segunda-feira, 10 de julho de 2017

Liberdade de expressão e discurso do ódio: o conflito discursivo nas redes sociais


Por Walter Claudius Rothenburg e Tatiana Stroppa no 3º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade (https://goo.gl/t1Bjxz).

RESUMO

O presente artigo pretende discutir os limites que precisam ser traçados para enfrentar o discurso do ódio intensificado pela utilização da internet e das redes sociais que reduzem, por um lado, a interação social direta entre os atores que passam a ser produtores de mensagens e não apenas receptores, e por outro, potencializam o anonimato e permitem a publicação instantânea de conteúdos com uma velocidade gigantesca. De forma a cumprir esse objetivo, emprega-se uma pesquisa bibliográfica complementada com dados jurisprudenciais brasileiros. Conclui-se que, diante da ausência de textos normativos que fixem a responsabilização diante de mensagens de intolerância e discriminatórias, as restrições, que devem ser preservadas para casos extremos, ocorrerão pela ponderação dos interesses em jogo em conformidade com uma metódica de proporcionalidade, de modo a evitar decisões desproporcionais que interditem o debate público. Por fim, apresenta alguns parâmetros objetivos que devem ser seguidos pelo julgador que estiver diante de litígios envolvendo o conflito mencionado.

INTRODUÇÃO

A proteção da liberdade de expressão está diretamente associada à garantia da dignidade da pessoa humana e da democracia. Ocorre que as relações sociais, o ambiente democrático e o contexto multicultural impõem contornos ao direito de expressão, que – tal como os fundamentais em especial – conhece restrições.

A presente abordagem ocupa-se da possibilidade de limitação à liberdade de expressão em razão da exteriorização de conteúdos discriminatórios ou discursos do ódio. Sob o manto enganoso da liberdade, a expressão discriminatória vulnera objetivos de nossa república, de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, compromissada com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Constituição, art. 3º, I e IV).

O exercício abusivo da liberdade de expressão é potencializado com a generalização do acesso à internet que permite às pessoas assumir uma posição ativa na relação comunicacional ao saírem da posição de receptores da informação e passarem à posição de criadoras de conteúdos, os quais podem ser divulgados de maneira instantânea, sobretudo nas mídias sociais como Facebook, Twitter e Instagram, com acentuada velocidade de propagação e uma aparente possibilidade de anonimato.

Com isso, os discursos discriminatórios (hate speech) ganharam sua versão cibernética e, nesse contexto, a reflexão prática a respeito dos limites do direito de expressão em razão da veiculação de mensagens altamente preconceituosas que atingem as pessoas e grupos vulneráveis também precisa ser feita tendo como base as redes sociais.

O trabalho está dividido em dois tópicos centrais, a saber: na primeira parte são analisados o direito de expressão e a caracterização do discurso do ódio. No segundo item são trazidos parâmetros que devem norteiam as restrições à liberdade de expressão diante de discursos discriminatórios veiculados nos meios de comunicação, principalmente nas redes sociais[1].

[1] Conforme Manuel Castells as redes podem ser definidas como “um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta. Concretamente, o que um nó é depende do tipo de redes concretas de que falamos” [...] Redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação [...]. (cf. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 566).

1 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O DISCURSO DO ÓDIO

A liberdade de expressão é assegurada em inúmeros tratados internacionais, entre eles, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948 – art. 19), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA, 1969 – art. 13) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966 – art. 19), dos quais o Brasil é signatário.

Na Constituição brasileira, o direito de expressão consta de diversos dispositivos, tanto
no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º, IV, V e IX), quanto no capítulo destinado à comunicação social em que houve o reconhecimento expresso de que “a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” (art. 220). Assentou-se ainda que “[é] vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (art. 220, § 2º). À perspectiva subjetiva do direito fundamental acresceu-se uma perspectiva objetiva, à medida que a afirmação do direito subjetivo conferido às pessoas para se manifestarem e interagir com os outros foram agregados princípios e regras que devem nortear o regime jurídico dos meios de comunicação a fim de que os cidadãos possam ser suficiente e adequadamente informados.

O reconhecimento constitucional do direito de expressão compreende a possibilidade de exteriorização de crenças, convicções, ideias, ideologias, opiniões, sentimentos e emoções, pelas mais diversificadas plataformas informativas hoje existentes. A proteção conferida pelo direito de expressão vai além do ato de poder pensar e alcança a possibilidade de divulgar o que se pensa, com o mais variado conteúdo, visto que as mensagens não podem ser restritas em razão das motivações políticas, econômicas ou filosóficas que lhes sejam subjacentes, ou em função de sua suposta banalidade ou relevância.

Por tudo isso, conforme defendem Canotilho, Machado e Gaio Júnior [2] , o âmbito de proteção da liberdade de expressão é alargado. Existe, assim, uma inclinação argumentativa em favor do direito de expressão recaindo o ônus da prova sobre aquele que alega o prejuízo pela divulgação da mensagem.

[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes; GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Biografia não autorizada versus liberdade de expressão. Curitiba: Juruá, 2014, p. 29.

A própria Constituição, ao tratar generosamente do direito de expressão, explicitou que não haverá restrições, mas que haverá de ser “observado o disposto nesta Constituição”, ou seja, só os demais direitos fundamentais e bens constitucionais servem como restrição.

Ocorre que são muitas as hipóteses em que a manifestação do pensamento entra em conflito com outros direitos e valores constitucionalmente protegidos. Dentre os diversos conflitos situam-se as manifestações que expressam mensagens violentas, intolerantes e eivadas de conteúdo preconceituoso.

A questão que se coloca com particular relevo consiste em saber se os conteúdos envolvendo o discurso do ódio (hate speech) também estão protegidos pelo âmbito normativo da liberdade de expressão. E mais: como controlar a discriminação preconceituosa num ambiente democrático, em que as pessoas e grupos devem ter o direito de manifestar-se, criticar e discordar?

O primeiro ponto consiste em definir o que é o discurso do ódio?

Segundo Rosane Leal da Silva et al, o “discurso de ódio” caracteriza-se pelo conteúdo segregacionista, fundado na dicotomia da superioridade do emissor e na inferioridade do atingido (a discriminação), e pela externalidade, ou seja, existirá apenas quando for dado a conhecer a outrem que não o próprio emissor[3].

[3] SILVA, Rosane Leal da et al . Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira. Rev. direito GV, São Paulo, v. 7, n. 2, Dec. 2011. p.445-468.

 Salientando a discriminação preconceituosa Winfried Brugger (2007, p. 118) afirma que: “[...]o discurso do ódio refere-se a palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”[4].

[4] BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Trad. Maria Angela Jardim de Santa Cruz Oliveira. Revista de Direito Público, v. 15 n. 117, jan./mar. 2007.

Em outras palavras, o discurso do ódio consiste na divulgação de mensagens que difundem e estimulam o ódio racial, a xenofobia, a homofobia e outras formas de ódio baseadas na intolerância e que confrontam os limites éticos de convivência com o objetivo de justificar a privação de direitos.

A Constituição brasileira dispõe expressamente que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI) e, logo em seguida, que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (art. 5º, XLII). Já, o artigo 13, § 7º, da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, determina que “a lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.

A Lei 12.288/2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, estabelece, em seu artigo 26, que “o poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de: I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas”.

No mesmo passo a Convenção Internacional pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (2001) insta os Estados a incentivarem os meios de comunicação a evitarem os estereótipos baseados em racismo, discriminação racial, xenofobia e a intolerância correlata. E a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) afirma que os Estados-partes concordam em “estimular os meios de comunicação a elaborar diretrizes adequadas de difusão que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e a realçar o respeito à dignidade da mulher”.

O Artigo 20 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos determina que: “1. Será proibido por lei qualquer propaganda em favor de guerra. 2. Será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, radical, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência.”

Baseado nesse dispositivo, a Artigo 19, em estudo que envolveu um grupo de oficiais da ONU e de outras organizações, reunidos em encontros realizados em Londres nos dias 11 de dezembro de 2008 e 23-24 de fevereiro de 2009, elaborou os denominados “Princípios de Camden sobre a Liberdade de Expressão e Igualdade”, sendo que o 12º princípio é destinado a oferecer uma proposta para que os Estados possam elaborar um texto legal acerca do discurso do ódio:

Princípio 12: Incitação ao ódio. 12.1. Todos os Estados devem adotar legislação que proíba qualquer promoção de ódio religioso, racial ou nacional que constitua uma incitação à discriminação, hostilidade ou violência (discurso do ódio). Sistemas jurídicos nacionais devem deixar claro, seja de forma explícita ou por meio de interpretação impositiva, que: i. Os termos ‘ódio’ e ‘hostilidade’ se referem a emoções intensas e irracionais de opróbrio, animosidade e aversão ao grupo visado. ii. O termo ‘promoção’ deve ser entendido como a existência de intenção de promover publicamente o ódio ao grupo visado. iii. O termo ‘incitação’ se refere a declarações sobre grupos religiosos, raciais ou nacionais que criam risco iminente de discriminação, hostilidade ou violência a pessoas pertencentes a esses grupos. iv. A promoção, por parte de comunidades diferentes, de um sentido positivo de identidade de grupo não constitui discurso do ódio [5].

[5] Artigo 19. Princípios de Camden sobre a Liberdade de Expressão e Igualdade. Disponível em: < http://www.refworld.org/cgi-in/texis/vtx/rwmain/opendocpdf.pdf?reldoc=y&docid=4b5827292>. Acesso em: 02 mar.2015.

Esses princípios são importantes porque a divergência de opiniões é inevitável em sociedades pluralistas. Junte-se isso ao fato de que no Brasil o sistema de informação foi construído de forma totalmente assimétrica entre os sistemas privado, público e estatal e inúmeros grupos ficaram alijados da esfera comunicativa e eles agora, com as redes sociais, conseguem um canal para escoarem os seus conteúdos contribuindo para aumentar o dissenso.

Ainda, é preciso superar a percepção de que a liberdade de expressão é apenas uma liberdade negativa, ou seja, que existe liberdade apenas quando não há uma interferência externa, identificada, sobretudo, com atuação do Estado, que impeça o sujeito de fazer o que quiser. Há que compreender que o Estado, ao contrário de ser inimigo da liberdade de expressão, pode exercer um papel positivo[6] para aqueles grupos que, sem a garantia do Estado, não conseguem se expressar no espaço público porque há um “efeito silenciador”[7] promovido pelo discurso dos grupos dominantes.

[6] STROPPA, Tatiana. As dimensões constitucionais do direito de informação e o exercício da liberdade de informação jornalística. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 138-142.
[7] FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 30.

Se o consenso é praticamente impossível de ser atingido em sociedades multiculturais, a coexistência pacífica é um valor que deve nortear a vida cotidiana. Se o direito de expressão é restringível diante de discursos discriminatórios, importa muito traçar parâmetros que norteiem o aplicador do Direito.

2. PARÂMETROS PARA AS RESTRIÇÕES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO DIANTE DE DISCURSOS DISCRIMINATÓRIOS

Concordamos que não existe uma hierarquia predefinida de direitos fundamentais, nenhum deles é absoluto e todos convivem em concordância prática, ou seja, nas situações de tensão e conflito concreto, os direitos fundamentais em jogo devem ser manejados com o melhor rendimento em relação ao menor sacrifício possível, numa lógica de proporcionalidade [8].

[8] ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais. São Paulo: Método, 2014. P. 28-29; ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípio da proporcionalidade. In: OLIVEIRA Neto, Olavo de; LOPES, Maria Elizabeth de Castro (Org.). Princípios processuais civis na Constituição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 283-319.

Como já defendido, não há condicionamento do direito de expressão a propósitos ou funções outros que a realização do sujeito de direito e a democracia, ou melhor, os objetivos fundamentais estabelecidos na própria Constituição (art. 3º). Portanto, o direito de expressão não goza de uma preferência incondicionada, sendo suscetível de restrição em razão da concorrência negativa de outros direitos fundamentais e bens constitucionais, como ocorre quando há divulgação de discursos discriminatórios. O intérprete que se vê desafiado por um problema que afeta a liberdade de expressão não consegue poupar esforços na aplicação concreta do direito, pois não existe autorização jurídica para afastar o trabalho delicado de concordância prática dos direitos envolvidos.

Diante da necessidade de fixação de parâmetros para enquadrar um discurso como sendo do ódio, a Artigo 19, tendo como norte os “Princípios de Camden sobre a Liberdade de Expressão e Igualdade” supracitados, recomenda a verificação dos seguintes critérios:
I. Severidade: a ofensa deve ser “a mais severa e profunda forma de opróbrio”.
II. Intenção: deve haver a intenção de incitar o ódio.
III. Conteúdo ou forma do discurso: devem ser consideradas a forma, estilo e natureza dos argumentos empregados.
IV. Extensão do discurso: o discurso deve ser dirigido ao público em geral ou à um número de indivíduos em um espaço público.
V. Probabilidade de ocorrência de dano: o crime de incitação não necessita que o dano ocorra de fato, entretanto é necessária a averiguação de algum nível de risco de que algum dano resulte de tal incitação.
VI. Iminência: o tempo entre o discurso e a ação (discriminação, hostilidade ou violência) não pode ser demasiado longo de forma que não seja razoável imputar ao emissor do discurso a responsabilidade pelo eventual resultado.
VII. Contexto: o contexto em que é proferido o discurso é de suma importância para verificar se as declarações tem potencial de incitar ódio e gerar alguma ação [9].

[9] Disponível em:< http://artigo19.org/centro/files/discurso_odio.pdf>. Acesso em: 02 marc. 2015. 10 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais. Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 261 e 277. 11 O governo federal, por meio da Portaria Interministerial nº 2, de 20 de novembro de 2014, institui Grupo de Trabalho, composto por membros das secretarias de Direitos Humanos, de Políticas para as Mulheres e de Igualdade Racial, além de OAB e Procuradoria Geral da República, e com parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo, com a finalidade de adotar medidas visando receber denúncias de crimes de discriminação nas redes sociais on line. (OBSERVATÓRIO DA PRIVACIDADE E VIGILÂNCIA. Monitoramento em massa para combater crimes de ódio gera polêmica, 2015).

No fundamento desses critérios está a premissa de que as expressões de ódio não contribuem para o debate e precisam ser reprimidas, mas que isso não pode acarretar a supressão de discursos moralmente reprováveis ou dissonantes porque tal comportamento comprometeria o cerne da liberdade de expressão. Portanto, não é legítima a restrição a manifestações pelo simples fato de rejeitarem opiniões majoritárias ou divergirem dos posicionamentos oficiais adotados pelo governo.

Relevante salientar que o estabelecimento de parâmetros para que haja restrições deve estar muito bem justificado, haja vista uma evidência histórica: as limitações à liberdade de expressão revelam-se muito mais nocivas para a humanidade do que aptas à criação de uma sociedade mais justa e solidária.

Quanto às vítimas, aponta Daniel Sarmento10 que importa considerar “[o] grau de dor psíquica, angústia, medo ou vergonha que as manifestações de ódio, intolerância e desprezo motivadas por preconceito possam provocar nos seus alvos”.

No Brasil, a Lei nº 7.716/1989 (com as alterações promovidas pela Lei nº 12.735/2012 e pela Lei nº 12.288/2010) prevê como crime a prática de discriminação por critério de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, permitindo que o juiz determine a cessação das transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio, bem como a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores11 (art. 20, § 3º, II e III).

Em relação à forma de divulgação, a Lei nº 7.716 determina aumento de pena a quem pratica, induz ou incita tal discriminação ou preconceito utilizando-se dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza (art. 20, § 2º).

Nas diversas manifestações de pensamento, é relevante se a mensagem é particularizada a um indivíduo ou se é uma opinião generalizada em relação a todo um grupo. A discriminação contra um grupo em geral não deve ficar desprotegida, afinal – como assevera Kwame Anthony Appiah- “a honra está associada intimamente e de muitas maneiras àqueles aspectos da identidade que derivam do pertencimento a grupos sociais” [12].

[12] APPIAH, Kwame Anthony. O código de honra: como ocorrem as revoluções morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 74-75.

Cremos que quando as vítimas do discurso do ódio forem pessoas ou grupos vulneráveis, ignorados ou oprimidos pelos grupos hegemônicos as restrições ao direito de expressão de conteúdo discriminatório são mais aceitáveis, seja porque essa mensagem tende a reproduzir e talvez recrudescer a discriminação, seja porque provavelmente não haverá condições adequadas de contrapor ideias, opiniões e sentimentos compartilhados pela maioria ou pelos grupos hegemônicos, pois o acesso às novas tecnologias passa pela superação das barreiras socioeconômicas.

Daniel Sarmento propõe com acuidade “a adoção do princípio de que o Estado deve ser, a priori, mais tolerante diante dos excessos expressivos cometidos por membros de grupos estigmatizados contra a maioria, do que em relação aos perpetrados por integrantes da maioria contra estes grupos”[13]. Mais além, Jónatas E. M. Machado (2002, p. 189) aponta a necessidade de o Estado interferir positivamente para amplificar a voz dos grupos que estão excluídos do plano comunicativo [14].

[13] SARMENTO, Daniel. Livres e iguais. Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 249.
[14] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002. p. 189.

A provável intenção de quem se expressa, conquanto muitas vezes de difícil percepção ou comprovação, é outro aspecto relevante [15]. Assim, uma mensagem cujo objetivo é estimular deliberadamente a discriminação e, sobretudo, incitar a violência, enseja limites mais estreitos à liberdade de expressão.

[15] Neste sentido: RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 102-112.

Quanto ao teor e à proposta da mensagem, se o que existe é principalmente uma opinião (juízo de valor), mais forte deve ser a proteção ao direito de expressão. A opinião, que é prevalentemente subjetiva, deve ser considerada como socialmente menos idônea a atingir a percepção social que se tem da vítima do preconceito, pois o público em geral sabe ou pode saber que se trata apenas de uma opinião, por mais enfática e distorcida que seja. Por outro lado, se a mensagem é veiculada como notícia o seu impacto na percepção social é mais incisivo e pode justificar a restrição.

Considerando justamente o caráter noticioso da página jornalística “Portal Apuí”, mantida na rede social Facebook, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública em face do administrador da página e conseguiu decisão liminar determinando a remoção da veiculação de publicações de cunho ofensivo e discriminatório direcionada aos indígenas da etnia Kagwahiva Tenharim [16].

[16] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Decisão interlocutória. Ação Civil Pública nº 0002206-34.2014.4.01.3200. Juiz federal substituto Érico Rodrigo Freitas Pinheiro. DJ 14/02/2014.

Já quanto a fatos relevantes efetivamente acontecidos, inclusive quanto à negação de eventos históricos, a proteção do direito de expressão é mais fraca. Sobretudo quando o evento histórico que é negado está vinculado à identidade da pessoa ou grupo ou representa uma forma particularmente intensa de discriminação, sendo esse o caso do holocausto judeu na Segunda Grande Guerra do século XX. A proibição de manifestações nazistas fundamenta-se, em parte, na evocação à violência praticada por esse regime totalitário e na intenção fortemente discriminatória que anima tal ideologia. A sociedade em geral deve desaprovar negações desse jaez, não apenas por serem manifestações de discriminações qualificadas, mas porque o combate a elas representa um marco na luta contra a violação dos direitos fundamentais e da democracia.

A famosa decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro no caso Elwanger (autor e editor de publicação racista que negava o holocausto judeu e foi punido)[17] justifica-se não apenas porque discute a realidade de um fato histórico, mas porque representa uma insuportável negação com propósito fortemente discriminatório.

[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82.424/RS, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJU de 19/03/2004.

Manifestações artísticas são uma forma de expressão qualificada, onde a liberdade é mais extensa e intensa. O fundamento está, provavelmente, em que as manifestações artísticas traduzem expressões fortemente emocionais e também nas diversas possibilidades de interpretação que a arte enseja. Ora, é preciso reconhecer às manifestações artísticas uma especial tolerância consolidada em resultados dissidentes, plurais e que repudiam a hegemonia de uma cultura única.

Se assim não for observaremos decisões baseadas num juízo de definição do “politicamente correto” [18] que afetam negativamente as manifestações culturais e a liberdade de expressão.

[18] Observe-se, por exemplo, a situação que envolveu a escola de samba Unidos do Viradouro, em 2008, quando apresentou o samba-enredo “É de arrepiar”. Referida escola foi proibida, por decisão judicial, de apresentar um carro alegórico com esculturas representando cadáveres nus empilhados e sapatos e trazendo um dos membros da escola vestido de Adolf Hitler sobre os corpos. Revelando, a nosso ver, uma restrição indesejada no âmbito da liberdade de expressão. (ARTIGO19. Panorama sobre discurso de ódio no Brasil, n.d.). No mesmo sentido, conferir: Mandado de Segurança nº 30952, STF, min. rel. Luiz Fux, impetrado pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) contrário à adoção do livro infantil “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, sob o argumento de que o livro faz referências ao negro com “estereótipos fortemente carregados de elementos racistas”. O Min. Luiz Fux, em 19 de dezembro de 2014, reconheceu a incompetência do STF e negou seguimento ao referido Mandado de Segurança.

Músicas inserem-se nesse contexto de maior liberdade, pois são exteriorizações artísticas e de crítica. Apesar disso, as músicas executadas pelas bandas White Power vem sendo questionadas porque defendem a supremacia racial branca, a secessão e a conspiração judaica, conforme esclarece Tailine Fátiva Hijaz [19]. Assim, por exemplo, ao procurar a música Peste Negra, da banda paulista Brigada NS, que estava no youtube [20], observa-se que ela foi removida por violar “a política do Youtube que proíbe incitação ao ódio”.

[19] HIJAZ, Tailine Fátima. O discurso do ódio racial como limitação à liberdade de expressão no Brasil: o caso das bandas White Power. Revista Brasileira de Direito, n. 10, 2014, p. 15-32.
[20] Disponível em: . Acesso em: 17 marc. 2015.

O direito de expressão religiosa, filosófica e ideológica, consagrado claramente na Constituição brasileira (art. 5º, VI e VIII), é outro domínio em que os limites são estritos. Compreende-se que, no âmbito confessional, as mensagens podem ser sectárias e opostas a outras concepções, visto que, usualmente, radicam na aceitação de verdades transcendentes. Por isso, expressões discriminatórias são toleradas em maior grau no campo das religiões. Contudo, também elas não estão de antemão redimidas do “pecado” jurídico do abuso e podem ser restringidas, especialmente aquelas que visem deliberada e gratuitamente “demonizar” outras confissões.

Neste sentido, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública contra o Google, tendo como base uma representação feita pela Associação Nacional de Mídia Afro, solicitando a retirada de vídeos hospedados no YouTube com mensagens de intolerância contra religiões afro-brasileiras. Em decisão de 28/08/2014, a Sétima Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região deu provimento ao agravo de instrumento para determinar a imediata retirada dos vídeos listados pelo MPF da rede mundial de computadores, reconhecendo que “a cada dia em que os vídeos permanecem disponíveis no site youtube perpetuam-se as mensagens de ódio, discriminação, intolerância e violência neles contidas, que continuam sendo disseminadas a um número indeterminado de pessoas, tendo em vista o acesso irrestrito a tal conteúdo” [21].

21 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Acórdão de decisão que deu provimento parcial ao Agravo de Instrumento. Agravo de Instrumento 201400001010430. Rel. Reis Friede. DJ: 28/08/2014.

Registre-se ainda que apesar de o Marco Civil da Internet no Brasil (Lei 12.965/2014) não ter tratado da responsabilidade dos provedores de aplicação no caso de divulgação, por terceiros, de mensagens preconceituosas e discriminatórias a análise do Art. 19 indica que foi dada à liberdade de expressão uma preferência em relação a outros direitos que costumeiramente com ela colidem. Ainda, fixa que as restrições à liberdade de expressão e a responsabilização dos provedores de aplicação serão determinadas por decisão judicial.

Em suma, os episódios narrados revelam o conflito entre o direito de expressão e outros direitos fundamentais (ligados à imagem, à honra, ao sentimento religioso e de igualdade racial e sexual) de pessoas e grupos vulneráveis, à medida que a liberdade de expressão produz mensagens de discriminação e de opressão. Como parâmetro para a solução dos problemas jurídicos, a convicção de que o combate às mensagens preconceituosas e discriminatórias deve passar em primeiro lugar pela construção de políticas públicas que assegurem a todos os grupos, principalmente aqueles que padecem de uma discriminação histórica, o acesso aos meios de comunicação para fazerem ecoar as suas ideias e convicções na esfera de discussão pública; por outro lado, permitir restrições mais intensas para as expressões que tenham forte conteúdo preconceituoso e que incitem à violência em face de grupos e indivíduos em prol da proteção da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

CONCLUSÃO

O âmbito de proteção da liberdade de expressão não abarca manifestações voltadas a atingir a dignidade da pessoa humana e à construção de um ambiente de tolerância conforme os objetivos da República Brasileira positivados no Art. 3º da CF/88.

Nenhum espaço, seja o das manifestações artísticas, seja o da ironia, seja o da religião (ou convicção filosófica ou ideológica), seja o da política, é absolutamente protegido de limites e precisa reconhecer restrições necessárias para respeitar outros direitos. Todavia, haverá um peso em favor da liberdade de expressão para que se autorize a restrição e a discriminação deverá ocorrer de um modo muito forte e relevante sendo mais largos os limites, quanto mais genérica e imprecisa for a mensagem.

Diversos, como mencionado acima, devem ser os aspectos ponderados para definir os limites da liberdade de expressão em face de um discurso de ódio. A começar, obviamente, pela severidade da ofensa e pelo grau de generalidade das imputações, mas a levar em conta também o autor (por exemplo, se ele fala a partir de uma posição de destaque social, como um agente político, servidor público ou artista), o contexto (por exemplo, uma entrevista, uma palestra ou uma música), a situação da vítima (por exemplo, sua vulnerabilidade social ou se ela é afetada individualmente ou enquanto membro de determinado grupo), a forma de divulgação (por exemplo, uma charge, uma opinião ou uma notícia inseridas em um blog ou rede social) e a probabilidade de que o discurso possa, de fato, ensejar o ódio e suscitar algum nível de risco de que algum dano resulte de tal incitação.

A valoração e a proscrição de mensagens sob a argumentação de que seja discurso de ódio não pode ser banalizada e alargada sob o jugo “do politicamente correto” e, assim, somente as manifestações explícitas e que tenham aptidão para ocasionar atitudes e práticas discriminatórias estão fora do âmbito de proteção do direito de expressão. A interdição do debate nestes casos, na prática, precisa vir acompanhada da construção de políticas voltadas à inclusão das vozes historicamente excluídas e soterradas na esfera pública de discussão para que consigam sair da resignação, descortinar e enfrentar o desrespeito e o preconceito.

REFERÊNCIAS APPIAH, Kwame Anthony. O código de honra: como ocorrem as revoluções morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ARTIGO 19. Princípios de Camden sobre Liberdade de Expressão e Igualdade. Londres: Artigo 19, 2009.

Disponível em: https://goo.gl/t1Bjxz


Um comentário:

  1. nao so nas redes sociais, quando vc ve os senadores Paulo paim e Cristovam buarque quase saindo no tapa no congresso !!!

    ResponderExcluir

Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!

Abração

Dag Vulpi

Sobre o Blog

Este é um blog de ideias e notícias. Mas também de literatura, música, humor, boas histórias, bons personagens, boa comida e alguma memória. Este e um canal democrático e apartidário. Não se fundamenta em viés políticos, sejam direcionados para a Esquerda, Centro ou Direita.

Os conteúdos dos textos aqui publicados são de responsabilidade de seus autores, e nem sempre traduzem com fidelidade a forma como o autor do blog interpreta aquele tema.

Dag Vulpi

Seguir No Facebook