Por Rafael Araújo
O termo
"idiota" era usado para designar aqueles indivíduos na Grécia antiga
que preenchiam os requisitos para o exercício da cidadania, mas que não se
ocupavam da coisa pública, que se interessavam apenas por seus projetos
pessoais. Trata-se do cidadão privado, aquele que se dedica ao desenvolvimento
de uma habilidade pessoal e deixa de lado a cidade, deixa de ocupar-se com a
pólis. O termo acabou, como muito acontece, ganhando outras conotações. Mas se
mantivermos em mente seu sentido atual e o significado de origem, perceberemos
quão útil e apropriado é chamar de idiota aquele que se interessa apenas pelo
seu trabalho, deixando de lado a política e a cidadania.
Tenho estado
bastante curioso por compreender o fenômeno do antipetismo que estamos vivendo
nessas últimas semanas de campanha eleitoral. Certamente há quem tenha boas
razões para votar no candidato do PSDB, Aécio Neves, e elas devem ser
respeitadas; mas há uma questão mais profunda que tem ocorrido com o fenômeno
do antipetismo, um ódio nada propositivo que tem tomado conta das pessoas e
revela um problema mais complexo, que a mim, como cientista social, interessa
especialmente.
O ódio ao PT
precede os escândalos de corrupção, de modo que atribuir o ódio a isso seria
uma explicação insuficiente. Durante a campanha de segundo turno, graças ao
fato dos dois candidatos terem chances reais de chegarem à presidência da
república, o fenômeno se agravou. Arriscarei aqui algumas linhas e espero que
sejam motivo de reflexão a quem esse texto chegar.
O ódio ao PT
pode ser examinado pelo menos a partir de três grupos de causas:
1) o
desenvolvimento histórico dialético ocorrido no Brasil desde a colonização e a
forma como a luta de classe se constituiu no país;
2) a presença hegemônica da
mídia tradicional e o poder simbólico que possui; e
3) a incapacidade de
pensamento da população e o seu modo dicotômico de situar-se no mundo.
A primeira causa
está na explicação histórica da forma como nossa sociedade foi construída, sob
os alicerces da casa grande e da senzala. Os argumentos de Gilberto Freyre, e
de tantos outros autores que se prestaram a estudar a formação da sociedade
brasileira, indicam uma explicação para o fato de ainda sentirmos a presença do
patriarcado em nossa pele, o resquício de um senhorio que se sente proprietário
de tudo, que quer ver a todos sob controle. Esse princípio não desapareceu, ele
foi modificando-se ao humor do tempo, adaptando-se aos avanços tecnológicos e
aos ares da modernidade, mas em nenhum momento o sentimento de inquietação do
senhor ao ver seus escravos festejarem na senzala deixou de existir. Essa
especificidade da sociedade brasileira, que vem junto da miscigenação e da
pluralidade cultural, não foge da lógica descrita no pensamento dialético.
Existe um ódio de classe que mantém dois grandes grupos distintos e coesos no
discurso, mas um único grupo que concentra a propriedade.
Esse ódio de
classe é difícil de aceitar nos tempos que vivemos. Já não se fala em comunismo
senão como uma quimera, o capitalismo representa um sistema tão absoluto que a
própria luta de classes fica obscurecida. Nesse contexto, falar de ódio de
classe parece um devaneio, mas não é. O conceito é ainda preciso por reunir
tantas práticas irrefletidas e contraditórias pelas quais estamos passando. É
justamente pela sua negação que demonstra sua eficácia.
A ideologia se
dissipa em discursos e práticas, come pelas beiradas, demarca territórios e
realiza distinções sociais. Ao reconhecermos as significativas mudanças
ocorridas no país nos últimos anos, vemos o ódio se acirrar como uma resposta espontânea
à perda de distinção e de privilégios de determinado grupo social. Nesse
sentido, a modificação na estrutura de classes e o passado patrimonialista
seria uma possibilidade de explicação do ódio, mas não a única. Diante dessa
realidade, o idiota é aquele que se interessa pela recuperação de seus
privilégios, pelo sucesso de seus projetos pessoais, assumindo uma perspectiva
individualista e burra ao mesmo tempo. Individualista porque perde de vista a
coletividade de cidadãos que se beneficiaram com as mudanças, e burra porque
acredita que as melhorias sociais são ações independentes, que não o afetam
positivamente. Essa burrice que leva alguns a praguejarem contra o suposto
assistencialismo do governo ignora a base de discussão dos direitos humanos e o
modo como ocorre a dinâmica do capital, baseada essencialmente na produção e no
consumo.
A segunda causa
é a cobertura que os meios de comunicação têm realizado dos fatos cotidianos de
nossa política. Essa cobertura corresponde às expectativas desse mesmo
eleitorado idiota, porque estão interessados no consumo das informações. São
empresas, e como tal procuram o lucro. Se os espectadores, ouvintes e leitores
são a resultante histórica de um longo processo de despolitização e banalização
da política, esse discurso será reforçado a todo custo, com o claro intuito de
manter o índice de audiência e vendas. O fato de essas informações serem
voltadas para o consumo já revela sua natureza: são informações efêmeras,
voltadas ao desaparecimento. Não são informações que articulam o conhecimento
do mundo, que acrescentam criticidade e contribuem para o estabelecimento do
homem no mundo. Essas informações de superfície, que em nada aprofundam a
realidade política, cumprem o papel de serem mercadorias consumíveis. São,
portanto, oportunidades de distração do homem de si mesmo, ou dito de forma
mais direta, são fontes de alienação.
Por exemplo, um
dos temas que ocupou as propagandas eleitorais esse ano foi a "nova
política" ou a sua versão atualizada, a "mudança". Os veículos
de comunicação de massa e a população despolitizada trataram de propagar essa
vontade do eleitorado. Ora, nem os mídia e nem a população em geral sabem como
funciona a máquina do Estado.
Não compreendem
o funcionamento das instituições e o papel da burocracia. Não têm dimensão da
rede de atores envolvida a cada processo decisório, as forças em disputa e o
tênue equilíbrio que mantém a engrenagem funcionando. A população em geral,
porque não se envolve com a coisa pública, não compreende o valor das
instituições políticas e o fato de que essa complexa dinâmica é necessária para
assegurar o mínimo de lisura ao sistema. Então, diante da crítica ao Estado
cotidianamente construída pelos profissionais da mídia e repetida quase que de
forma infantil pelo eleitor despolitizado, deduzimos que "a nova
política" não passa de uma política sem corrupção. Esse é o máximo que
essa parcela da população consegue definir como um programa de mudança, uma
política sem corrupção. Essa reivindicação é mais do que justa. É tão justa
quanto utópica, mas nem por isso deve deixar de ser buscada. Mas a rigor, essa
vontade de uma outra política quando se resume a uma vontade de pôr fim a
corrupção acaba por simplificar ainda mais as coisas e reforçar o afastamento
dos indivíduos da coisa pública. O eleitor e cidadão passa a resumir todos os
problemas ao problema da corrupção. Esse é o exato cálculo que a grande mídia
faz: eleva-se a corrupção ao status de mal maior da humanidade. É isso que vemos
nos comentaristas dos jornais todos os dias. Na sua tentativa de tutelar a
opinião do espectador, ouvinte e leitor, acabam reforçando a ideia de que ao
preocupar-se com a corrupção dos governantes ganha-se o título de cidadão. A
fórmula é tão simplista que faz com que esse mesmo cidadão se esqueça dos
tantos gestos corruptos que comete ao invadir a ciclovia; ao ultrapassar o
semáforo vermelho; ao parar em local proibido ou em vagas para idosos; ao
inventar atestados falsos para a sua declaração de ajuste de imposto de renda e
tantas outras pequenas improbidades. A mesma irreflexão faz com que esses
cidadãos combativos creiam piamente que o dinheiro que se perde com a corrupção
e com o sustento de mordomias dos políticos seja mais do que suficiente para sanar
todos os déficits da saúde, educação, mobilidade, violência e tantos outros
pontos fundamentais para atingirmos o estado de bem estar social que desejamos.
São contas simples que a simplificação do pensamento impede que sejam feitas.
A verdade é que
a grande mídia soube selecionar muito bem os casos de corrupção a serem
divulgados. Nos últimos debates a candidata Dilma Rousseff trouxe à tona alguns
dos tantos escândalos que não foram investigados, o mesmo tem feito a mídia
alternativa. Essa seleção realizada pela mídia tradicional foi muito eficiente
na associação da corrupção ao partido dos trabalhadores, se valendo da
contradição de que o mesmo partido construiu toda sua história sobre os
alicerces da ética e no momento que se viu como governo acabou por jogar o jogo
que ali estava e que tanto criticava. Ora, as pessoas não aceitam as
contradições no dia a dia, vivem como patrulheiras umas das outras,
fiscalizando seus discursos e atitudes na esperança de identificar os lapsos
que serão cometidos. Isso é muito ruim, porque as ações passam a ser
direcionadas a denegrir o outro com o simples objetivo de uns parecerem ser
melhores que outros. As pessoas passam a fazer um cálculo de mazelas ao invés
de potencializar suas virtudes.
Um processo
semelhante ocorreu com o PT nos últimos anos. O ódio de classe e a cobertura
dos meios de comunicação tradicionais conseguiram reduzir o problema da
política à corrupção e associa-lo a um único partido. O eleitorado, se
perguntado, reconhece que o problema da corrupção não é exclusividade de um
único partido, mas o mesmo eleitorado usa dois pesos e duas medidas,
penalizando apenas o PT. O idiota, nesse caso, é aquele que encontra nos
"petralhas" um motivo para sua auto-afirmação, um mecanismo de
enxergar-se como melhor e, ao mesmo tempo, de obscurecer os lapsos que comete
no dia a dia. Além disso, é idiota aquele que não procura de forma ativa as
informações sobre a trama da política e deixa-se informar pelos veículos de
comunicação de massa. São esses mesmos veículos que vêem na simplificação e
imparcialidade um negócio, uma fonte de renda, que estão construindo uma
opinião pública frágil e, com isso, prestando um desserviço à democracia. A
informação precisa descer às profundezas da política para que seja digna, do
contrário se reduz a superficialidades e transforma o eleitorado em massa de
manobra.
Por fim, a
última causa que apresento para tentar compreender o ódio e a cegueira branca
que estamos presenciando é a incapacidade de pensar, exatamente como Hannah
Arendt a concebe. Há nos homens desses tempos sombrios uma incapacidade de
situar-se entre o passado e o futuro. Dito de outra forma, em uma perspectiva
complementar, o problema está no uso de uma racionalidade tradicional, tal como
os frankfurtianos a descreveram, para enquadrar a complexidade do mundo a uma
dicotomia moralizante. Tudo se resume a bem e mal, a certo e errado, a verdade
e mentira. O leitor talvez se depare com esse argumento com espanto por não
compreender o que há de mal nessa forma de enxergar o mundo. Esquece-se que
nada na vida é tão simples e ambivalente e que, ao se enquadrar a realidade a
uma forma tão reduzida, alimenta-se o risco da banalização.
Então, enxergar
o mundo a partir de uma razão cartesiana implica ignorar a multiplicidade da
vida. No fundo o que há nisso de perigoso é que a vontade de reduzir o mundo é
no fundo a vontade de tê-lo sob controle. E nesse sentido, as ideias dos
frankfurtianos não se afastam das de Hannah Arendt. Essa maneira que os homens
aprenderam a olhar o mundo desde o platonismo revela um desejo de controle, uma
vontade irascível de ter tudo e a todos sob comando e, diante dessa
impossibilidade insuportável, resta produzir artificialmente uma realidade
simples, perfeitamente controlada, para que a necessidade de iludir-se seja
empreendida. Os nazistas souberam reduzir os problemas econômicos e sociais da
Alemanha da primeira metade do século XX ao simplismo de uma única causa,
problema cuja solução imediata estava na eliminação de todo aquele que não
fosse ariano, que não fosse o povo eleito. Da mesma maneira se estrutura
qualquer fundamentalismo religiosos e toda a barbárie que se seguiu ao esforço
de resumir a fé a uma única verdade. Essa propensão do homem aos totalitarismos
é, no fundo, o resultado de sua forma de pensar, realidade tão horrível e
absurda quanto desconhecida e negada. Há no homem uma incapacidade de enxergar
ao outro, mas também de enxergar a si mesmo. Mas há também um discurso
iluminado, autoritário, que busca apoio a todo canto, que quer ser ouvido sem
ouvir. Por isso a imagem da cegueira branca é tão apropriada para nosso tempo.
Não me parece
exagero pensar que a emergência de fundamentalismos nos últimos meses seja algo
tão distante do que vimos florescer na primeira metade do século XX. Temos crise
econômica e social, temos crise de representatividade e temos uma mídia
espetacular, bem armada para a formatação das consciências. Soma-se a isso as
outras razões para o ódio levantadas anteriormente e temos um bom rol de
explicações para compreender os linchamentos públicos, os discursos favoráveis
à ditadura militar, o apoio a ideias injustificáveis como a esterilização de
mulheres pobres ou a cura de homossexuais, e tantas outras tristes
desqualificações dos discursos minoritários.
É nesse contexto
que vejo o ódio ao Partido dos Trabalhadores aflorar tantos sentimentos
brutais. A frase "odeio o PT" vem, em geral, seguida de uma profusão
de preconceitos de classe, simplismos e preguiça de pensar. Da mesma maneira
que o discurso irrefletido permite defender que o extermínio de delinquentes,
homossexuais, judeus ou negros resultaria em um mundo perfeito, a extinção do
PT seria a solução imediata para a política brasileira. Sem os
"petralhas", o Estado seria finalmente saneado, acabaria a farra
dessa gente e, finalmente poderíamos voltar ao que era antes. O discurso é tão
sem sentido e tão revelador que nos obriga a perguntar se o que tínhamos antes
é o que queremos para agora. Como se o Brasil antes do PT chegar ao governo
fosse uma grande propaganda comercial de margarina. Esquecemos rapidamente o
país que construímos nos primeiros 500 anos de nossa história, repleto de
desigualdades e imperfeições e as novas gerações, tão acostumadas à superfície
e à velocidade da tela, não partilham de memória alguma.
Essa última
causa é mais profunda e grave que o período eleitoral em si. É a fonte de
bestialidades maiores, que evitam o avanço de causas progressistas. Por essa
causa, a idiotice não é apenas uma condição passageira, uma escolha periférica
entre cidadãos que dão as costas para a coletividade e mergulham no
individualismo. A incapacidade de pensar faz com que a condição de idiota seja
equivalente à condição humana. O grande perigo disso não está simplesmente em
sermos idiotas, porque trata-se de condição reversível. O perigo está no fato
de que os idiotas de hoje são portadores da cegueira branca. Sem a capacidade
de pensar, de enxergar-se e de ouvir ao outro, dificilmente essa situação será
revertida.
nao tenho odio do pt
ResponderExcluirtenho pena de alguns politicos
como siba machado
do mesmo tem petista que odeia os tucanos
ResponderExcluirbasta ver nas redes sociais
Boa noite, meu caro Ivan.
ExcluirInfelizmente as divergências político ideológicas que antes eram tratadas no campo dos debates com base em princípios aceitáveis, transformaram-se em batalhas onde vale tudo, até dedo nos olhos.