anuais de 10 bilhões de dólares - o equivalente a 1% dos
investimentos militares feitos anualmente no mundo. Assim, talvez seja a hora
de recordarmos as palavras de James Reston, segundo quem “todas as decisões
políticas baseiam-se na indiferença da maioria”.
*Pedro Valls Feu Rosa – Desembargador,
Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - Via O PORRETE - http://www.oporrete.com.br/justica-e-democracia/5292-o-boeing-as-criancas-e-o-esgoto
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