quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Orlando Eller - O estuário tinha dono


Por Orlando Eller*
Sem qualquer maldade, eu lhe pergunto, senhor rês da saga: pode alguém usufruir de decência achando-se dono inarredável do estuário de um rio, breve que seja o seu curso? Ou, indo além: reflita e, em nome da dignidade, responda-me: quem, dentre a espécie suicida, teria autoridade para conferir a qualquer outro dos mortais direito à propriedade de qualquer extensão territorial que pertença às águas, que é delas porque precisam cursar livres, espraiar-se e escoar na imensidão do mar?

Antes que lhe conte a história, saiba conterrâneo que não existe qualquer relação comum, que seja do bem, entre o que você deseja, dignidade de vida mesmo que em humildade, e o que o seu gestor propõe e faz, na maioria das vezes coisa de interesse escuso, sem amor e sem decência. Não é isso exatamente que vem ocorrendo há anos, habitualmente, na relação entre o desejo dos cidadãos e a conveniência dos amos que mandam no pedaço?

Claro, não há contraditório para a tese de que somos rebanho de que se tira o leite, de que se arranca o couro e de que se come a carne, como churrasco de festa.

Voltemos ao estuário sem, é claro, ameaçar qualquer um de muitos que mereceriam ser alvo de um levante civil. Mesmo porque não deve interessar aos cientes civilizados senhores dos privilégios qualquer reação contra o que poderíamos denominar de terrorismo de gestão.

Claro que há um fundo de poço, em que o rebanho inteiro acredita como sinal de que haverá dias melhores, recuperação da esperança e da dignidade.

O estuário? Ah, denomina-se Pontal das Garças, lugar de mil e tantos lotes tantas vezes submerso ao longo dos anos recentes. É dolorosa a indignação em saber como pode alguém, no limiar de um século da consciência ambiental, ser ou dizer-se dono de um estuário. O do Jucu, o pobre rio que, por imenso dique, foi encurralado e forçado a escorrer por estreito vão entre o Sul e o Norte da velha Vila já tantas vezes estuprada por gestores do mal.

O estuário do Jucu era um imenso campo ambiental de flora e fauna especiais, próprias dele, colchão de matéria orgânica sobre o qual hoje flutuam casas e casebres que formam o Pontal das Garças. Eram tantas as garças, tão raras hoje, que no final das tardes migravam entre sítios desconhecidos. Mas migravam, asas arfadas no ar, abaixo tendo como retrato o estuário aterrado.

O crime ambiental (que crime?) foi perpetrado no finalzinho dos anos mil e novecentos. Alguém, provando ser o dono (poderia ou ainda pode alguém ser dono de um estuário fluvial?), com aval da gestão da velha Vila, obteve autorização para aterrar o imenso colchão de matéria orgânica sem fundo e dele fazer loteamento de mil e tantos lotes. Tudo a quase um metro abaixo do nível do mar.

Fauna e flora típicas, inigualáveis em variedade e riqueza, foram soterradas livremente. Não houve Iema, Seama, Crea ou poder similar que interviesse. Postes e luz instalados, canos da Cesan sob o barro vermelho de somente cinquenta centímetros, venderam-se às pressas tudo o que por força da demanda foi possível, sem pressão de invasão por fomento público comum na velha Vila de então.

Quem comprou e construiu tudo perdeu mais de uma vez. No início por lá passava um homem do Crea, aplicando multas aos pobres que queriam construir sua casa. Nada se fez nos anos seguintes para amenizar o sofrimento. Só arremedo e um silêncio sepulcral, próprio de quem teme castigo pela agressão ao ambiente natural e aos cidadãos enganados.

Agora, alguns querem enforcar Rodney. Ele poderia contar tudo sobre o aterro criminoso. Eu bateria palmas. Mas é possível que ele fique em silêncio, porque é melhor sofrer um pouco agora do que contar a verdade e ser por isso mortificado para sempre. Pelos velhos pulhas da política barata.


*Orlando Eller é jornalista 

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