Por Ricardo
Lima
Acredito
que uma das chaves para compreender o Brasil atual é retomar sua história
politica e social, percebendo quais estruturas e práticas do passado ainda
permanecem influentes e entram em choque com práticas modernas e progressistas.
Em
outras palavras, lançar uma luz sobre a fricção social e politica entre
aspectos atrasados e avançados da sociedade em mudança pode ser uma boa via
para interpretação do Brasil.
Na
esteira de estudar como processos arcaicos se mantém com formas modernas, José
Maurício Domingues, no texto A Dialética da Modernização Conservadora e a
Nova História do Brasil (2004), concentra-se em compreender teoricamente
como se dá o fenômeno da modernização conservadora no Brasil. Seu ponto de
partida é o dialogo com Barrington Moore Jr., para quem a entrada das
sociedades na era moderna poderia ocorrer de três maneiras, pela via
democrática, pela via socialista revolucionária ou pela via autoritária.
Pode-se
compreender a modernização conservadora como, primeiramente, uma recusa da mudança
das relações de trabalho rural, com os grandes proprietários mantendo o
controle da força de trabalho. As elites agrárias forçariam a insipiente
burguesia avessa aos processos de democratização a modernizar-se. Isso
acarretaria na modernização sob a liderança e interesse das elites agrárias,
mantendo o processo e as subjetividades coletivas sob o controle de um bloco
autoritário.
No
Brasil, os grandes agentes da modernização foram os grandes proprietários. A
modernidade foi instalada entre nós paulatinamente sem que um dos seus
principais aspectos, a liberdade, ganhasse muito espaço. Em todos os períodos
de modernização nacional, que se deram por um viés conservador, era fundamental
para a elite dirigente controlar os processos de desencaixe que transformariam
os planos individuais e coletivos. Apesar do controle exercido pelas elites dos
processos de modernização, houve consequências inesperadas no tecido social,
“uma dialética virtuosa forçou seu caminho no curso da modernização
conservadora” (DOMINGUES, 2004 p. 189). Os processos de desencaixe
desencadearam mudanças radicais que escaparam do controle do bloco dirigente,
ensejando cada vez mais liberdade em indivíduos e coletividades, mudando por
completo as subjetividades coletivas.
O
sucesso do programa de modernização pelo alto minou suas próprias bases. As
duas ditaduras brasileiras do século XX sucumbiram, pois não conseguiram compreender
e nem lidar com esse paradoxo das consequências, principalmente durante a
segunda delas, onde o processo levou ao esgotamento do modelo que tomou o poder
em 1964. A modernização foi tão longe em suas consequências que se tornou
impossível controlar as subjetividades desencaixadas que se erigiram com o
processo, nem mesmo lidar com as novas demandas que surgiam. Sem embargo, a
civilização brasileira ficou tão complexa que o arranjo
modernizante/conservador não conseguia mais dar conta. O resultado foi a
democratização e a Constituição de 1988.
Domingues
conclui que, apesar das desigualdades, o grau de liberdade e pluralidade das
formas de vida no Brasil aumentou exponencialmente. Entretanto, a sociedade
brasileira teria mais dificuldade de criar instituições que engendrassem a
solidariedade social, resultando numa poliarquia distorcida, num individualismo
predatório, numa grande fragmentação social e em baixa consciência de cidadania
tanto individuais quanto coletivas.
A
sociedade nacional congregou em seu âmago, mesmo em períodos de democracia
formal, de caracteres modernos com traços arcaicos, ambos convivem tanto em
complementação quanto em oposição. Nossa revolução burguesa sempre ocorreu
tutelada por grupos de cima e sem a participação do povo. Assim, nossa
democracia nunca integrou a totalidade da população, subsistindo padrões de
exclusão ou em processos de extermínio cultural e étnico que permanecem por
longos períodos: pobres, negros, indígenas e outras minorias. O que explicaria
tal cenário seria a tendência de nossa sociedade a conciliação, um dos traços
genéticos da nossa civilização, conforme relata Paulo Mercadante em A Consciência
Conservadora no Brasil(1980). Isso explicaria porque nossa modernização sempre
equilibre os antagonismos, isto é, sempre adote traços sociais avançados tendo
que fazer concessões a praticas e grupos que representem o passado.
Nosso
último período de democratização, a constituição de 1988 e a Nova República,
apesar da grande participação e engajamento social, foi tutelada por grupos
dirigentes da ditadura militar, resultado numa vitória política do chamado
“centrão”, hoje personificado no PMDB e em outros partidos fisiológicos. Uma
das consequências disso foi a gestação de uma poliarquia incapaz de completar o
ciclo de solidariedade social, de liberdade e de igualdade. Mas isso não
impediu que um maior adensamento das relações e pluralidade de modos de vida
surgisse, acompanhando as mudanças que ocorriam a nível global. A vitória de
Lula em 2002, seguida de um período de doze anos prosperidade econômica,
amparados numa politica social democrata e numa grande conciliação entre as
classes atestam o adensamento de nossa civilização que não poderiam mais ser
liderada pelo velho esquema conservador que liderou o Brasil de 1929 a 1945 e
1964 a 1984.
O
próprio esgotamento dessa política conciliatória é atestada pela fragilidade de
uma economia baseada na exportação de commodities; pela publicização de
esquemas de corrupção, investigados pelo Ministério Público e pela Polícia
Federal, instituições que ganharam força pelo próprio governo Lula; uma mudança
maior na subjetividade coletiva, que passou a cobrar mais transparência dos
seus governantes e melhoria nos serviços públicos, como atestado nas Jornadas
de Junho de 2013; o fim melancólico e traumático de mais de uma década de
domínio do PT no executivo federal e a ascensão de um bloco governista
basicamente liberal conservador, tendo como líder o PMDB, partido que nunca
saiu efetivamente do poder, sendo ao longo dos anos o fiel da balança e o fator
conciliatório de um ineficaz presidencialismo de coalização; a judicialização
da politica e o fortalecimento do mandarinato jurídico tornam claros que a
politica da grande conciliação de Lula chegou ao fim, bem como a capacidade
reguladora da Nova República. É um paradoxo das consequências que tais
fenômenos estejam tão intimamente ligados e que ele tenha ocorrido não durante
um governo abertamente conservador, mas num governo liderado por um partido
que, pela sua história, tinha compromisso maior com os setores mais
desfavorecidos da população.
Me
aproximo do diagnostico de proposto por Domingues e por Florestan
Fernandes, este desenvolvido no artigo de Tatiana Gomes Martins: Mudança
Social e desenvolvimento no pensamento de Florestan Fernandes nos anos 50 (2003).
Nesse contexto de extrema desigualdade, heteronomia e fragmentação social,
precisamos democratizar a democracia, nos termos do segundo, através de um
processo de mudança provocada por mecanismos de planejamento democrático, que
corrijam os descompassos históricos da nossa sociedade e levem os benefícios do
desenvolvimento para toda a sociedade, especialmente para setores
historicamente marginalizados; ou nos dizeres do primeiro, temos que criar
instituições que de fato propiciem a solidariedade social, levando os valores
de liberdade, igualdade e fraternidade as últimas consequências. Também
precisamos pensar no valor da pluralidade e da tolerância a diferentes modos de
vida como fundamentais para uma democracia plena que abarque minorias como
negros, LGBT`s, imigrantes, indígenas e quilombolas e outros povos tradicionais.
Uma
saída para isso seria a progressiva instituição de formas democráticas baseadas
na democracia direta, isto é, na participação e na deliberação, cujo foco
seriam as demandas do dia a dia e os problemas do cotidiano, mais próximos das
condições dos cidadãos; e dotando de mais poder as experiências já existentes.
Isso resultaria na fecundação de um espírito democrático, critico e ativo na
população aproximando o poder do povo e devolvendo o poder à política. Assim,
as experiências de participação, se bem dosadas e iniciadas ainda na escola e
implementada intensiva e extensivamente nos bairros, podem render bons frutos a
democracia brasileira, funcionando como uma escola de formação de líderes
políticos, transformando a subjetividade coletiva e aumentando o coeficiente de
cidadania.
Trata-se
do desenvolvimento da virtude democrática e dos canais de expressão cidadã,
valores que remontam à Grécia Antiga.
A
única forma de conter essa anomia histórica é um movimento duplo e dialético
entre sociedade e estado, reformando nossas instituições e incorporando uma
maior participação direta dos cidadãos.
*Este
artigo foi adaptado de um artigo acadêmico chamado “Democracia,
representação e participação no Brasil: antigos e novos dilemas de uma
sociedade em mudança” escrito para a disciplina Teorias Sociais do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP/ARARAQUARA.
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