sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O Buchada, o Borrado e a Magrela

Por Dag Vulpi

Contos do Soteco: memórias vivas dos anos 2000 — quando a bondade e a esperteza andavam de bicicleta lado a lado, e a fé às vezes vinha embrulhada em artimanha. Uma história verdadeira sobre empréstimos, confiança e as reviravoltas que a rua sabe dar.


O “buchada”, o borrado e a magrela. Quem apronta uma primeira vez, pode aprontar de novo…

Pois bem: seguindo minha proposta de trazer contos vividos no bairro Soteco — depois dos contos dos anos 70, hoje trago um dos primórdios dos anos 2000. É a estória do Niltinho Buchada e do seu mui amigo Borrado. Recupero mais um conto verídico que vivenciei lá pelos anos 2000 e que teve como protagonistas meu sogro — Seu Bino (in memória) — meu cunhado Nílton e o serelepe Borrado (deste último nunca soube — e talvez nunca saberei — o nome verdadeiro; por isso o chamarei Borrado, como era conhecido).

Borrado era menino levado, órfão de pai, criado pelo destino e pela mãe, que além dele criava mais quatro. Foi educado pela vida. Na escola de primeiro grau Cândido Marinho era mestre na arte de matar aulas e, às duras penas, concluiu o primeiro ano primário — aprendeu o básico e nada mais. Desenhava muito mal o nome e acabou abandonando os estudos para dedicar-se à arte do fazer nada.

Mas Borrado era moleque esperto e, apesar de quase nada escrever e mal ler, era bom de matemática: aprendeu perdendo. Nas divisões de bolinhas de gude, nas balas do dia de São Cosme e Damião, tornou-se ótimo na arte de dividir — pelo menos ótimo para ele. Aprendeu que, para dividir onze balas entre dois, bastava colocar uma no bolso; o restante dava cinco para cada um.

Tornou-se figurinha fácil no álbum da estória do Soteco. Conhecia todo mundo e tinha um bocado de amigos. Meu cunhado Nílton — conhecido na época por “Niltinho Buchada” — figurava nesse seleto grupo. A partir daqui chamarei Niltinho simplesmente de Buchada.

Quando Buchada era mais novo, era miúdo, magricela e dono de uma proeminente saliência peitoral, o famoso “peito de pombo”. Era o queridinho do pai, que, quando rapazote, lhe deu uma bicicleta de presente. Não era nova, mas era o objeto de desejo da molecada. Atrás daquele peito de pombo havia um enorme coração — e, ainda que os ossos lhe saltassem e o tempo lhe cobrisse de uma grossa camada de gordura, o coração do Buchada (que hoje atende por “Biquinho”) continuava enorme.

Já o Borrado padecia do mal do bicho carpinteiro: não sossegava. Apesar de nunca ter possuído uma bicicleta própria, nunca andava a pé — sempre havia um amigo que lhe emprestava. O campeão em empréstimos para o Borrado era o Buchada; vira e mexe o Borrado dava os rolês com a bike do Buchada. Buchada emprestou tantas vezes que muitos já não sabiam se a bicicleta pertencia a um ou a outro; lembro que houve ocasiões em que era o Buchada quem pedia a magrela emprestada ao Borrado.

E como era de se esperar, pela índole moldada pela vida, não deu outra: numa dessas o Borrado aprontou para cima do próprio amigo Buchada. Era manhã de domingo; Borrado, alegando motivo de vida ou morte, pediu mais uma vez a bicicleta, comprometendo-se a devolvê-la em no máximo dez minutos. Buchada emprestou sem preocupações, mas deu um recado: “não se esqueça, preciso dela amanhã logo cedo para ir trabalhar”. E assim o Borrado tomou a magrela emprestada pela última vez e seguiu rumo ao seu destino.

Passaram-se os dez minutos prometidos — e nada do Borrado. Trinta. Uma hora. Foi ficando tarde e mais tarde, e nada do Borrado com a magrela. Lá de casa eu podia ouvir os “conselhos” que o Seu Bino dava a Buchada: “Tá vendo, eu não te falei, seu bobo? Eu sabia! E agora, como vai trabalhar amanhã? Até que demorou para isso acontecer!”. Mas o Buchada, certo de que um imprevisto ocorrera, argumentou que outras vezes o Borrado atrasara e sempre devolvera a bicicleta. Ainda resmungando, Seu Bino foi deitar-se; Buchada deu mais um tempo na varanda, esperançoso de não ter de ir trabalhar a pé no dia seguinte.

A cada som característico de bicicletas passando na rua, o pobre Buchada enchia-se de esperanças: “agora é ele, tem que ser ele”, pensava. Qual nada — passaram mais de vinte bicicletas, mas o Borrado, que seria o bom, nada. Já era mais de dez horas da noite quando Buchada, enfim, perdeu as esperanças e foi deitar-se. Dormir, porém, que é bom, não conseguiu: não parava de pensar no que poderia ter acontecido com o amigo e, principalmente, com sua bicicleta.

Amanheceu e nada. Mais uma vez lá de casa ouvi Seu Bino: “hoje você vai trabalhar com a minha bicicleta, mas depois eu vou lá no morro — sei bem onde ele mora — e terei uma conversa com a mãe daquele traste”. Aquele dia Seu Bino não foi; preferiu esperar mais uns dias, talvez a situação se resolvesse sem levar mais desgosto à pobre lavadeira, mãe do Borrado. A semana passou e nada do Borrado. No sábado, Seu Bino não se conteve: subiu o morro até a casa da lavadeira.

“Bom dia, dona Maria, cadê o Borrado?” perguntou ele, tendo como resposta um olhar choroso e um: “Prenderam meu menino injustamente, Seu Bino. Ele saiu de bicicleta domingo pra ir à igreja e depois soube que ele foi preso porque andava com más companhias. Estou desesperada — o transferiram para aquele lugar onde ficam os malandros que mexem com coisa errada — mas ele é direito, nunca mexeu com coisa errada, e o senhor sabe disso.” Seu Bino já não cabia em si; adiantou o propósito da visita: “Dona Maria, o Borrado passou aqui domingo e pegou a bicicleta do Nílton emprestada e não apareceu mais. Quero saber quem vai pagar o prejuízo.” Dona Maria, vendo que Seu Bino não estava para brincadeiras, tentou acalmá-lo e comprometeu-se a pagar cem reais, em dez parcelas de dez reais — era esse o máximo mensal que podia pagar.

Estando tudo combinado, Seu Bino foi para casa. Lá chegando, logo disse: “Comigo é assim: ninguém me faz de besta, não. Mas tou vendo — se fosse o Nílton ela teria enrolado e ficaria o dito pelo não dito; e claro, seria ele que ficaria com o prejuízo. Mas comigo o buraco é mais embaixo.” Durante aquela semana foi esse o assunto do Seu Bino: a todos que encontrava, a quem ia encomendar gaiolas, contava tim-tim por tim-tim a história de como recuperaria o dinheiro da bicicleta que o Borrado teria “roubado” do seu filho.

Coincidentemente, eu e o Seu Bino estávamos em frente à sua casa quando, de repente, o Borrado chegou e nos cumprimentou cheio de cordialidades e bendizeres. Irreconhecível: roupa social, cabelo estilo “vaca-lambeu”, e debaixo do braço uma velha Bíblia. Antes que Seu Bino dissesse qualquer coisa, ele ajoelhou-se e começou a expor seu arrependimento por haver se misturado a más companhias; assegurou que a semana atrás das grades lhe mostrara o verdadeiro caminho — que agora era servo de Deus.

“Minha mãe contou a vergonha que passou ao ser cobrada pelo senhor, Seu Bino, e eu estou aqui pra resolver esse mal-entendido. Agora sou servo de Deus.”

E ali, diante dos meus perplexos olhos, o Borrado olhou para meu sogro: “Seu Bino, eu errei. Não tinha o direito de aprontar com o Buchada nem com o senhor. Se o senhor me der um voto de confiança e me ouvir, eu resolvo tudo agora. O que aconteceu foi o seguinte: naquele dia, quando eu voltava pra devolver a bicicleta, meu primo Cleitim pediu ela emprestada dizendo que voltaria em cinco minutinhos, mas acabou me sacaneando. Deixou a magrela como garantia lá na boca de fumo. Vim de lá agora; tentei convencer o chefe a devolver a bicicleta, mas só entrega se eu pagar os dez paus de fiança que meu primo ficou devendo. Aí eu pensei: eu vou, explico tudo pro senhor, e se o senhor me emprestar os dez reais da fiança, eu recupero a bike; minha mãe paga o senhor e todo mundo sai no lucro — afinal, ela pagaria cem reais; vai gastar só dez. O senhor teria que esperar dez meses pra receber tudo, mas se eu for lá e voltar em vinte minutos, resolve-se tudo. Fazer assim é melhor pra todo mundo. O que o senhor acha?”

“Tá bom, Borrado, vou te dar esse último voto de confiança — vai lá e busca aquela bendita bicicleta que fica tudo certo e sua mãe não vai ter que se sacrificar ainda mais”, falou Seu Bino.

E o Borrado respondeu: “Antes só mais um favor do senhor, e tenho certeza de que o senhor vai entender minha situação.”

“O que você tá tramando dessa vez, Borrado? Fala de uma vez.” perguntou meu sogro.

“Sabe o que é — eu tô com uma fome danada, e sei que o senhor sempre tem um cafezinho fresco e aquele pão doce guardado no armário. Tem como o senhor me arranjar um copo de café e um pão com manteiga?”

Meu sogro olhou para o alto e respondeu: “Tá certo, Borrado. Deixe-me ver se tenho o dinheiro aqui.” Olhei pro Borrado e ele deu um sorrisinho maroto. Em seguida, meu sogro sacou uma nota de dez reais e falou: “Toma, Borrado, vai lá e busca a bicicleta.” O Borrado pegou a nota e perguntou: “O senhor não tem duas notas de cinco não?” Recebeu um não como resposta e continuou ali parado; foi quando Seu Bino falou: “Vai logo, Borrado, vai buscar a bicicleta de uma vez.” Ele respondeu: “Ué, Seu Bino, e o copo de café e o pão com manteiga que o senhor prometeu? Se eu sair andando a pé, com a falta de costume que tenho, e com essa fome, não consigo subir o morro — eu vô é cair pela rua afora.” Seu Bino entrou e voltou com um copo descartável cheio de café e um pão doce. O Borrado guardou os dez reais no bolso da calça, pegou o café e o pão e disse: “Seu Bino, o senhor nunca vai se arrepender por ter me dado esta chance; a partir de hoje eu sou outra pessoa.”

Saiu rua afora comendo o pão e tomando o café enquanto prendia a Bíblia debaixo do sovaco.

Despedi-me do meu sogro e fui pra casa, de onde pude observar a angústia dele enquanto esperava. Passaram-se os vinte minutos combinados — e nada. Mais trinta. O meu sogro ainda aguardava na calçada. Então fui até o portão: “E aí, Seu Bino, nada dele ainda?”

— “Nada!” respondeu ele, já nitidamente muito chateado.

Assim prosseguiu até a tarde: entrava, tomava um café, acendia um cigarro e voltava para a calçada. Já anoitecia quando ouvi os gritos vindo da sua casa: “Eu vou matar aquele ladrão sem vergonha!”, enquanto o Buchada satirizava: “Ué, não é o senhor que é o cara, que não deixa por menos, que com o senhor o buraco é mais embaixo? Ta vendo — agora, além da minha bicicleta, o danado do Borrado levou mais dez mangos do senhor.

“Aquele desinfeliz ainda foi embora tomando o meu café e comendo meu pão doce — se eu pego eu mato!” esbravejou.

Quem trouxe a má notícia foi um amigo do meu sogro, também passarinheiro e vizinho da dona Maria, mãe do Borrado. Veio bater um papo com Seu Bino e, ao ouvir que ele havia feito um acordo com o Borrado, contou que viu o Borrado subindo na carroceria do caminhão que levava a mudança da dona Maria lavadeira — destino: interior de Minas.

E foi assim que o sacana do Borrado, travestido de evangélico e com uma Bíblia debaixo do sovaco, aplicou aquele que seria o seu último golpe por estas bandas dos sotequenses.


Reflexão:
As ruas do Soteco são professoras implacáveis: nelas aprendemos sobre generosidade, conta-se a história de quem dá e de quem tira proveito. O gesto de emprestar — tão simples, tão humano — pode ser lei de socorro ou armadilha. Fica a lição: a bondade é sempre válida, mesmo quando nos deixa no prejuízo; e a desonra de um só não apaga o valor da confiança que muitos ainda oferecem. E, se há nostalgia, que seja por aqueles corações grandes que continuam se abrindo — mesmo sabendo que, vez ou outra, alguma “magrela” não volta.

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