Rubem Alves*
Meninos,
meninas, vou lhes contar como tudo começou, do jeito como me ensinaram. Há
muitos milênios atrás (um milênio são mil anos!), antes mesmo que a roda
tivesse sido inventada, a vida era uma pancadaria generalizada, pauladas,
pedradas, furadas ( eram feitas com paus pontudos; ainda não haviam descoberto
um jeito de fazer flechas com pedras lascadas), cada um por si, cada um contra
todos. Um famoso pensador chamado Hobbes disse que era um estado de “guerra de
todos contra todos”. Não havia leis. As leis servem para proibir aquilo que não
pode ser feito. Assim, cada um fazia o que queria. Roubar não era crime porque
não havia uma lei que dissesse “é proibido roubar”. Matar não era crime porque
não havia uma lei que dissesse “ é proibido matar”. E não havia pessoas
encarregadas de fazer cumprir a lei: juizes, polícia. É para isso que a polícia
existe: para impedir que a lei seja quebrada e para proteger os cidadãos
comuns. Quem tivesse o porrete maior era o que mandava. Houve até um famoso
presidente dos Estados Unidos que explicou o seu jeito de governar: “Falar
manso e ter um porrete grande nas mãos...” Os jeitos primitivos continuam ainda
em vigor.
É
fácil entender. Imaginem uma coisa doida: um jogo de futebol em que não haja
regras e
nem haja um juiz que apite as faltas. Tudo é permitido. Tapas, murros,
rasteiras, xingamentos, levar a bola com a mão, mudar de time no meio do jogo.
Ao final de cada jogo o número de mortos e feridos é grande. Os amantes de
futebol queriam continuar a jogar futebol, mas sem medo da violência. Eles se
reuniram e disseram: “Não é possível continuar assim. Vamos fazer regras para o
futebol. E vamos ter, no campo, um homem que faça com que as regras sejam
cumpridas.” E assim fizeram. E o futebol se transformou num jogo civilizado (
às vezes...)
Pois
os homens daqueles tempos chegaram à mesma conclusão. Não valia a pena
continuar a viver daquele jeito. Eles se reuniram numa grande assembléia e chegaram
a um acordo: “Só há uma solução. É preciso que cada um deixe de fazer o que lhe
dá na telha. Precisamos leis. Mas, para ter leis, precisamos de um homem que
faça as leis. E não só isso: um homem que tenha o poder para punir todos
aqueles que quebram a lei.
Os
homens, assim, abriram mão das suas pequenas vontades individuais para poderem
viver uns com os outros em paz. E para que houvesse um homem que fizesse as
leis e punisse os criminosos eles escolheram um que seria o seu Rei, ele e os
seus descendentes. O Rei teria que ser aquela pessoa que reinaria para a paz
dos homens comuns, os seus súditos. O Rei teria de ser uma pessoa que, ao mesmo
tempo, combinasse sabedoria e força. Sabedoria para fazer as coisas certas. E
força para que punisse os malfeitores. Em toda situação há sempre os
malfeitores, aqueles que quebram as leis. Também no futebol há os malfeitores.
No futebol os malfeitores são aqueles que quebram as regras, aqueles que,
pensando que o juiz está distraído, dão rasteiras e tentam fazer gols com a
mão. Se o juiz ficar desatento e não apitar as faltas a partida de futebol vira
pancadaria.
Mas
esses homens que elegeram o Rei eram ruins em psicologia. É sempre assim: em
período de eleição todos os candidatos se apresentam como honestos, puros,
pessoas que só desejam o bem do povo. Mas o povo não conhece psicologia.
Acredita naquilo que lhes é dito. Não sabem que essas falas dos candidatos são
como a isca no anzol do pescador. O seu objetivo é apenas “fisgar” o voto do
povo. E esses puros, uma vez no poder, passam por horríveis transformações.
Belos, transformam-se em Feras. Aconteceu assim com os Reis, tão bonitos, tão
honestos, antes de terem a coroa na cabeça e a espada na mão. Mas uma vez no
poder transformaram-se em Tiranos. Tiranos são aqueles que, esquecidos do povo,
impõem a sua vontade sobre ele. Assim os Reis esqueceram-se do povo e passaram
a pensar só neles mesmos. Se eles eram aqueles que fazem as leis, e se eles
eram aqueles que tinham a espada na mão, não havia ninguém que os punisse. Eles
cometiam suas maldades protegidos pela impunidade. Tendo poder para fazer as
leis, eles as fizeram só em seu benefício, leis que obrigavam o povo a pagar
impostos pesados. Imposto é um dinheiro que o povo tem de pagar ao governo para
administrar o país. Tudo estaria bem se o dinheiro dos impostos fosse usado
para o bem do povo. Mas não foi isso que fizeram. Usaram o dinheiro do povo
para si mesmos. Construíram palácios com jardins, gramados e piscinas, deram
banquetes, não só eles mas todos os membros da corte que assim se locupletaram.
Todos ficaram ricos. O povo ficou mais pobre, mais sofrido. Aprendam isso: as
pessoas mais cheias de boas intenções, quando têm o poder e o dinheiro na mão,
esquecem-se delas. Ficam deslumbradas com o poder e passam a pensar só nelas
mesmas. O poder e o dinheiro corrompem.
Foi
assim durante muitos séculos. Até que o povo perdeu as esperanças. Os reis, que
haviam sido objetos da sua admiração, tornaram-se objetos do seu desprezo. Seu
perfume se transformou em fedor. Não, os Reis jamais pensariam no bem do povo.
Aí o povo pensou: “Não fomos nós que escolhemos o Rei? Se ele está no trono é
só porque nós queremos! Ele não está no trono pela vontade dos deuses! Se fomos
nós os que o colocamos no trono, temos o direito de tirá-lo de lá”. O povo
então se enfureceu, saiu às ruas, pegou em armas, fez revoluções e tirou o Rei
do trono. Esse direito do povo, de tirar os Tiranos do poder, pela força, até
foi louvado pela mais humilde e a mais santa das mulheres, Maria, mãe de Jesus.
Cantando o amor de Deus ela disse que ele “derrubou dos seus tronos os
poderosos e exaltou os humildes.” ( Lucas 1:52).
Mas
esse direito de tirar os reis dos tronos transformou-se em crueldade. Na
Revolução Francesa o rei e a rainha foram guilhotinados. Na Rússia os
revolucionários fuzilaram toda a família real, inclusive as crianças.
Voltou-se
então ao estado original: não havia quem ditasse leis e as fizesse cumprir,
para a paz do povo. Havia o perigo de que se estabelecesse a condição primitiva
de “guerra de todos contra todos”. Há de haver quem faça as leis e garanta o
seu cumprimento. Mas o povo havia aprendido uma lição: poder por toda a vida,
como o que era dado aos reis, só produz tirania e corrupção. É muito perigoso
dar poder absoluto a uma pessoa só.
Por
que o jogo de futebol é possível? Jogadores, bola – tudo bem. Mas não basta. Há
de haver regras. E como se estabelecem regras? As pessoas interessadas se
ajuntam e fazem um “contrato”. “Contrato” é um documento que estabelece as
regras, com o acordo de todos. Esse contrato contém as regras do jogo que todos
devem obedecer. Todas as relações entre os seres humanos são reguladas por
contratos. O casamento é um contrato, a compra de uma casa é um contrato, a
matricula de um aluno numa escola se faz por meio de um contrato. Quando um
povo inteiro quer estabelecer as regras de sua convivência, esse contrato tem o
nome de “Constituição”. O Brasil tem uma “Constituição”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!
Abração
Dag Vulpi