Por Orlando Eller*
Sem qualquer
maldade, eu lhe pergunto, senhor rês da saga: pode alguém usufruir de decência
achando-se dono inarredável do estuário de um rio, breve que seja o seu curso?
Ou, indo além: reflita e, em nome da dignidade, responda-me: quem, dentre a
espécie suicida, teria autoridade para conferir a qualquer outro dos mortais
direito à propriedade de qualquer extensão territorial que pertença às águas, que
é delas porque precisam cursar livres, espraiar-se e escoar na imensidão do
mar?
Antes que lhe
conte a história, saiba conterrâneo que não existe qualquer relação comum, que
seja do bem, entre o que você deseja, dignidade de vida mesmo que em humildade,
e o que o seu gestor propõe e faz, na maioria das vezes coisa de interesse
escuso, sem amor e sem decência. Não é isso exatamente que vem ocorrendo há
anos, habitualmente, na relação entre o desejo dos cidadãos e a conveniência
dos amos que mandam no pedaço?
Claro, não há
contraditório para a tese de que somos rebanho de que se tira o leite, de que
se arranca o couro e de que se come a carne, como churrasco de festa.
Voltemos ao
estuário sem, é claro, ameaçar qualquer um de muitos que mereceriam ser alvo de
um levante civil. Mesmo porque não deve interessar aos cientes civilizados
senhores dos privilégios qualquer reação contra o que poderíamos denominar de
terrorismo de gestão.
Claro que há
um fundo de poço, em que o rebanho inteiro acredita como sinal de que haverá
dias melhores, recuperação da esperança e da dignidade.
O estuário?
Ah, denomina-se Pontal das Garças, lugar de mil e tantos lotes tantas vezes
submerso ao longo dos anos recentes. É dolorosa a indignação em saber como pode
alguém, no limiar de um século da consciência ambiental, ser ou dizer-se dono
de um estuário. O do Jucu, o pobre rio que, por imenso dique, foi encurralado e
forçado a escorrer por estreito vão entre o Sul e o Norte da velha Vila já
tantas vezes estuprada por gestores do mal.
O estuário do
Jucu era um imenso campo ambiental de flora e fauna especiais, próprias dele,
colchão de matéria orgânica sobre o qual hoje flutuam casas e casebres que
formam o Pontal das Garças. Eram tantas as garças, tão raras hoje, que no final
das tardes migravam entre sítios desconhecidos. Mas migravam, asas arfadas no
ar, abaixo tendo como retrato o estuário aterrado.
O crime
ambiental (que crime?) foi perpetrado no finalzinho dos anos mil e novecentos.
Alguém, provando ser o dono (poderia ou ainda pode alguém ser dono de um
estuário fluvial?), com aval da gestão da velha Vila, obteve autorização para
aterrar o imenso colchão de matéria orgânica sem fundo e dele fazer loteamento
de mil e tantos lotes. Tudo a quase um metro abaixo do nível do mar.
Fauna e flora
típicas, inigualáveis em variedade e riqueza, foram soterradas livremente. Não
houve Iema, Seama, Crea ou poder similar que interviesse. Postes e luz
instalados, canos da Cesan sob o barro vermelho de somente cinquenta
centímetros, venderam-se às pressas tudo o que por força da demanda foi
possível, sem pressão de invasão por fomento público comum na velha Vila de
então.
Quem comprou e
construiu tudo perdeu mais de uma vez. No início por lá passava um homem do
Crea, aplicando multas aos pobres que queriam construir sua casa. Nada se fez
nos anos seguintes para amenizar o sofrimento. Só arremedo e um silêncio
sepulcral, próprio de quem teme castigo pela agressão ao ambiente natural e aos
cidadãos enganados.
Agora, alguns
querem enforcar Rodney. Ele poderia contar tudo sobre o aterro criminoso. Eu
bateria palmas. Mas é possível que ele fique em silêncio, porque é melhor
sofrer um pouco agora do que contar a verdade e ser por isso mortificado para
sempre. Pelos velhos pulhas da política barata.
*Orlando Eller
é jornalista
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